Lendo Karen Armstrong, The Case for God

 Karen Armstrong é uma autora que vale a pena ler. Ex-freira, ela tem uma maturidade e uma compreensão da religião (não só cristã) que é difícil de encontrar. E escreve fácil e gostoso, para o leigo — a pessoa inteligente que não é teóloga mas se interessa pelas questões que a religião procura responder. Como já disse em algum lugar, citando Larry King em uma resposta dada a Billy Graham, as questões que a religião levanta e coloca são fundamentais. O duro é aceitar a maioria das respostas que são dadas a elas.

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Os fundamentalistas cristãos e os chamados novos ateus (Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris) são dois lados de uma mesma moeda, afirma Karen Armstrong em The Case for God (Em Defesa de Deus). Aquilo que uns afirmam, os outros negam.

Diz a lógica que os dois não podem estar certos. Se um está certo, o outro está errado. Isso não quer dizer que, se um está errado, o outro está certo. Karen Armstrong, por exemplo, defende a tese de que os dois estão errados. Redondamente errados.

Os fundamentalistas estão errados, afirma ela na Introdução ao livro, ao presumir que sabem o que (ou quem) Deus é: um ser supremo, criador do universo, onisciente, onipotente, onibenevolente, que se preocupa conosco, cuja vontade nós podemos conhecer e influenciar…

Na tradição cristã não-fundamentalista, afirma ela, e em várias outras tradições religiosas, Deus é o nome que se dá ao transcendente, ao que está além daquilo que podemos conhecer e descrever – e certamente influenciar. Nessa tradição é impossível se referir a ele como um “ser”, ainda que o supremo, ao lado de outros… É impossível descrevê-lo como “alguém” que tudo sabe, tudo pode, e é totalmente bom. É uma ilusão, diz ela, presumir que “ele” tem sentimentos, que tem vontade. E é o cúmulo da arrogância imaginar que nós sabemos qual é a sua vontade e, pior ainda, que podemos influencia-la através de nossas preces e orações.

Se Deus é isso, afirma Karen Armstrong, os ateus, novos e velhos, estão corretos em negar que ele existe.

Mas, continua ela, os ateus, como os fundamentalistas cristãos, estão errados em imaginar que Deus seja isso… Na verdade, uns e outros estão totalmente errados em imaginar que possam saber o que (ou quem) Deus seja…

Ao tentar falar “dele”, nós o antropomorfizamos, usamos linguagem criada para falar dos homens, e, assim, caímos no erro da idolatria. Falamos sobre nós, pensando falar sobre “ele”. Os fundamentalistas protestantes criticam os católicos por se fazerem imagens, ícones, ídolos de Deus, que o representariam visualmente. Mas, ao tentar falar sobre Deus, ao presumir que é possível falar com “ele”, influencia-lo, pedir-lhe que sejam poupados disso ou daquilo ou que sejam agraciados com isso ou aquilo, os fundamentalistas protestantes incorrem em erro equivalente ao da idolatria. Criam um deus à sua imagem e semelhança, um deus que aprova as mesmas coisas que eles aprovam e condena as mesmas coisas que eles condenam…

O gênio de Tomás de Aquino o levou a presumir que não podemos falar de Deus de forma direta e literal, mas que é possível falar dele de forma indireta, por analogia: analogia proportionis, analogia proportionalitatis, etc. O doctor angelicus se enganava a si próprio. A linguagem tem limites que não conseguimos ultrapassar.

Se Deus é o que transcende a nossa experiência e o nosso conhecimento, não podemos conhece-lo, descreve-lo, falar dele, menos ainda com ele. Certo estava Ludwig Wittgenstein, quando disse que “em relação àquilo sobre que não se pode falar, devemos ficar silenciosos” (“Wovon man nicht sprechen kann, davon muss man schweigen”). Não poderíamos nem mesmo dizer (como Tomás de Aquino tentou) que “ele” existe – mas que desconhecemos a sua natureza.

Deus, na tradição cristã, é o “totaliter alter”, o “totalmente outro”, o “desconhecido”, que só é confrontado quando chegamos aos limites de nossa experiência e de nosso conhecimento. Ao chegarmos aos limites que nossa finitude nos impõe, confrontamos o que jaz além de nossos limites, tentamos postular o infinito, o ilimitado (seja em conhecimento, seja em poder, seja em bondade).

Não é de surpreender que é enfrentando, no limite, a dor, o sofrimento, o mistério da morte que alguns acreditam ter uma visio beatifica. Ou que, alternativamente, que é alcançando os limites da alegria, do prazer, da experiência estética, ou do mistério da vida, que outros acreditam  alcançar um êxtase quase divino.

Os fundamentalistas, que acreditam que os mistérios foram todos revelados, e os ateus, que acreditam que mistério é apenas um nome para um problema que a ciência ainda não conseguiu solucionar, não chegam perto de entender isso.

Mas, diante disso, como é possível fazer “the case for God”, sair “em defesa de Deus”? Para isso responder a essa pergunta é preciso ler além da Introdução do livro…

[O Rubem Alves uma vez falou que pegamos os livros, os mastigamos, os deglutimos, e o essencial do que eles contêm entra no nosso organismo e passa a fazer parte de nós. É isso resultou da leitura da Introdução do livro de Karen Armstrong. São apenas dez das quatrocentas páginas do livro.]

Escrito tempos atrás, mas transcrito aqui em São Paulo, 8 de Setembro de 2015

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