Razão e Fé

[Este artigo é literalmente uma nota de rodapé (elas costumam ser longas) a um trecho de um livrinho que estou escrevendo sobre a História da Igreja Primitiva (até aD 476). É uma história diferente, menos cheia de fatos e mais cheia de elucubrações filosóficas. Em relação à questão que dá título ao que, aqui, é apenas um artiguete, posso dizer que, desde que entrei no Seminário, em Fevereiro de 1964, e ali vim a fazer uma disciplina de Introdução à Filosofia, com o Rev. Francisco Penha Alves, venho lutando com ela. Vai fazer 53 anos no início do ano que vem (que está perto). Foi esta questão que, em Maio de 1970, quando ganhei uma bolsa para fazer o meu Ph.D. na Universidade de Pittsburgh a partir de Setembro, me fez optar por me concentrar em Filosofia e não em História – embora eu tenha de certo modo juntado as duas áreas escrevendo minha dissertação sobre um tópico do ponto de vista da História da Filosofia… EC – 20161116]

o O o

Inspirado em Tomás de Aquino (1225-1274), Blaise Pascal (1623-1662), John Locke (1632-1704), David Hume (1711-1776), William James (1842-1910), William Kingdon Clifford (1845-1879), Karl Popper (1992-1994) e William Warren Bartley III (1934-1990), este, orientando de Popper e meu orientador de Doutorado, que, a meu ver, deram a esta questão formulações que só podem ser chamadas de clássicas, eu me arriscaria a dizer, depois de ter refletido sobre ela por mais de cinquenta anos, tendo mudado de ponto de vista algumas vezes, QUE, quanto às credenciais epistêmicas dos enunciados, nossa atitude para com eles pode ser classificada como:

  • Racional (secundum rationem),
  • Irracional (contra rationem), ou
  • Suprarracional (supra rationem).

(A) SE existe evidência adequada A FAVOR DE um enunciado, a atitude racional para com o enunciado é assentir intelectualmente a ele com base na convicção racional produzida pela evidência. Neste caso, a atitude racional nos obriga a não “desassentir” intelectualmente do enunciado (se é que posso inventar esse neologismo, “desassentir (de)”, que significa “não assentir (a)”). Desassentir intelectualmente dele, neste caso, seria, portanto, assumir, em relação a ele, uma atitude irracional.

(B) SE existe evidência adequada CONTRA um enunciado, a atitude racional para com o enunciado é desassentir intelectualmente dele com base na convicção racional produzida pela evidência. Neste caso, a atitude racional nos obriga a desassentir intelectualmente do enunciado. Assentir a ele, neste caso, seria, portanto, assumir, em relação a ele, uma atitude irracional.

(C) SE, porém, NÃO existe evidência adequada A FAVOR de um enunciado, mas também NÃO existe evidência adequada CONTRA ele, a atitude racional para com ele é suspender juízo em relação ao enunciado (isto é, não assentir intelectualmente a ele nem desassentir dele, com base em convicção racional, por não haver evidência adequada nem a favor dele, nem contra ele), MAS não é uma atitude irracional, em relação a esse enunciado, assentir intelectualmente a ele como objeto de fé (posto que não há evidência adequada contra ele).

(D) ASSIM, os enunciados que podem ser objeto de fé são aqueles (a) em relação aos quais a gente NÃO é racionalmente OBRIGADO, intelectualmente, com base em suas credenciais epistêmicas, nem a assentir, nem a desassentir, (b) MAS em relação aos quais PODE, intelectualmente, com base em considerações não epistêmicas, assentir.  A fé, assim, não é racional, mas, nessas condições, também não é irracional.

Em Salto, 16 de Novembro de 2016

“I Call Myself a Liberal”

1. Mote

No início de seu conhecido e justamente celebrado Ensaio sobre o Homem: Epístola II, Alexander Pope, poeta inglês (1688-1744), considerado por muitos o maior poeta britânico do século XVIII e, em todos os séculos, segundo apenas em relação a Shakespeare, afirma o seguinte (minha tentativa de tradução é fornecida na sequência):

“Know then thyself, presume not God to scan;
The proper study of mankind is man.
Placed on this isthmus of a middle state,
A being darkly wise and rudely great:
With too much knowledge for the sceptic side,
With too much weakness for the stoic’s pride,
He hangs between, in doubt to act or rest;
In doubt to deem himself a god or beast;
In doubt his mind or body to prefer;
Born but to die, and reasoning but to err;
Alike in ignorance, his reason such,
Whether he thinks too little or too much:
Chaos of thought and passion, all confused;
Still by himself abused, or disabused;
Created half to rise, and half to fall;
Great lord of all things, yet a prey to all;
Sole judge of truth, in endless error hurled:
The glory, jest, and riddle of the world!”

“Conhece-te a ti mesmo, não presumas contemplar a Deus;
O estudo apropriado para quem é humano é o homem.
Colocado entre água dos dois lados, como um istmo,
Um ser obscuramente sábio e rudemente grande:
Com conhecimento demais para satisfazer o cético,
E fraqueza demais para justificar o orgulho do estoico,
O homem fica entre os dois, em dúvida se age ou se descansa;
Sem ser capaz de decidir se é um deus ou uma besta;
Se prefere sua mente ou seu corpo;
Nascido para morrer, é capaz de raciocinar, mas erra;
Caso pense de menos, ou venha a pensar demais,
Sua razão sempre encontra, em qualquer caso, a ignorância:
É um caos de pensamento e paixão, misturados e confusos;
Ele próprio se abusa, mas, por outro lado, também se desabusa;
Criado para subir, ele, por outro lado, frequentemente cai;
Senhor de todas as coisas, ele se torna presa de todas elas;
Único juiz da verdade, vive enrolado em erros intermináveis:
A glória, a pilhéria, o enigma do mundo!”

Ao ler esta estrofe de Pope, colocada como mote de um livro intitulado Anatomy of Love (de Helen Fischer [1]), lembrei-me de um artigo que comecei a escrever há algumas semanas e acabei deixando inacabado em meio às vicissitudes que um professor encontra no fim do ano, lendo trabalhos, avaliando provas, participando de bancas de Trabalhos de Fim de Curso e de Dissertações de Mestrado. O artigo tinha o título que agora dou a este trabalho, que, espero, complete e enriqueça o que vinha escrevendo. O mote, encontrei-o hoje (5 de Dezembro de 2015), quando os trabalhos dos alunos estão lidos, as provas avaliadas, as notas entregues… Só me falta uma banca de Mestrado, daqui a dois dias. Sinto-me, portanto, com tempo para concluir o que vinha procurando elaborar – para mim mesmo, para meus alunos, e para outros que possam se interessar pelo que penso ou pelo que seja o Liberalismo Teológico.

2. Preâmbulo

Meu orientador de Doutorado, William Warren Bartley, escreveu uma vez um artigo chamado “I Call Myself a Protestant” (“Por que me Chamo um Protestante”) – junto com três outros intelectuais, a saber: Philip Scharper, cujo artigo se chamou “What a Modern Catholic Believes” (“O que um Católico Moderno Acredita”; o famoso filósofo Walter Kaufmann, cujo artigo se chamou “The Faith of a Heretic” (“A Fé de um Herege”) e explicava por que ele havia abandonado o Cristianismo pelo Judaísmo; finalmente, Arthur A. Cohen, cujo artigo se chamou “Why I Choose to Be a Jew” (“Por que Escolho ser Judeu”). O artigo de Bartley, em especial, é muito interessante. Influenciou-me bastante quando o li, na década de setenta, em que, imaginava eu, eu deixava de ser um protestante histórico para me tornar, digamos, um protestante cultural, do tipo genérico, sem marca. [2]

Considero o artigo de Bartley um antecedente importante do fantástico artigo-depoimento de Rubem Alves, que transcrevi em meus blogs Liberal Space e Theological Space, ao qual ele deu o título de “Confissões de um Protestante Empedernido” [3]. É nesse artigo que Alves explica que ele, quando perguntado se ainda se considerava protestante (algo que acontecia com certa frequência), respondia sempre que sim – “sou, porque fui”, explicava.

Ambos, Bartley e Alves, foram amigos meus – grandes amigos, em convivência com os quais, e na leitura dos quais, aprendi muito e sempre me senti muito bem.

Acordei, no dia 11/11/15, quando comecei a escrever este artigo, determinado a escrever um artigo com o título “I Call Myself a Liberal” (“Por que me Chamo um Liberal”). Liberal em sentido teológico, não político – embora as duas liberalidades estejam a meu ver relacionadas. Para entender essa relação basta lembrar que o liberalismo político, com sua ênfase em liberdades e direitos, começou e floresceu com a afirmação da liberdade de consciência, de pensamento, de expressão – em especial na área da religião. O liberal político exigia, primeiro e acima de tudo, o direito de pensar livremente em relação a questões religiosas ou teológicas: pensar livremente queria (e quer) dizer pensar divergentemente, pensar diferente, pensar o que muitos (mesmo a maioria) consideram heresia…

Em meu artigo “Meu Credo Liberal” (que não especifica se o “liberal”, no caso, é teológico ou político), republicado recentemente em meu blog Liberal Space [4], explicito, no Item 1 do Bloco I:

“I. Convicções Básicas: 1. Defendo o direito de cada um pensar livremente, de escolher suas opiniões e seus pontos de vista, suas crenças e seus valores, e de os abandonar, sempre que achar que deve, e espero que os abandone, quando neles achar falhas ou quando encontrar alternativas mais adequadas à sua maneira de ver o mundo e a vida.” [5]

Um liberal teológico é, acima de tudo, um protestante. O equivalente católico é, em geral, chamado de modernista – como foi o caso de Alfred Loisy. A Igreja Católica, na segunda metade do século 19 e na primeira metade do século 20, condenou o Modernismo, não o Liberalismo, enquanto as denominações protestantes conservadoras condenavam o Liberalismo. As diferenças são sutis, mas importantes. Mas não vou discuti-las aqui.

Ao (tentar) elucidar por que me chamo um liberal estarei, portanto, em termos, também elucidando (espero) por que me chamo um protestante. Assim, este meu artigo se relacionará, basicamente, com os artigos de Bartley e de Alves que menciono no início.

