A Tradição Reformada – 02: A Bíblia e a Tradição

Parte 02 - Foto da Bíblia

[Foto tirada por Eliezer Rizzo de Oliveira de uma Bíblia na capela da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista do Brasil em Rudge Ramos]

Retomo o livro de John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma Maneira de Ser a Comunidade Cristã (Editora Pendão Real, [1980], 1997).

Embora ele não esclareça, explicitamente, no Capítulo I, “A Tradicionação da Fé”, tudo o que vou dizer a seguir, o mais importante está lá.

Ou vejamos.

Apesar de a Tradição Reformada enfatizar o princípio do Sola Scriptura, ou seja, a doutrina de que a Bíblia é a única autoridade para o cristão, a Bíblia “não pode ser manipulada mecanicamente nem assimilada impessoalmente” [p.17].

Acredito que isso queira dizer (ou possa significar) várias coisas, entre as quais as mais importantes são as seguintes:

  • De um lado, o Novo Testamento foi gerado no seio da tradição viva da comunidade cristã, cujos membros redigiram, em diferentes momentos, os livros que hoje o compõem;
  • De outro lado, foi essa mesma comunidade, em tempo histórico diferente, definiu (não sem muita disputa e controvérsia) quais, dentre os muitos livros escritos que pleiteavam ter autoridade sobre ela, seriam caracterizados como integrantes do Antigo e do Novo Testamento e fariam parte do cânon cuja autoridade ela reconheceria, e quais ficariam de fora.

É isso, segundo tudo indica, que quer dizer o seguinte: “A Bíblia foi escrita dentro de uma comunidade e tradição cristãs vivas”, e sua “leitura e audição acontecem dentro dessa mesma comunidade e tradição” [p.17].

Por mais que os reformadores tenham afirmado que o sentido da Bíblia é, na maioria dos casos, e nas questões essenciais, suficientemente claro para que a pessoa simples o entenda, dispensando a mediação do sacerdote e da igreja para sua definição, explicação e esclarecimento, há inúmeras passagens na Bíblia cujo sentido na realidade é obscuro e que, em alguns casos, se interpretados literalmente, parecem contradizer o que é dito em outras passagens, e que, por isso, estão a requerer uma interpretação que, fatalmente, se dá no seio da tradição viva da igreja – ainda que se dê ao crente individual, como partícipe dessa tradição viva, o direito de discordar da intepretação de terceiros, não importando quão cultos e importantes sejam, e se convencer de que a interpretação correta é a sua, à qual ele chegou pedindo a orientação do Espírito Santo e na crença de que a havia recebido.

É isso, segundo tudo indica, que quer dizer a citação que Leith faz de Émile Bréhier, quando este afirma que “a vida espiritual só existe na busca da verdade, e não na posse de uma suposta verdade adquirida” [p.18]. Ou seja: a verdade que a Bíblia contém não “salta aos olhos”, não é “evidente”, em todos os casos, para todos e de uma vez por todas, mas precisa ser sempre buscada, através do estudo e da interpretação – sem que possamos ter certeza absoluta de que a encontramos, especialmente diante do fato de que outros, igualmente sérios e honestos, às vezes encontram uma verdade diferente da nossa na mesma passagem. . .

No processo de interpretar a Bíblia, muitas vezes confundimos “costumes locais” com o “evangelho” e, nesse processo, “santificamos” aquilo que não passa de “preconceitos paroquiais” [p.18].

Apesar disso, afirma Leith, “as tradições da Igreja têm apresentado uma admirável capacidade para se purificarem, para se reformarem, e para se redirecionarem à luz da tradição original apresentada pelas Escrituras” [p.18].

É esse, certamente, o sentido do preceito de que “a Igreja reformada é uma igreja que está sempre a reformar-se” (ecclesia reformata semper reformanda) – e essa “reforma permanente” é decorrente da ação do mesmo Espírito que criou a tradição e orientou a sua “concreção” na Bíblia. Em outras palavras: “O Espírito Santo recria a tradição original (traditum) através da ‘tradicionação’ (actis tradendi)” [p.19].

No entanto, é preciso tomar cuidado para não atribuir ao Espírito Santo aquilo que é simplesmente ato humano:

“Como um fenômeno humano, a tradicionação da fé não deve ser simplesmente identificada com a obra do Espírito Santo. Na verdade, o reconhecimento de que existe a atuação do Espírito Santo na tradição não passa de um ato de fé” [p.19].

A doutrina da “infalibilidade” ou “inerrância” da Escritura quer dizer, em última instância, que embora nenhuma “pessoa ou instituição seja bastante sábia ou boa para estar isenta de falhas”, “a comunidade cristã, pela providência e graça de Deus, é preservada de cometer um erro final ou definitivo”, os erros que aparecem sendo sempre corrigidos pela própria comunidade, que, assim, se purifica dos erros [p.19].

Temporariamente concluindo, cito Leith mais uma vez, em duas passagens, uma mais curta e outra mais longa:

“Os protestantes [em geral, e os reformados, em particular] têm sido sempre tentados a crer que, de alguma forma, podem ignorar todos os séculos da história cristã, estudando a Bíblia sem a ajuda e os embaraços dos que os antecederam. Na verdade, porém, aqueles que se recusam a ler a Bíblia à luz das tradições da Igreja, acabam sendo dominados pelas suas próprias tradições históricas e culturais” [p.20].

“Os antigos reformadores opuseram a Bíblia a toda tradição humana. Seu protesto contra as suas aberrações [da tradição] pareceu sugerir, às vezes, que não lhe davam [à tradição] qualquer valor: a Bíblia sozinha [Sola Scriptura] seria a religião dos protestantes. O problema é que a Bíblia nunca está sozinha. O próprio Calvino, que falou da autoridade da Bíblia nos termos mais elevados, sempre leu-a e ouviu-a segundo as tradições. Sua revisão litúrgica foi feita de acordo com a prática da Igreja antiga, o mesmo sucedendo com a organização eclesiástica por ele desenvolvida. As Institutas foram escritas de acordo com a estrutura do Credo Apostólico e todo o seu trabalho teológico contou com a colaboração de incontáveis intérpretes e teólogos dos séculos que o precederam. Calvino não idolatrou a Bíblia ou a Igreja e suas tradições, mas adorou ao Deus que visitou seu povo em Jesus Cristo” [pp.19-20].

É isso, por enquanto.

Em São Paulo, 14 de Agosto de 2015.

Eduardo Chaves
eduardochaves@fatipi.edu.br
echaves@fatipi.net

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