3. Fé e Certeza

Comprei recentemente (Amazon, Kindle) um livro chamado Faith Without Certainty: Liberal Theology in the 21st Century, de Paul Rasor [6]. Vou começar discutindo (de certo modo) sua tese principal: a de que, para o liberal, a fé não envolve certeza… Foi esse livro que me motivou a escrever este artigo neste momento. Estou no mês final de uma disciplina (História da Igreja IV) em que o tema é história da igreja e do pensamento cristão no Século 20. Esclareço que, em relação a séculos anteriores, é mais fácil falar em “doutrina cristã” (ou, como prefere Adolf von Harnack, nos “dogmas do Cristianismo”) porque neles há razoável clareza e, por vezes, até consenso, acerca quais são essas doutrinas e esses dogmas. O Século 20 é bem mais complicado. Exceto no caso de certos grupos bem delimitados (Protestantismo Fundamentalista e, talvez, pelo menos até o Vaticano II, Catolicismo Romano), é bastante difícil determinar quais são as doutrinas ou os dogmas cristãos que a igreja espera que todo cristão aceite. E há, no Protestantismo, além dos mencionados Fundamentalistas, os Evangélicos (Conservadores, Pós-Conservadores, Progressistas, Pós-Modernistas), os Carismáticos (ou Avivados), os Pentecostais, e os  Liberais. Os Liberais parecem estar mais acomodados ultimamente, mas não estão mortos – talvez estejam apenas se fingindo de mortos enquanto os outros brigam… Tanto que o livro de Rasor, mencionado atrás, propõe-se discutir uma teologia liberal para o Século 21 – isto é, para o terceiro século de existência do Liberalismo, que surgiu com Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, no início do Século 18. A primeira edição de Der christliche Glaube nach den Grundsätzen der evangelischen Kirche [“A Fé Cristã Segundo os Princípios da Igreja Evangélica”] de Schleiermacher foi publicada em 1821-1822 e lhe granjeou o título de “Pai da Teologia  Liberal”. Por isso, no tocante ao Século 20 (e ao 21) prefiro falar mais em “pensamento cristão” – talvez fosse melhor falar em “pensamento dos cristãos”, ou, quem sabe, melhor ainda, em “pensamento daqueles que se chamam cristãos” (assim conectando esta questão com a questão do início).

4. Fé, a Esperança e o Amor

Em um artigo publicado em meu blog Liberal Space, com o título de “A Fé, a Esperança e o Amor” [7], teci uma série de comentários sobre essa noção de “fé sem certeza”, muito antes de ler o livro de Paul Rasor.

Comecei, no artigo, discutindo o que afirma o autor da Carta aos Hebreus (Paulo, ou qualquer outro, não faz diferença), quando diz, em conhecida e celebrada passagem, que “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem ” (Hebreus 11:1).

Observei naquele artigo que eu concordava, em parte – e, mesmo assim, apenas mais ou menos – com o que disse o autor de Hebreus nesse versículo.

Concordo que a fé tenha que ver com estados de coisas que “se esperam” – mais do que isso, que “se desejam” (talvez ardentemente) – mas cuja realidade (ou facticidade ou historicidade) nossos meios de percepção e investigação não são capazes de confirmar. Paul Tillich, em Dynamics of Faith, prefere falar em estados de coisas que consideramos tão importantes que os identificamos como nosso “interesse maior” (ultimate concern) [8].

A fé, portanto, teria que ver, acima de tudo, não com a “certeza” e a “convicção”, como afirma o autor de Hebreus, mas com a “esperança” e o “desejo” – com a esperança revestida de desejo que contém nosso interesse maior. Ou seja: o objeto da fé não é qualquer coisa…

Assim, concordo com o autor do trecho bíblico em que a fé tem que ver com a esperança (e com o desejo, que ele não menciona), mas discordo dele ao não achar que a fé tenha que ver com a certeza e a convicção. O lugar da fé na vida das pessoas (seu Sitz im Leben) não é o terreno em que se cultiva a certeza (como na matemática) ou mesmo a convicção baseada na evidência (como na ciência empírica): é o terreno difícil e pantanoso da dúvida. Longe de ser incompatível com a dúvida, a fé só nasce em terreno que a dúvida arou, preparou e cultivou.

A fé é a esperança de que determinado estado de coisas exista ou venha a acontecer, ainda que não tenhamos certeza de que ele exista ou venha, ou até mesmo possa, acontecer, ou ainda que não tenhamos convicção alicerçada em evidência de que esse estado de coisas exista ou vá ou mesmo possa acontecer, ou ainda mesmo quando a evidência, em vez de confirmar nossa esperança, pareça apontar na direção contrária…

A esperança que alicerça a fé tem de ser suficientemente forte para sustenta-la. Ela tem de ser uma esperança fundamentada no desejo – desejo que, por sua vez, é alimentado pelo amor. (O amor é a dimensão que se relaciona com o “interesse maior”, ou “ultimate concern”, de Tillich). O amor, o desejo, a esperança precisam ser suficientemente fortes para nos levar à ação. Uma ação que, sem ignorar a dúvida, prossegue como se a dúvida não estivesse lá – da mesma forma que o combatente, ainda que ferido, continua a lutar, como se não estivesse ferido. A ação decorre da fé. . .

Mal comparando, talvez, usemos uma analogia.

Você ama alguém. Realmente ama. E, naturalmente, deseja e espera que esse alguém corresponda ao seu amor. Mas não tem certeza, não tem evidência “clara, distinta e inequívoca” de que o seu amor seja correspondido. Mas se o amor é suficientemente forte para sustentar uma esperança também forte, você age – age como se o amor que você deseja e espera estivesse de fato no outro coração. Se não agir, você provavelmente nunca irá descobrir. É só agindo, como se, que você vai poder descobrir. Você poderá descobrir, quando tudo vier a ser revelado, e você vier a conhecer a outra pessoa como se conhece a si próprio, que sua fé e sua esperança não foram em vão, e que o seu amor era, na realidade, correspondido. (Essa é a coragem da fé, de que fala Tillich.)

Ou, então, pode descobrir que não era. Esse é o risco da fé. A fé não só nasce da dúvida: ela sempre envolve risco. O risco é a outra face da moeda cujo anverso é a coragem.

É o amor (traduzido como interesse último) que nos dá coragem e que faz com que o risco da fé compense.

Resumindo, até aqui: a fé é, de um lado, a esperança de que aquilo que se deseja seja verdadeiro, e, quando se trata de agir, a ação que se desenrola como se aquilo que se deseja fosse de fato verdadeiro. A fé, portanto, está sempre consciente do risco de que sua esperança seja em vão – e, por isso, não é um ato corriqueiro e trivial: é uma decisão que envolve coragem: a coragem de agir (e ser) como se a realidade fosse aquilo que desejamos e esperamos que seja. A fé exige coragem porque o desejo e a esperança estão sempre em luta com a dúvida.

5. A Epistemologia da Fé

Meu sobrinho, Vitor Chaves, doutor em Ciências da Religião pela UMESP (Rudge Ramos), comentou, ao ler algumas dessas observações minhas postadas no Facebook, pensando (ele) em Tillich, que “a dúvida não é o oposto da fé, ela é parte integrante da fé que reconhece no mistério a dimensão existencial da vida; o oposto da fé é a idolatria, pois esta absolutiza as coisas finitas e passageiras.”

O livro em que Tillich discute essas questões é Dynamics of Faith. Na Seção 5 (Faith and Doubt) do Capítulo I (What Faith Is), Tillich de fato diz uma série de coisas muito interessantes que corroboram e estendem o que escrevi [9].

Publiquei, em meu blog Liberal Spaces, há algum tempo, dois artigos em que discuto a “Epistemologia da Fé”: “Epistemologia da Fé – 1” [10] e “Epistemologia da Fé – 2” [11]. O leitor interessado poderá achar a discussão interessante.

O que é a fé?

Esta é a questão que Tillich discute no primeiro capítulo de Dynamics of Faith e que eu discuto no primeiro dos dois artigos recém-mencionados.

Uma forma de abordar essa questão é perguntando se a fé é um modo de descobrir ou desvelar ideias ou insights que não somos capazes de descobrir pela experiência e pela razão — uma espécie de intuição sobre assuntos transcendentes, talvez sinônimo de revelação… — ou se ela é um modo de validar epistemicamente crenças que a experiência e a razão (i.e., a ciência e a filosofia) não conseguem validar — uma espécie de método transcientífico capaz de justificar nossa crença em enunciados que a ciência e a filosofia não são capazes de validar.

Em outras palavras: a fé opera no chamado “contexto da descoberta” ou no chamado “contexto da validação”? [12]

Ou, ainda:

É a fé uma defesa da não-necessidade de validar a crença em determinados enunciados que a razão (argumentação lógica e evidência empírica) não consegue validar, e, portanto, uma defesa da necessidade de commitment ou engagement (como sugere Bartley), de um “mergulho na irracionalidade” (como propôs Tertuliano), de um “salto no escuro” (como sugeriu Kierkegaard)? Tertuliano, um dos Pais da Igreja, afirmava “credo quia absurdum” (“creio porque é absurdo”), creio exatamente porque é absurdo (vale dizer, incrível). Em outras palavras: se aquilo em que se crê fosse justificado epistemicamente pela razão humana, pela lógica e pela evidência, a fé seria desnecessária. Ela só se torna justificável, enquanto fé, quanto seu objeto é absurdo (ou “loucura”, como preferiu Paulo, o apóstolo).

Ou, ainda:

É a fé um mero “fazer de conta”, no plano da ação (e nem tanto da crença), um viver as if (como se): a decisão de viver como se a vida tivesse sentido, como se o bem e a justiça valessem a pena, como se a honestidade compensasse (e o crime não), etc. [13]?

Ou, ainda:

É a fé confiança pessoal, um relacionamento interpessoal baseado em confiança (trust) em outra pessoa? Algo equivalente ao fato de que eu confio em determinadas pessoas, dou-me a elas, passo a depender delas, mesmo sem ter evidência suficiente de sua confiabilidade. (A gente às vezes se casa com quem mal conhece, toma aviões dirigidos por pessoas que desconhece, acredita que os mecânicos fizeram a manutenção correta nos aviões, acredita que as empresas vão nos entregar os produtos que compramos pela Internet, etc.).

Ou, por fim:

É a fé confiança em si próprio e aceitação de si mesmo (mais ou menos a tese de Heródoto Barbeiro, que ouvi em um programa da CBN)?

Boa parte das pessoas hoje (talvez a maioria) parece-me não acreditar que a fé se esgote na crença de que um Deus (parecido com o Deus cristão descrito na Bíblia) exista. A maioria das pessoas parece estar interessada em defender um tipo de fé que transcende a questão religiosa e não se esgote na questão de Deus (ou até mesmo não a envolva). A questão de Jesus e da redenção nem chega a ser discutida, talvez em respeito a um sentimento ecumênico que transcenda os limites do Cristianismo…

Quase todo mundo parece ser a favor da fé (de algum tipo de fé), quase todos se declaram pessoas de fé (em algum sentido do termo). Pouquíssimos acham que a fé não é necessariamente uma coisa boa – nem mesmo quando entendida como confiança em si e aceitação de si. (Se eu sou um crápula ou um criminoso, a situação parece ficar pior se eu acreditar em mim mesmo e me aceitar como sou…)

Por outro lado, não é incomum a situação de gente que diga o que foi relatado de uma atriz no mesmo programa de que o Heródoto Barbeiro participou: “Eu quero crer, oro toda noite para crer, para que eu venha a ter, ou receba, fé, mas…”

É a fé algo que cada um de nós decide ter ou não ter, voluntariamente? É um ato de decisão pessoal? Se é, por que tantas pessoas aparentemente querem crer, querem ter fé, e não conseguem? Se não é um ato de decisão pessoal, porque tantos cristãos condenam tantas pessoas por não terem fé?

É aceitável, ainda hoje, a doutrina da Reforma Protestante do Século 16 (e, antes, de Agostinho, no Século 4-5), de que a fé não é uma realização humana, mas, sim, um dom divino (uma graça)? Nesse caso, os incréus não poderiam ser responsabilizados por sua descrença, nem os crentes pela sua fé. A estes Deus teria graciosamente dado a fé, àqueles ele a teria negado. Essa doutrina desemboca na doutrina da dupla predestinação.

Protestantes mais “soft” introduziram uma inovação: Deus daria a fé a alguns, mas não graciosamente: os recipientes precisariam primeiro crer que isso era possível e desejar que isso fosse feito. Essa inovação é complicada: além de sugerir que Deus dá a fé apenas a quem de alguma forma já crê, ela parece fazer da própria fé uma obra, negando a doutrina da justificação sola gratia

Enfim, coisa complicada essa questão da “epistemologia da fé”. Mas ninguém disse que seria simples…

Para complicar ainda mais…

Numa discussão que tive no Facebook, envolvendo principalmente parentes (meu irmão, meu sobrinho e minha mulher), relatada no segundo artigo sobre a epistemologia da fé, meu irmão (três anos mais novo), Flávio Chaves, lembrou o pensador inglês G. K. Chesterton, que (segundo ele) disse:

“Amar significa amar o que é difícil de ser amado, do contrário não seria virtude alguma; perdoar significa perdoar o imperdoável, do contrário não seria virtude alguma; fé significa crer no inacreditável, do contrário não seria virtude alguma. E esperar significa esperar quando já não há esperança, do contrário não seria virtude alguma.”

Eu, pessoalmente, gosto muito de Chesterton — pensador inglês que era católico, não anglicano. Ele escreveu também vários romances policiais deliciosos, em que demonstra uma capacidade de raciocínio invejável. Tenho todos eles. Tendo a concordar com ele. Fé, mesmo, para ser realmente fé, tem de ser em algo em que não se pode acreditar com base em argumentos racionais e evidência empírica. Não é preciso ter fé, por exemplo, para admitir que Jesus realmente nasceu no Século I na Palestina. Mas para admitir que ele nasceu de uma virgem, entretanto, é necessário ter fé. Não preciso de fé, por exemplo, para admitir que Jesus tenha morrido numa cruz. Mas para admitir que sua morte expiou os pecados do mundo, ou que ele tenha ressuscitado dentre os mortos, ou que, depois de ressurreto, tenha ascendido aos céus, onde estaria, ainda hoje, à mão direita de Deus, é necessário ter fé – muita fé, eu diria, mais do que muita gente boa é capaz de ter.

Minha mulher, Paloma Chaves, pareceu-me defender a tese de que a fé substitui ou supre a necessidade de justificar a crença em determinados enunciados que a argumentos racionais e evidência empírica não conseguem validar.

Meu sobrinho, Vitor Chaves de Souza, o teólogo, fez referências a Paul Tillich e a Miguel de Unamuno. Segundo o primeiro, a fé estaria mais próxima preocupação (“concern”) fundamental (“a state of being ultimately concerned“) do que de algo que possamos chamar de crença. Miguel de Unamuno teria sugerido a fé está mais próxima de desejar algo que se sabe não existir do que de desejar algo que se espera que exista…

Sugeri, no contexto, que a fé é uma decorrência e uma expressão de nossa finitude, de nossa limitação, do reconhecimento de que, por mais que esse fato nos frustre (porque gostaríamos “de ser como deuses”), não somos capazes de saber tudo e de conhecer tudo, não capazes de eliminar a ignorância (o desconhecimento) nem a dúvida (o conhecimento parcial, incompleto, imperfeito, falível).

A fé se faz presente quanto reconhecemos nossa finitude, nossa limitação, nossa mortalidade – e nos apanhamos desejando e esperando que alguém ou alguma coisa, que transcenda nossa finitude e limitação, que possa estar em controle do leme, impedindo que nossa vida seja uma sequência infindável de coincidências e acasos que um dia se encerre como uma trágica “cortina final”, a nossa morte, pondo fim a uma tragicomédia sem enredo e, por isso, sem sentido.

A fé se faz presente quando esperamos que haja algo além daquilo que conhecemos – que haja algo que transcenda nossa experiência falível e existência finita. Reconhecer nossa finitude é reconhecer que somos finitos, que temos fim.

O Judaísmo e o Cristianismo, por exemplo, diferentemente das religiões gregas, não acreditam na imortalidade da alma: acreditam na ressurreição do corpo. Isso quer dizer que o Judaísmo e o Cristianismo reconhecem, de forma radical, a finitude humana: a morte, o fim humano, é realmente um fim. Não é a morte só do corpo, ficando a alma viajando por aí, atormentando os outros, ou se reencarnando em outro corpo. É realmente o fim. Só um milagre poderá fazer com que, depois desse fim, sobrevenha um novo capítulo em que voltamos a participar. O Judaísmo e o Cristianismo acreditam no milagre da ressureição do corpo. Têm fé (esperança?) de que, um dia, o nosso ser, nosso eu, com corpo e tudo o mais, será reconstituído. Existe alguma base para se crer nisso (além do fato de que a Bíblia o diz)? Estou convicto de que não. Se quem crê (espera) está certo, ou não, só se saberá se a crença (esperança) for verdadeira. Se não for, o nosso fim é verdadeiramente o fim, o fim final, o fim sem follow-up, o fim sem capítulo subsequente – e a nossa finitude é uma finitude sem transcendência. É bom crer que a nossa morte não é o fim de tudo – que haverá um follow-up eterno em que o bem, o certo, a justiça serão recompensados, em que os conflitos, as guerras, o sofrimento, o mal deixarão de existir, em que o lobo conviverá pacificamente com o cordeiro e nos olhos não haverá nenhuma lágrima. Talvez por ser tão bom crer nisso que eu tenho medo de realmente crer — e prefira ficar no nível da fé-esperança… Segundo Paulo, há três virtudes básicas: a fé, a esperança, e o amor. Será que 2/3 delas não bastam?”

A Paloma cutucou de novo:

“Não crer por medo? Medo por ser algo tão bom? Quantas coisas tão boas temos recebido ainda em vida? Por que não as receberíamos depois da morte? Quantos milagres temos “vivido em vida”? Por que não os poderíamos ‘viver depois da morte’”?

Retruquei:

“Sabe quando você tem medo de acreditar em algo porque “it is too good to be true“? Sei que, muitas vezes, mesmo sem a crença, “it is true“. Tenho provas irrefutáveis disso (você sabe). Mas não aceito a validade de argumentos indutivos. O que já aconteceu muitas vezes no passado, pode não acontecer no futuro, exatamente em relação ao que, no esquema total das coisas, mais parece importar…”

O Vítor comentou:

“Bem lembrado sobre Paulo, tio. ‘Fé, esperança e amor’. Talvez sejam três virtudes básicas da humanidade, independente de cultura ou religião. Pra mim, até então, de forma breve, fé seria a preocupação mais decisiva e a decisão certa diante da preocupação; esperança, a paciência na vida e o trabalho constante para mudar; e amor, a aceitação do outro e de si mesmo. Parecem-me virtudes que somam qualidades positivas e nos fazem viver e conviver melhor. Se isto vai garantir uma vida após a morte? Talvez sim, talvez não… O medo da morte não pode ser o único motivo para viver estas virtudes básicas. Se de repente não houver nada após a morte, é melhor viver o paraíso aqui com a gravidade e a beleza destas virtudes (ou 2/3 delas) e esperar pela surpresa insondável da vida, do que antecipar um inferno aqui :-)”.

Retruquei:

“Obrigado por mais uma vez participar, Vitor. Concordo com você. Não sou mais, hoje, daqueles que acham que é ‘tudo ou nada’, ‘all or nothing at all’ (como cantava o incomparável ‘ol’ blue eyes’). Já fui. Hoje acho que 1/3 é melhor do que 0; 2/3 melhor do que 1/3; e que 3/3 talvez seja o ideal. Mas ainda sou suficientemente protestante/presbiteriano/calvinista para confessar que não acho que a fé seja simplesmente uma decisão da vontade: quero acreditar, vou acreditar, acredito. Na doutrina bíblica (na interpretação calvinista) a fé é dom, é graça, não é uma realização intelectual e conativa minha. Bela discussão para o nosso www.theologia.com.br…”

Ozimar Pereira voltou a participar:

“Talvez precise estudar um pouco mais, mas há linhas no Cristianismo que dizem que não há fim. A morte é apenas uma passagem e a vida apenas um de muitos estágios. Fé é acreditar nisso e não esperar um ressurgimento do pó no dia do Juízo Final… Enfim…”

Respondi:

“Pelo que sei, há tendências no Cristianismo que acreditam que, na nossa morte, apenas o corpo morre, e a alma (dos salvos, naturalmente) vai direto para os céus, ter com Deus (algo assim). Acredito que essa tendência tenha surgido em contextos influenciados pela doutrina da imortalidade da alma. Se a alma é imortal, apenas o corpo morre. E a alma, quando morre o seu corpo, tem de ficar em algum lugar. Como os cristãos majoritariamente rejeitam a doutrina da transmigração de almas (reencarnação), inferiu-se que a alma dos salvos vai direto para o céu e a dos condenados direto para o inferno. Não encontro base bíblica clara para essa doutrina. Há várias referências que dizem que os que morreram estão “dormindo”, mas isso não me parece base suficiente. Por outro lado, há passagens no Velho e no Novo Testamento que sugerem que somos pó e (quando morrermos) voltaremos a ser pó (sem fazer salvaguarda alguma para a alma). Os Testemunhas de Jeová, se bem me lembro, batem firme nessa tecla.”

Enfim. Uma discussão interessante.

6. Alexander Pope

É nesse contexto que entra o poeta que citei no início… Segundo Alexander Pope, no que ele diz e no que ele deixa explícito, “o estudo apropriado para quem é humano é o homem”, não Deus… E não devemos tentar nos conhecer imaginando que estamos vendo, em nós, a imagem de Deus. Na verdade, não conseguimos nem mesmo nos conhecer direito. A pouca sabedoria que somos capazes de alcançar é cheia de pontos obscuros e chega logo a pontos em que temos de admitir ignorância, por mais que imaginemos saber. Somos cheios de dúvidas, mesmo no tocante a nós, que deveríamos conhecer melhor do que ninguém: seremos basicamente bons ou basicamente maus, parentes dos deuses ou dos animais? Nossa mente domina o nosso corpo ou são nossos instintos mais básicos que condicionam o que desejamos, o que pensamos, o que consideramos certo? Será que a razão não passa de racionalização, será que nossas ideias mais nobres não são determinadas mais por nossas paixões do que por nossa razão? Será que não caímos até mesmo quando imaginamos subir?

7. O Liberalismo Teológico: Entendimento

Um dia desses (17/8/2015) publiquei em meu blog Liberal Space um artigo com o título “Elucubrações Perigosas” [14]). Recebi uma resposta interessante (que, infelizmente, não cabe aqui citar e discutir). Quando a recebi (em 7/9/2015) já havia postado no meu perfil no Facebook um post (o que fiz em 5/9/2015) que veio a se tornar um artigo no blog Liberal Space com o título “A Teologia Liberal” [15]. Esse post / artigo (que transcrevo, abaixo, no essencial) sugere, de certo modo, uma resposta a algumas das questões que eu havia levantado no artigo anterior (“Elocubrações Perigosas”) e que foram objeto de consideração pelo meu comentarista. Por isso o transcrevo aqui, nos sete parágrafos a seguir.

“Uma das principais contribuições da Teologia Liberal do fim do Século 19 e começo do Século 20, iniciada por Friedrich Schleiermacher, foi uma verdadeira Revolução Copernicana — independentemente de se aceitar ou não a tese.

Segundo a Teologia Liberal, a religião, em geral, e o Judaísmo e o Cristianismo, em particular, não representam, na realidade, movimentos de Deus na direção do homem (revelação, redenção, etc.), mas, sim, movimentos na direção oposta, do homem em busca de Deus, daquele que é finito (em poder, em conhecimento, em bondade) em busca do infinito (em poder, em conhecimento, em bondade). A religião, entre outras palavras, não é a busca que Deus faz do homem — mas a busca de Deus (ou de um deus) por parte do homem.

A religião, por conseguinte, não é a erupção do sobrenatural na ordem natural, mas a tentativa da ordem natural de transcender a si própria e irromper naquilo que lhe (digamos) “sobrejaz” — que seria o sobrenatural. É a busca que faz o imanente de uma ordem transcendente que explique o que aqui acontece e lhe dê sentido.

É por isso que Rubem Alves (O que é Religião?) e outros definem a religião (sagrada ou secular) como uma busca de sentido para a vida.

Consequentemente, nessa visão, os chamados livros sagrados, entre os quais a Bíblia, não contêm a palavra de Deus, mas, sim, a palavra humana que relata essa busca de Deus por parte do homem. Como palavra humana, nem sequer se cogita que o relato possa ser inerrante ou infalível.

Aí está o maior desafio que a Teologia Liberal colocou à Teologia Tradicional. Ela não estava no apontar erros ou incoerências particulares de fato ou de valor na Bíblia (embora isso fosse feito), mas, sim, no esforço de “dessupernaturaliza-la”, de “desdiviniza-la” – naturalizando-a e humanizando-a.

Como é que a Teologia Tradicional enfrenta um desafio desses?”

8. O Liberalismo Teológico: Legado

No artigo “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”, publicado em meu blog Liberal Space [16] em 4/7/2015, discuto o pensamento de Ernst Schleiermacher, Ernst Troeltsch e Adolf von Harnack, que (exceto pela ausência de Albrecht Ritschl) são os principais teólogos liberais do Século 19. Não vou resumir aqui o que disse sobre cada um deles naquele artigo. Mas vou transcrever aqui a última seção do artigo, em que resumo o que chamei de  “O Legado da Teologia Liberal”.

Dado o caráter da Teologia Liberal, especialmente como revelado nos autores discutidos naquele artigo, não é difícil entender a ameaça que ela colocava (e ainda coloca) ao Cristianismo Ortodoxo. O Liberalismo Teológico se caracteriza, a meu ver, por uma série de teses, a saber:

  • O Cristianismo não é uma religião única e totalmente diferente de outras: na verdade, ele é uma religião histórica, como todas as outras;
  • A evolução histórica do Cristianismo se deu em contato com o seu ambiente, contato através do qual ele deu e recebeu, influenciou e foi influenciado, numa dialética de acomodação;
  • O Cristianismo, como religião, não se baseia numa revelação de Deus para o homem, mas, sim, na busca do homem pelo infinito;
  • Conhecer a Deus é, na realidade, conhecer os sentimentos que levam o homem a tentar transcender sua limitação, sua dependência, sua finitude;
  • O núcleo essencial do Cristianismo está localizado na mensagem ética de Jesus que afirma que o amor a Deus se expressa no amor ao próximo;
  • A ética cristã não consiste de uma série de princípios ascéticos que determinam o afastamento do mundo, mas, sim, numa disposição e intenção pura voltada para implantar a unidade espiritual entre os homens e para criar uma rede básica de serviço ao próximo;
  • No Evangelho simples de Jesus (em contraposição à ortodoxia complexa do Catolicismo) dogmas e doutrinas não têm lugar, sendo substituídos pelo amor a Deus que se expressa no serviço ao próximo.

9. A Fé: Escolha Humana ou Dom Inexplicável?

Num artigo intitulado “A Fé e as Obras”, publicado no meu blog Liberal Space [17] em 2/9/2015, relato uma discussão que é relevante como seção final (antes da Conclusão) deste artigo mais amplo.

Um amigo meu no Facebook, Wilson Cavalcanti, católico, transcreveu, em um post, um trecho da Carta de Tiago (capítulo 2, versículos 14-26), me pedindo que, como representante da tradição protestante (em especial da tradição reformada, ou calvinista, ou presbiteriana), me pronunciasse sobre o assunto. Esclareceu que a posição de Tiago lhe parecia, como bom católico, bastante razoável.

A passagem que ele cita (apenas para facilitar) é a seguinte:

A FÉ SE MOSTRA NA PRÁTICA

  1. Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não tem as obras? A fé seria capaz de salvá-lo?
  2. Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia;
  3. Se então algum de vós disser a eles: “Ide em paz, aquecei-vos” e “Comei à vontade”, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adianta isso?
  4. Assim também a fé: se não se traduz em ações, por si só está morta.
  5. Pelo contrário, assim é que se deve dizer: “Tu tens a fé, e eu tenho obras! Mostra-me a tua fé sem as obras, que eu te mostrarei a minha fé a partir de minhas obras!
  6. Tu crês que há um só Deus? Fazes bem! Mas também os demônios creem isso, e estremecem de medo.
  7. Queres então saber, homem fútil, como a fé que não se traduz em obras é vã?
  8. Se o nosso pai Abraão foi declarado justo, será que não foi por causa de suas obras, a ponto de oferecer seu filho Isaac sobre o altar?
  9. Como estás vendo, a fé concorreu para as obras, e as obras completam a fé.
  10. Foi assim que se cumpriu a Escritura que diz: ‘Abraão teve fé em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça’, e ele foi chamado amigo de Deus”.
  11. Podeis ver, pois, que alguém é justificado com base naquilo que faz e não simplesmente pela fé.
  12. Não foi a prostituta Raab, da mesma forma, considerada justa em virtude de sua ação, quando hospedou os que vinham reconhecer a região e os fez regressar por outro caminho?
  13. Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta.

A seguir, o que comentei…

Esse é um tema controvertido, em que a Igreja Católica e as principais Igrejas Protestantes em geral diferem em alguns aspectos considerados (por elas mesmas) importantes.

Como historiador da doutrina, como historiador do pensamento cristão, vou discuti-las sem me posicionar pessoalmente em relação às questões envolvidas.

Nenhum dos lados (católicos e protestantes) nega que o ser humano, pecador, precisa de FÉ em Cristo (na eficácia da morte de Cristo na cruz) para ser considerado (imputado) justo – isto é, para ser justificado (salvo ou redimido).

A controvérsia surge em relação ao papel das OBRAS no contexto da justificação (salvação ou redenção) do ser humano, criando a questão chamada de “a fé e as obras”.

Antes de ir adiante, deixe-me esclarecer que a questão “da fé e das obras” pode ser suscitada em dois contextos.

O primeiro é o mencionado: o contexto das pré-condições para a justificação (salvação ou redenção) do ser humano. Como diz a história relatada em diversos lugares nos três primeiros Evangelhos (de forma não muito coerente): “o que devo fazer para alcançar a vida eterna?” (vide Mateus 19:16 [um moço], Marcos 10:17 [um homem], Lucas 18:18 [certo homem de posição]).

O segundo é o contexto que poderia ser chamado das pós-condições da justificação (salvação ou redenção): o que fazer (ou como viver) depois da justificação (salvação ou redenção), ao longo da vida cristã? Esse contexto é às vezes chamado de o contexto da santificação (em contraposição ao contexto da justificação).

Nesse segundo contexto, nenhum dos dois lados nega que é preciso manter (preservar) a FÉ e exibir boas OBRAS.

A controvérsia, portanto, se situa basicamente em relação ao papel das obras (o da fé ninguém nega) no contexto da justificação (salvação ou redenção).

A Igreja Católica em regra está mais próxima da posição de Tiago (e da posição do próprio Jesus nos Evangelhos – vide as passagens mencionadas), afirmando que, para a justificação (salvação ou redenção) do ser humano, são necessárias as duas coisas: fé E obras. Essa posição parece sensata e correta, especialmente diante do que diz Tiago (e do que diz Jesus nos Evangelhos: “segue os mandamentos, … vende o que tens e dá aos pobres”, e, depois, “vem e segue-me” – esta última exigência parece corresponder à fé; as duas primeiras, às obras).

As Igrejas Protestantes foram muito influenciadas pela tese de Lutero (oriunda em Paulo e defendida, antes de Lutero, por Agostinho, e, depois de Lutero, por Calvino) de que, por causa da queda (do pecado original) de Adão e Eva, a natureza humana ficou tão corrompida (depravada, é o termo que por vezes usam) que o ser humano não consegue fazer absolutamente nada para, por seus próprios méritos, conseguir ser justificado (considerado justo): nem fazer boas obras (seguir os mandamentos, ajudar os pobres, etc.) e, o que é mais surpreendente, nem mesmo ter fé. A sua justificação se dá exclusivamente por decisão e pela ação de Deus – é um ato unilateral da graça divina. A doutrina protestante (de boa parte deles) é da justificação exclusivamente pela graça divina (sola gratia) – embora às vezes se diga que seja “justificação pela fé” (sola fide), algo que comentarei na sequencia. (Como é que pode ser “sola gratia” e ao mesmo tempo “sola fide” é um problema sério – a menos que seja “só” pelas duas coisas).

Nesse contexto surge outro problema sério: se a justificação se dá exclusivamente por decisão e pela ação divina, sem participação humana, por que alguns são justificados (salvos ou redimidos) e outros não? A resposta protestante é complicada e os principais reformadores, Lutero e Calvino, diferem um pouco um do outro, em termos de ênfase e sensibilidade. Mas de forma resumida a resposta protestante é a seguinte:

  • Todos os seres humanos são pecadores (pela ação de Adão e Eva, cuja culpa é transmitida aos seus descendentes – doutrina do pecado original);
  • O pecado original contaminou de tal maneira o ser humano que sua natureza ficou totalmente corrompida, tornando-o absolutamente incapaz de obter, por seus próprios méritos, a sua justificação (salvação ou redenção);
  • Assim, todos os seres humanos merecem a condenação eterna (em outras palavras, merecem padecer no inferno para todos os tempos – a chamada doutrina das “penas eternas”);
  • No entanto, Deus, em sua infinita soberania, e em decorrência de sua perfeita bondade (misericórdia, etc.), decidiu (escolheu, elegeu) salvar alguns seres humanos dessa agonia eterna e enviou seu filho para morrer na cruz, e, por sua morte, expiar os pecados dos escolhidos ou eleitos, justificando-os (salvando-os, redimindo-os) e dando-lhes, por assim dizer, um novo começo, um novo nascimento, uma nova vida.

É isso. Fim da história. É essa a doutrina da justificação exclusivamente pela graça (sola gratia).

Há vários problemas evidentes nessa doutrina – o maior deles sendo a aparente injustiça, da parte de Deus, de escolher e eleger apenas alguns para se beneficiar da morte sacrificial de seu filho. Por que não todos? (Os calvinistas mais radicais afirmam que Deus escolheu (elegeu) e predestinou alguns para a salvação e outros para a perdição eterna – esta a chamada doutrina da “dupla predestinação”, que tem causado tanta celeuma entre protestantes, em geral, e presbiterianos, em particular). E contendem que isso não envolve injustiça alguma porque todos estavam condenados: salvar alguns (mesmo que não todos) já é evidência insofismável (segundo eles) do amor incomensurável de Deus, e da vitória de sua graça sobre uma justiça inexorável (que exigiria que todos fossem condenados). Acho pouco convincente o argumento.

Aqui entram algumas tentativas de amenizar a crueza da doutrina da justificação pela graça – acrescentando a dimensão “fé”. Nessa versão amenizada, Deus enviou seu filho para, pela sua morte sacrificial, justificar (salvar ou redimir) TODOS os pecadores (não apenas os eleitos). Mas, para se beneficiar do sacrifício de Jesus, o ser humano tem de crer (ter fé) em sua eficácia. Assim, a justificação é, sem dúvida, pela graça (sola gratia), mas também  MEDIANTE a fé (sola fide) – há um jogo com as preposições “por” e “mediante”, embora no Latim elas inexistam (usa-se simplesmente o chamado caso Ablativo). Quem tiver fé na eficácia do sacrifício de Jesus é justificado (salvo ou redimido), tem seus pecados expiados (“lavados pelo sangue do Cordeiro” – Vide Apocalipse 7:14). Quem não tiver essa fé, está (merecidamente) perdido. A fé se torna, consequentemente, importante – na verdade, essencial. (Muitos calvinistas ortodoxos consideram essa saída uma heresia, chamando essa solução de pelagiana ou arminiana – a primeira uma heresia condenada pela Igreja Católica, lá atrás, a segunda condenada pela Igreja Reformada ou Presbiteriana, no Século 17 – Sínodo de Dort, na Holanda, em 1619 [18].

Parece um bom remendo – ainda que não (pelo menos na aparência) perfeitamente compatível com tudo o que a Bíblia e os reformadores clássicos de linha calvinista afirmam.

[Quando falo em “remendo”, tenho em mente um remendo no sentido lógico, mais do que no sentido cronológico, pois ele já vem de longe, lá das cartas paulinas. Haja vista o que diz Paulo em Efésios: “Pois pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (2.8).]

Mas aí surge uma outra série de questões: e a decisão de acreditar ou não, de ter fé ou não, é inteiramente do ser humano? Se for, parece que o ser humano tem, afinal, por essa decisão, alguma participação (algum mérito) na sua justificação (salvação ou redenção). Se não for, o problema continua… Por que Deus dá fé a alguns e não a outros?

Alguns reformadores parecem ter defendido a tese de que a fé (crer ou não crer, eis a questão), como decisão unilateral do ser humano, é necessária, mas não configura participação (mérito) em sua justificação (salvação ou redenção). É apenas um “ato passivo” (parece meio contraditória a noção) de aceitação. A justificação (salvação ou redenção) continua ação (obra) exclusiva de Deus. Essa posição é por vezes chamada de monergista (ergo – ação; mono – de um só, a saber, Deus).

Os mais radicais dos calvinistas, monergistas até a medula, afirmam que mesmo a fé é um dom de Deus e que, quando Deus, pela sua graça, dá esse dom de fé a alguém, este alguém não tem como recusa-lo, não tem como resistir a Deus – esta a doutrina da “irresistibilidade da graça”; e, aceitando o dom da fé, como não teria alternativa, também não tem, depois, a possibilidade de abrir mão dele – a doutrina da “perseverança [inevitável] dos santos”. Complicado.

Outros cederam um pouco e admitiram que a doutrina de que o pecado original produziu a total corrupção (depravação) da natureza humana era exagerada, e admitiram que o arbítrio humano continuou livre para aceitar ou rejeitar o dom (gratuito) de Deus e que essa aceitação ou rejeição configura uma participação, ainda que pequena, do ser humano em sua própria justificação (salvação ou redenção). Essa posição é por vezes chamada de sinergista (ergo – ação; sim – com, em grego), pois envolveria um certo nível de cooperação entre Deus e o ser humano – a participação deste seria bastante minoritária, embora, segundo os sinergistas, inegável. Assim, a fé é uma realização (ou obra) humana – donde a justificação vem pela graça, mediante a fé [19].

Essa explicação toda não esclarece, porém, a questão original. OK, a fé pode ser vista como uma obra, mas e as chamadas “boas obras”, propriamente ditas, o cumprir os mandamentos, o ajudar os pobres, os órfãos, as viúvas, etc. Como ficam? São necessárias para a justificação (salvação ou redenção)? Para os protestantes, em geral, a resposta é, claramente, não. MAS, segundo eles, essas boas obras seguem, naturalmente, a justificação (salvação ou redenção), decorrem dela, pois esta “regenera” o ser humano, faz com que ele “nasça de novo”, dá-lhe uma nova natureza, etc., que, embora não o torne perfeito, sem pecado, o capacita (sempre com a assistência indispensável do Espírito Santo) a viver uma vida santificada, que implica o cumprimento dos mandamentos, a disposição de ajudar os outros, etc.

É isso. Tentei ser o mais claro possível navegando por uma questão complicada. Provavelmente vai haver algum protestante (possivelmente da variedade “evangélica”) que discorde de minha interpretação da questão, mas, se isso ocorrer, estou disposto a defender minha interpretação dessa delicada questão.

Fim da transcrição livre (editada e modificada aqui e ali).

10. Conclusão

Escrevi um artigo longo, aproveitando vários outros artigos escritos anteriormente, para explicar por que me considero, hoje, e, de certo modo, desde 1965 (com alguns momentos meio longos de interrupção em que não me considerei, teologicamente, nada), um liberal do ponto de vista teológico. Aqui resumo minhas conclusões para aqueles que possam ter se perdido nos meandros da discussão. [O fechamento está meio desordenado e pretendendo organiza-lo melhor futuramente. Blogs nos dão essa enorme vantagem em relação ao texto impresso, a de poder mexer no texto à vontade, algo que faço “liberalmente”, mas sempre deixando o devido registro. Aprendi isso com Popper.]

Considero-me liberal, em primeiro lugar, porque (olhando em retrospectiva) concordo, basicamente, com as teses poeticamente levantadas por Alexander Pope no Século 18.

Considero-me liberal, em segundo lugar, porque, quando fiz meu Doutorado, concentrei-me em outra figura britânica nobre do Século 18, David Hume, escocês que também, à sua maneira (não era poeta, mas filósofo, e um filósofo que pretendia lançar as bases das Ciências Humanas, da mesma forma que Isaac Newton teria feito em relação às Ciências da Natureza), procurou mostrar que o ser humano deve estudar as coisas relacionadas ao homem e ao ambiente humano (a sociedade) e natural (a natureza) em que o homem vive. Segundo ele, o ser humano não tem condições de se aventurar além daquilo que nos é dado na experiência – exceto para discutir o significado (arbitrário, porque definido pelo homem) de palavras e outros símbolos (como os usados nas Matemáticas). Diz ele, nos dois parágrafos finais do seu livro An Inquiry Concerning Human Understanding (Uma Investigação Acerca do Entendimento Humano), publicado em 1748:

“Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos:

Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões” [20].

Fui influenciado profundamente pela crítica à metafísica e à teologia que David Hume fez – crítica essa que influenciou também a Emanuel Kant, o mais famoso dos filósofos alemão (no Século XVIII e desde então). Minha tese teve o título David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of the Christian Thought. O longo título expressa bem o conteúdo.

O Fideísmo Irracionalista e a Teologia Liberal foram os dois principais modos em que o Pensamento Cristão procurou responder à crítica devastadora de Hume, a partir do Século XIX.

Nunca consegui ter nenhuma simpatia para com posturas irracionalistas como a do Fideísmo Irracionalista à la Kierkegaard – embora sempre tenha tido simpatia filosófica pelos céticos, como Pierre Bayle e Hume. Mas Hume era (como também Bayle, que ele admirava muito) um “cético mitigado”, como ele mesmo se descrevia – um cético razoável, como eu prefiro descreve-lo.

Assim, sempre tive preferência pelo Liberalismo Teológico. Iniciei-me nele através de Rudolf Bultmann, por volta do ano de 1965, quando eu cursava o segundo ano do Seminário Presbiteriano de Campinas. Relato essa história no artigo mencionado na Nota 16, especialmente nas Seções 4 e 5.

Houve um momento, cerca de 25 anos depois, em que me questionei seriamente se o Liberalismo ainda era uma teologia cristã – ou se se tratava, como sugeriu o expoente mais interessante do movimento fundamentalista, John Gresham Machen, em seu livro Liberalism, de 1923, que vim descobrir muito mais tarde, realmente de uma nova religião (ou, pior, um humanismo ateu disfarçado de religião).

Foi nesse contexto que, em 1990, escrevi um artigo que, para fim foi muito importante como marco de referência, com o título How Far Can a Doctrine Change Without Becoming Something Else? (Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem que se Torne Alguma Outra Coisa?), apresentado na Second Assembly of the World’s Religions, em Los Angeles, naquele mesmo ano. Vide, nesse contexto, o meu artigo mencionado na Nota 16, Seção 2, para o relato do episódio e as referências ao artigo de 1990, tanto em sua publicação original, impressa, como em sua transcrição digital em meu blog Liberal Space.

Depois de um bom tempo, já lá se vão outros 25 anos, à medida em que voltei a estudar, e a estudar melhor, os grandes autores liberais, em especial Schleiermacher, Troeltsch e Harnack, convenci-me de que o Liberalismo era, sim, uma tentativa legítima e válida de “acomodar” (como dizia Troeltsch) o Cristianismo a uma nova cultura, naturalista e secular, filha do Iluminismo, como é a nossa. (Em geral ignoro o chamado Pós-Modernismo — em outro artigo esclarecerei por quê).

A alternativa ao Liberalismo seria, como já disse, o Fideísmo Irracionalista que via a fé como “Um Salto no Escuro”, que eu não conseguia aceitar, e o Fundamentalismo, que, por rejeitar as mudanças que eu havia aceitado de coração, sempre me pareceu repugnante em suas versões mais clássicas e pouco convincente em suas versões aparentemente mais “racionalistas” e modernosas, entre discípulos de Charles Hodge (e até mesmo o próprio, que, morto há bem mais de cem anos, continua vivo em certos círculos teológicos — e que eu, convenhamos, até gosto bastante de ler).

E aqui estou — meio humeanamente cético mas, também, sempre disposto a buscar e investigar; e nunca (espero) dogmático e intolerante, como frequentemente são os que já se acham donos da verdade.

NOTAS

[1]  W. W. Norton & Company, New York, 1992. O livro tem um subtítulo: A Natural History of Mating, Marriage, and Why We Stray. O título e subtítulo, na minha interpretação para o Português, deveriam ser: Anatomia do Amor: Uma História Natural do Sexo e do Casamento e das Razões Por Que Nos Desviamos dos Padrões. A tradução para o Espanhol, porém, optou por traduzir o título e o subtítulo como: Anatomía del Amor: Historia Natural de la Monogamia, el Adulterio y el Divorcio. O título da tradução para o Português (Editora Eureka, 1995) seguiu o da tradução para o Espanhol: Anatomia do Amor: A História Natural da Monogamia, do Adultério e do Divórcio. Consta que uma nova edição, completamente revista e expandida, está para ser colocada em venda, em Inglês, em Fevereiro de 2016. Vide, na Amazon, o URL http://www.amazon.com/gp/product/0393285227.

[2] Os quatro artigos foram originalmente publicado na revista Harper’s Magazine, no ano de 1959 (nos meses Maio, Fevereiro, Abril e Março, respectivamente). Tenho-os republicados no livro Essays of Our Time, editado por Leo Hamalian & Edmond L. Volpe (McGraw-Hill Book Company, New York, 1960). A tese de Bartley foi expandida e elaborada em seu magnífico livro The Retreat to Commitment (“A Retirada para o Comprometimento”), (Alfred A. Knopf, New York, 1962; Chatto & Windus, London, 1964; 2nd edition revised and expanded, Open Court Publishing Company, La Salle, 1984). O livro foi traduzido para o Alemão com um título, para nós, mais sugestivo: Flucht ins Engagement: Versuch einer Theorie des offenen Geistes (“Fuga Para Dentro do Engajamento: Uma Teoria Tentativa do Espírito Aberto”), (Szczesny, München, 1962). Em Alemão houve uma segunda e edição,  publicada em 1964 com o mesmo título e pela mesma editora, e uma terceira edição, publicada em 1987, agora pela editora Mohr Siebeck, Tübingen, que tem um subtítulo curiosamente diferente, para justificar mais material incluído: Die Einheit Der Gesellschaftswissenschaften (“A Unidade das Ciências Sociais”).

[3] Tempo e Presença, Publicação do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), Número 169, Julho de 1981, pp.22-26. O artigo está transcrito em dois de meus blogs: Liberal Space e Theological Space; vide http://liberal.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves (no primeiro caso) e https://theological.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves/ (no segundo).

[4] “Meu Credo Liberal”: http://liberal.space/2015/10/12/meu-credo-liberal/.

[5] Vide também http://liberal.space/about-2/, para uma versão anterior do Credo. (As modificações são poucas e pequenas).

[6] Skinner House Books, Boston, 2005.

[7]  “A Fé, a Esperança e o Amor”: http://liberal.space/2014/03/15/a-fe-a-esperanca-e-o-amor/.

[8] Vide Paul Tillich, Ultimate Concern: Tillich in Dialogue, editado por D. Mackenzie Brown (Harper Books, New York, 1965, 1970).

[9] Vide Paul Tillich, Dynamics of Faith (Harper Books, New York, 1957). Vide também Paul Tillich, The Courage to Be (Yale University Press, New Haven, 1952).

[10] “Epistemologia da Fé – 1”: http://liberal.space/2010/05/29/epistemologia-da-fe-1/.

[11] “Epistemologia da Fé – 2”: http://liberal.space/2010/05/31/epistemologia-da-fe-2/.

[12] Essa distinção foi colocada e valorizada por Karl R. Popper em The Logic of Scientific Discovery (publicado em Alemão como Logik der Forschung em 1934 e apenas muito depois traduzido para o Inglês e para outras línguas, como o Português, no caso como Lógica da Pesquisa Científica) e em Conjectures and Refutations (coletânea de artigos publicada  originalmente em Inglês e rapidamente traduzida para outras línguas, como o Português, sob o título Conjeturas e Refutações). Para Popper, o maior epistemólogo e filósofo da ciência do século 20, e orientador do doutorado de meu orientador de doutorado (e, portanto, meu “avô intelectual”…), “o contexto da descoberta” é irrelevante para a epistemologia (embora relevante para a história, psicologia e sociologia da ciência); para a epistemologia apenas importa “o contexto da validação” (também chamado de “o contexto da justificação”). A chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget é, no entender de Popper, um contrassenso – embora a expressão “psicologia genética” faça sentido.

[13]  Compare-se Hans Vaihinger, Die Philosophie des Als Ob (“A Filosofia do Como Se“), de 1911.

[14] “Elucubrações Perigosas”: http://liberal.space/2015/08/17/elucubracoes-perigosas/.

[15] “A Teologia Liberal”: http://liberal.space/2015/09/07/a-teologia-liberal/.

[16] “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”: http://liberal.space/2015/07/04/literalismo-hermeneutica-e-liberalismo/

[17]  “A Fé e as Obras”: http://liberal.space/2015/09/02/a-fe-e-as-obras/.

[18] Vide http://www.monergismo.com/textos/credos/sinodo_dort_witt.htm e,  também, http://www.mackenzie.br/7057.html.

[19] Vide na Internet várias discussões dessa controvérsia, entre elas a seguinte, para selecionar apenas uma, que não é objetiva, mas partidária: http://textosdeteologiaefilosofia.blogspot.com.br/2013/02/monergismo-versus-sinergismo-por-norman.html.

[20]  Confira http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/hume.html#22.

Em Salto, 5-6 de Dezembro de 2015.

Como É que Eu Sei? O Desafio da Modernidade

[Mais um artigo que publiquei primeiro em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

1. O Conhecimento Face à Dúvida e ao Ceticismo

Consta que Kant, tido como o principal Filósofo da Modernidade, teria um dia escrito que os grandes problemas da Filosofia são (eu adapto):

  • Quem sou?
  • De onde venho?
  • Que faço aqui?
  • Para onde vou?
  • Como é que eu sei?

Desses cinco problemas, o último é o mais básico, porque perpassa os outros quatro — e a si próprio:

  • Como é que eu sei quem sou (se é que de fato eu sei)?
  • Como é que eu sei de onde venho (se é que de fato eu sei que venho de algum lugar)?
  • Como é que eu sei o que faço aqui (se é que de fato eu sei que faço alguma coisa aqui)?
  • Como é que eu sei para onde vou (se é que de fato eu sei que estou a caminho de algum lugar)?
  • Como é que eu sei essas coisas (se é que de fato eu as sei; e se eu as sei, como é que eu sei que sei)?

O problema do conhecimento se tornou uma obsessão para a Filosofia Moderna — a filosofia feita mais ou menos a partir da primeira metade do Século 17. René Descartes é considerado o Pai da Filosofia Moderna, e ele viveu de 31 de Março de 1596 a 11 de Fevereiro de 1650 — quase 54 anos. Ele inventou a “Dúvida Metódica”: colocar em dúvida tudo o que ele achava que sabia. . .

Reconhecer esse fato não implica, de forma alguma, que não tenha havido grandes discussões do problema do conhecimento antes do Século 17. Os gregos, em especial seus dois principais filósofos, Platão (que, provavelmente, nasceu em 428 e morreu em 348, AC, vivendo, portanto cerca de 80 anos) e Aristóteles (que nasceu em 384 e morreu em 322, AC, vivendo, portanto, 62 anos) discutiram muito esse problema — e outros correlatos. Data dessa época a famosa discussão acerca da distinção entre conhecimento (ἐπιστήμη ou γνῶσις) e opinião ou “achismo” (δόξα).

Mas foi no início da Era Moderna que o problema do conhecimento se tornou (para alguns) uma questão (quase) de vida e morte: Como é que eu sei que é a Terra que gira ao redor do Sol e não o Sol ao redor da Terra (como parece aos nossos sentidos e, antes do Século 15, sempre se acreditou)? Consta que Galileu Galilei (1564-1642), quando a Igreja Católica decidiu combate-lo, optou (para escapar da fogueira) por concordar com ela, afirmando continuar a acreditar que era o Sol que girava ao redor da Terra. Mas, para si mesmo, admitiu: “Mas eu sei que é a Terra que se move ao redor do Sol”. . .

Mas a questão epistemológica continuava: “Como é que eu sei que é a Terra que gira ao redor do Sol, quando para os meus órgãos dos sentidos é o Sol que parece girar ao redor da Terra?”. . . Com base em que eu abandono aquilo que eu pareço ver para acreditar numa teoria?

Essa questão foi se radicalizando (embora também essa radicalização tenha raízes gregas). . . Se, neste caso, eu posso deixar de acreditar na minha percepção sensorial, como é que eu sei que aquilo que eu pareço estar vendo na minha frente em qualquer ocasião de fato existe numa realidade externa a mim, e não é um simplesmente um “fantasma”, um “fenômeno”, uma “alucinação” que tem lugar exclusivamente na minha mente? Quando eu sonho, refletiu Descartes, eu imagino estar vendo toda sorte de coisas, pessoas, eventos — mas tudo aquilo está apenas dentro da minha mente, enquanto eu durmo, tranquilo, de olhos cerrados, numa cama confortável. Como é que eu sei que minha vida inteira, com todas as suas atrações, peripécias e perigos não é tão somente um sonho de minha mente, sonho que se desenrola enquanto eu durmo numa caminha simples, numa casa não atraente, e nunca realmente vivenciei, de fato, peripécias e perigos?

O problema vai além. . .

Até o início da Idade Moderna a maioria das pessoas acreditava que algumas coisas (estados de coisas, pessoas, etc.) são belas, outras feias. . . e que essas características, beleza e feiura, existem nas próprias coisas, a distinção entre o belo e o feio sendo real e objetiva. Mas várias pessoas, na Idade Moderna, passaram a acreditar que, de fato, “a beleza está no olho de quem olha. . .”. David Hume (1711-1776), filósofo escocês sobre o qual eu escrevi minha tese de doutoramento, de 1970 a 1972, que, segundo alguns, é o maior filósofo da língua inglesa que viveu até hoje, disse “A beleza não existe nas coisas, mas na mente que as contempla”. (Note-se que ele nem diz “na mente de quem as contempla”).

Mas o problema se estende ainda mais. . .

Até o início da Idade Moderna a maioria das pessoas acreditava que algumas ações são moralmente certas e outras, moralmente erradas, e isto em sua própria natureza, enquanto ação, sendo a distinção, portanto, entre ação moral e ação imoral, objetiva e absoluta (“absoluta” querendo dizer que não varia dependendo do tempo, do lugar, das circunstâncias). Mas várias pessoas, na Idade Moderna, passaram a acreditar que o certo e o errado, na moralidade, não está nas ações em si mesmas, mas, como já se reconhece no tocante aos hábitos alimentares, às vestimentas, e a outros usos e costumes, nos gostos e nas preferencias das pessoas, naquilo que elas optam por favorecer, naquilo que elas consideram atraente ou repulsivo, agradável ou detestável. Bertrand Russell (1872-1970), por muitos considerado o maior filósofo da língua inglesa depois de Hume, e por alguns incautos considerado uma das âncoras morais do Século 20, indagado acerca do que, nas ações de Hitler, ele considerava moralmente condenável, esclareceu que aquilo que o levara a se opor a Hitler era o fato de que ele não gostava do que Hitler havia feito. . . (Fica a implicação intrigante e mesmo revoltante: se uma outra pessoa gostasse do que Hitler havia feito, nada haveria, do ponto de vista moral, filosófico ou racional, que pudesse ser utilizado por Russell para convence-la de que estava, de fato, errada — pois gosto não se discute, de gustibus non est disputandum).

Russell era chamado de “O Hume Moderno”. Concordava com seu mestre que, na moralidade, não existem valores reais, objetivos, absolutos, mas apenas meros gostos e preferencias, explicáveis em termos de nossos sentimentos e sensações de atração ou repulsa.

Hume também está na raiz de uma crença ou postura, bastante difundida no Século 20, de que a razão é uma faculdade preciosa, mas que ela é apenas “instrumental”, isto é: opera apenas no “reino dos meios”, não no “reino dos fins”. Assim, dado um fim qualquer, a razão (da qual faria parte a chamada “razão científica”) tem condições de determinar quais os melhores meios de alcança-lo. Mas a razão, sendo instrumental, não tem condições de avaliar se o fim em questão é bom, correto, digno, ou melhor do que qualquer outro fim. . . Se o fim é o poder a qualquer preço, a razão pode ditar os meios a serem utilizados para que esse fim seja alcançado, mas fica silente quanto aos méritos do fim em si. . .

Se é parte da herança da Modernidade que devemos duvidar até mesmo das coisas que observamos, manter-nos céticos até mesmo acerca daquilo que vemos, quanto maior será a dúvida e o ceticismo dos modernos acerca do inobservável, do invisível, daquilo que, por definição, jaz além da observação dos sentidos? Se o natural cai dentro do reino da dúvida e do ceticismo, o sobrenatural e o metafísico ficam totalmente fora do admissível. Aí se incluem Deus, espíritos em geral, ruins ou bons, a alma humana e sua suposta imortalidade. . . Para ser imortal, a alma teria de existir — e como é que eu sei que ela existe, como é que eu sei que, possivelmente, não é apenas o cérebro e o seu sistema nervoso que explica tudo? E se a alma é apenas o cérebro, ela morre com ele e a questão da imortalidade da alma não faz sentido.

2. E a Fé uma Alternativa Viável?

Diante da defesa, por parte da Filosofia Moderna (com o apoio da Ciência Moderna), da dúvida e do ceticismo em relação à religião, em geral, e ao sobrenatural, em particular, ficou difícil, para os teólogos cristãos, continuar a manter a tese de que a razão tem um papel importante na Teologia Cristã.

A. Razão e Fé em Pé de Relativa Igualdade

Tradicionalmente, tínhamos, na Teologia, pelo menos desde Tomás de Aquino (1225-1274), a defesa de uma síntese entre a Razão e a Fé, ou entre a Razão e a Revelação.

Segundo Tomás de Aquino, há basicamente duas formas de conhecer a Deus — e, consequente, de fazer Teologia. Uma, baseada na razão, outra baseada na revelação. Essa tese era importante para ele porque ela permitia que até mesmo os que viveram muito antes do Cristianismo não tivessem desculpa para não acreditar em Deus. A razão humana, desassistida da revelação, e, por conseguinte, da fé, seria capaz de determinar que Deus existe e quais são suas características negativas essenciais (embora a razão não seja capaz de ir além da existência e da negação de algumas características essenciais: Deus não é material, não é corpóreo, não é mortal, não é falível, não é mau, não é ignorante, não é limitado, etc.). Tomás escreveu uma obra inteira apenas desse tipo de Teologia Natural Negativa: a Summa Contra Gentiles.

Para irmos além desse mínimo, é necessário que Deus se revele — e, felizmente, segundo Tomás de Aquino, ele o fez. Essa revelação está contida na Bíblia, que deve ser entendida como a sua palavra. Para Tomás, a Bíblia pressupõe a razão e nunca vai contra ela — indo, porém, além dela, sem a contradizer. Para ele, em relação à razão, é possível diferenciar três tipos de enunciados:

  • Secundum rationem: aquilo que é racional, pois é derivado da razão;
  • Contra rationem: aquilo que é irracional, pois contraria a razão;
  • Supra rationem: aquilo que é não é nem racional (secundum rationem) nem irracional (contra rationem), porque está além da razão (supra rationem), tendo nós boas razões para aceita-lo.

A revelação se encaixa nessa terceira categoria: o conteúdo da revelação não contraria a razão: se aparentar faze-lo, devemos interpreta-lo de outra forma, de modo a que deixe de contrariar a razão.

Não poderíamos nós, diante de algo que não é nem racional nem irracional, simplesmente suspender o nosso juízo e nem aceitar nem recusar, nem crer nem descrer? Tomás é contra essa postura, por pelo menos três razões:

  • Primeiro, porque o conteúdo da revelação, embora não alcançável pela razão, enriquece e apoia o que nossa razão é capaz de descobrir acerca da moralidade, da vida, etc.
  • Segundo, a epistemologia de Tomás de Aquino deixava aberta a possibilidade de milagres, não os definindo como impossíveis, muito menos como incríveis;
  • Terceiro, porque o conteúdo da revelação traz, consigo, evidências de autoria divina, como por exemplo, os milagres que teriam acompanhado essa revelação. [Tomás não se preocupa com o fato de que o relato dos milagres que autenticariam a origem divina da revelação está contido na própria revelação.]

A epistemologia de Tomás é basicamente aristotélica. Ela parte do pressuposto de que somos capazes de conhecer a essência das coisas, isto é, aquilo que elas são em mesmas e aquilo que elas são capazes de fazer por si próprias. Isso vale também para o ser humano. Se algo acontece na realidade que vai além daquilo que qualquer coisa natural (o ser humano incluído) é capaz de fazer, podemos concluir, com convicção e certeza, que a natureza, deixada a si própria, não seria capaz de produzir aquele acontecimento, que, por conseguinte, só pode ser entendido como milagre — que é definido como uma suspensão (não uma violação) das leis naturais.

Segundo Tomás, portanto, tanto a razão como a revelação são fontes legítimas de conhecimento teologicamente relevante (acerca de Deus, da alma, do que é certo fazer, etc.) que convivem pacificamente, sem que uma contrarie a outra. Embora a revelação não seja secundum rationem, ela não é contra rationem, sendo, portanto, racional em um sentido mais fraco: não é derivada da razão mas também não conflita com ela.

Aqui, nessa posição, embora a razão e a fé sejam ambas fontes de conhecimento teológico, o conhecimento de Deus baseado na razão pode, oportunamente, levar à fé. A razão, assim, pode servir como ponte para a fé. Por isso, por vezes essa posição é chamada de intelligo ut credam: entendo, para poder vir a crer.

Uma consequência dessa forma de ver a relação entre razão e revelação é que Tomás acredita que a verdade é una e rejeita a teoria da “dupla verdade”, que, comum na parte final da Idade Média, postula que algo pode ser verdadeiro na Filosofia, mas falso na Teologia, ou vice-versa.

Essa visão de síntese entre razão e revelação (ou fé) tem outra consequência interessante, esta na área da moralidade. Como a revelação divina não contraria a razão, Deus não pode dar comandos morais que sejam contrários à razão — ainda que eles sejam acima da razão.

Isso faz com que, na Teologia Cristã, tenha surgido a tese de que mesmo o próprio Deus está sujeito à moralidade racional. Assim, um curso de ação não é moralmente certo porque Deus o comande — pelo contrário: Deus o comanda porque esse curso de ação é moralmente certo (numa visão racional). De igual modo, um curso de ação não é moralmente errado porque Deus o proíba — pelo contrário: Deus o proíbe porque esse curso de ação é moralmente errado (numa visão racional). Essa é a famosa controvérsia do prohibita quia mala (a conduta é proibida [por Deus] porque é errada) vs mala quia prohibita (a conduta é errada porque é proibida [por Deus]).

B. A Razão como Serva da Fé

Anselmo de Cantuária (1033-1109), que viveu cerca de duzentos anos antes de Tomás de Aquino, tinha uma visão diferente do papel da razão na revelação, e, por conseguinte, na Teologia. Para ele, a primazia era da Revelação — e a razão não passava de uma serva da fé. Essa visão acabou por caracterizar a Filosofia como a serva, a handmaid, da Teologia. As raízes dessa posição, porém, já podem ser encontradas em Agostinho (354-430).

Para ele, a revelação divina não é algo que se entende automaticamente, bastando ler ou ouvir. É necessário, muitas vezes, que a razão intervenha para esclarecer, elucidar, tornar inteligível a revelação. Por isso o seu lema: fides quaerens intellectum (a fé que busca o entendimento). Karl Barth (1886-1968), já no Século 20, escreveu um interessante livro sobre Anselmo, com esse título em Latim. Um outro título para essa posição é credo ut intelligam: creio para que possa vir a entender.

Aqui, dá-se por pressuposto que a revelação está contida na Bíblia e admite-se a necessidade da razão para entender a Bíblia (não para questiona-la).

No Século 19, o grande teólogo reformado americano Charles Hodge (1797-1878) adotou estratégia metodológica mais ou menos semelhante. Para ele, a Teologia é uma ciência — tão rigorosa como a Física. A diferença entre a Teologia e a Física está no fato de que, nesta, os fatos que ela analisa e sistematiza são dados pela observação, enquanto na Teologia eles vêm prontos, empacotados, como se fosse, na Escritura Sagrada. Dados os fatos, o resto — analisar e sistematizar os fatos — é trabalho exclusivamente da razão.

Eis o que ele diz na primeira página de sua obra monumental, Systematic Theology:

“Da mesma forma que a natureza não é um sistema de química ou de física, a Bíblia não é um sistema de teologia. Encontramos na natureza os fatos que o químico e o físico precisa analisar, e, a partir deles, inferir as leis pelas quais eles são determinados. Da mesma forma, a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa coletar, autenticar, arranjar, e apresentar em seu relacionamento umas com as outras. Aqui se encontra a diferença entre teologia bíblica e teologia sistemática. A tarefa da primeira é descobrir e enunciar os fatos contidos na Escritura. A tarefa da teologia sistemática é, com base nesses fatos, determinar sua relação uns com os outros e com outras verdades cognatas, bem como vindica-los, mostrando sua harmonia e consistência. Essa tarefa não é fácil nem de pequena importância” [pp. 1-2].

“A Bíblia é para o teólogo aquilo que a natureza é para o cientista. É o depósito de fatos. E o seu método para averiguar o que a Bíblia ensina é o mesmo método que o cientista adota para averiguar o que a natureza ensina” [p. 10].

“O verdadeiro método da Teologia é, portanto, o indutivo, que pressupõe que a Bíblia contém todos os fatos ou verdades que foram o conteúdo da Teologia, da mesma forma que os fatos da natureza são o conteúdo das ciências naturais. Também se assume que a relação desses fatos bíblicos um para com o outro, e os princípios neles envolvidos, estão contidos nos próprios fatos, e devem ser deduzidos deles, da mesma forma que as leis da natureza são deduzidos dos fatos da natureza. Em nenhum dos dois casos os princípios derivados da mente são impostos sobre os fatos, mas, de igual forma, tanto na teologia como nas ciências naturais, os princípios ou leis são deduzidos dos fatos e reconhecidos pela mente” [p. 17].

Para realizar a tarefa descrita ao final da primeira citação, as duas teologias, a bíblica e a sistemática, fazem uso imprescindível da razão. Mas a razão, por si só, não seria capaz de descobrir os fatos (“as verdades”) que a Escritura revela. O método da teologia é, para Hodge, tão racional e científico quanto o da química e da física. Tanto uma como as outras fazem uso do método indutivo. Mas a razão não descobre fatos, e muito menos os constrói, seja na teologia, seja nas demais ciências. Nestas a descoberta de fatos é feita pela observação; na teologia, os fatos são revelados por Deus e estão contidos na Bíblia.

C. Fideísmo, ou Credo Quia Absurdum

No início da era cristã um teólogo chamado Tertuliano defendia a tese de que os cristãos não devem pretender que a razão seja capaz de descobrir, desassistida pela revelação, os mistérios do Cristianismo. Para ele, não há nada em comum entre Jerusalém e Atenas, entre a Teologia e a Filosofia. Esta lida com o conhecimento, aquela com a fé.

A fé, para ele, não era um estágio anterior ou posterior ao da razão: era algo totalmente distinto. Quando não se tem como justificar um enunciado por um apelo a evidências, ou não se está interessado em faze-lo, a única alternativa é reconhecer que, se aceitarmos esse enunciado, a aceitação terá de ser cega, totalmente pela fé, como um salto no escuro. Afirmar que determinado enunciado foi aceito pela fé, portanto, não é uma forma justificar a sua aceitação: apenas explica que a aceitação foi feita sem apelo a evidências, ou porque se acredita que elas não existam, ou porque se escolheu não leva-las em conta.

Tertuliano chegou mesmo a dizer, ecoando parcialmente o apóstolo Paulo, que acreditava no Cristianismo porque o Cristianismo era absurdo. Kierkegaard (1813-1855), no Século 19, foi quem afirmou que a fé é sempre um salto no escuro: se houver evidência, se houve apoio da razão, ela deixa de ser fé.

Para os que acreditam assim, que normalmente são chamados de Fideístas, os racionalistas do Iluminismo fizeram ao Cristianismo um grande favor mostrando inexistirem argumentos, evidências e boas razões para sua aceitação. Mostraram, assim, que apenas a fé cega, a fé do tipo “salto no escuro”, explica sua aceitação.

Neste caso, a única resposta à pergunta “Como é que eu sei?” é “Eu não sei” — mas resolvi, de qualquer forma, apostar.

No Século 16 Pascal (1623-1662) resolveu mostrar que a aposta, afinal, não é tão cega, tão racional.

Segundo ele, temos basicamente, a seguinte alternativa: Crer ou não crer.

Se não cremos, existem duas possibilidades: o Cristianismo é falso (ou Deus não existe) ou o Cristianismo é verdadeiro (ou Deus existe). Na primeira hipótese, não ganhamos nada não acreditando; na segunda, vamos nos dar muito mal.

Se cremos, também existem duas possibilidades: o Cristianismo é falso (ou Deus não existe) ou o Cristianismo é verdadeiro (ou Deus existe). Na primeira hipótese, não perdemos nada acreditando; na segunda, ganhamos o “jack pot”, o maior prêmio da casa.

Assim sendo, há, segundo ele, boa razão para se apostar, mesmo cegamente, que o Cristianismo é verdadeiro (ou que Deus existe): não perdemos nada se estivermos errados e ganharemos tudo se estivermos certo. Por outro lado, se apostamos que o Cristianismo é falso (ou que Deus não existe), não ganhamos nada se estivermos certos e perdemos tudo se estivermos errados.

Ainda é tempo de apostar. . .

Em São Paulo, 26 de Março de 2015

Transcrito aqui em 8 de Setembro de 2015