A Fé e as Obras

[Este artigo foi originalmente publicado em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space) no URL http://liberal.space/2015/09/02/a-fe-e-as-obras/%5D

Um amigo meu no Facebook, Wilson Cavalcanti, católico, transcreveu, em um post, um trecho da Carta de Tiago (capítulo 2, versículos 14-26), me pedindo que, como representante da tradição protestante (em especial da tradição reformada, ou calvinista, ou presbiteriana), me pronunciasse sobre o assunto. Esclareceu que a posição de Tiago lhe parece, como bom católico, bastante razoável.

A passagem que ele cita (apenas para facilitar) é a seguinte:

 A FÉ SE MOSTRA NA PRÁTICA
14 Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não tem as obras? A fé seria capaz de salvá-lo?
15 Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia;
16 se então algum de vós disser a eles: “Ide em paz, aquecei-vos” e “Comei à vontade”, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adianta isso?
17 Assim também a fé: se não se traduz em ações, por si só está morta.
18 Pelo contrário, assim é que se deve dizer: “Tu tens a fé, e eu tenho obras! Mostra-me a tua fé sem as obras, que eu te mostrarei a minha fé a partir de minhas obras!
19 Tu crês que há um só Deus? Fazes bem! Mas também os demônios crêem isso, e estremecem de medo.
20 Queres então saber, homem fútil, como a fé que não se traduz em obras é vã?
21 Se o nosso pai Abraão foi declarado justo, será que não foi por causa de suas obras, a ponto de oferecer seu filho Isaac sobre o altar?
22 Como estás vendo, a fé concorreu para as obras, e as obras completam a fé.
23 Foi assim que se cumpriu a Escritura que diz: ‘Abraão teve fé em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça’, e ele foi chamado amigo de Deus”.
24 Podeis ver, pois, que alguém é justificado com base naquilo que faz e não simplesmente pela fé.
25 Não foi a prostituta Raab, da mesma forma, considerada justa em virtude de sua ação, quando hospedou os que vinham reconhecer a região e os fez regressar por outro caminho?
26 Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta.

Abaixo, o que comentei… A resposta ficou tão grande que o Facebook a refugou. Por isso a transcrevo aqui, onde pode ajudar mais gente.

Caro Wilson Cavalcanti…

Você está me convocando para me pronunciar sobre um tema controvertido, em que a Igreja Católica e as principais Igrejas Protestantes em geral diferem em alguns aspectos considerados (por elas mesmas) importantes.

Vou me pronunciar como historiador da doutrina, como historiador do pensamento cristão, sem me posicionar pessoalmente em relação às questões envolvidas…

Nenhum dos lados (católicos e protestantes) nega que o ser humano, pecador, precisa de FÉ em Cristo (na eficácia da morte de Cristo na cruz) para ser considerado (imputado) justo – isto é, para ser justificado (salvo ou redimido).

A controvérsia surge em relação ao papel das OBRAS no contexto da justificação (salvação ou redenção) do ser humano, criando a questão chamada de “a fé e as obras”.

Antes de ir adiante, deixe-me esclarecer que a questão “da fé e das obras” pode ser suscitada em dois contextos.

O primeiro é o mencionado: o contexto das pré-condições para a justificação (salvação ou redenção) do ser humano. Como diz a história relatada em diversos lugares nos três primeiros Evangelhos (de forma não muito coerente): “o que devo fazer para alcançar a vida eterna?” (vide Mateus 19:16 [um moço], Marcos 10:17 [um homem], Lucas 18:18 [certo homem de posição]).

O segundo é o contexto que poderia ser chamado das pós-condições da justificação (salvação ou redenção): o que fazer (ou como viver) depois da justificação (salvação ou redenção), ao longo da vida cristã? Esse contexto é às vezes chamado de o contexto da santificação (em contraposição ao contexto da justificação).

Nesse segundo contexto, nenhum dos dois lados nega que é preciso manter (preservar) a FÉ e exibir boas OBRAS.

A controvérsia, portanto, se situa basicamente em relação ao papel das obras (o da fé ninguém nega) no contexto da justificação (salvação ou redenção).

A Igreja Católica em regra está mais próxima da posição de Tiago (e da posição do próprio Jesus nos Evangelhos – vide as passagens mencionadas), afirmando que, para a justificação (salvação ou redenção) do ser humano, são necessárias as duas coisas: fé E obras. Essa posição parece sensata e correta, especialmente diante do que diz Tiago (e do que diz Jesus nos Evangelhos: “segue os mandamentos, … vende o que tens e dá aos pobres”, e, depois, “vem e segue-me” – esta última exigência parece corresponder à fé; as duas primeiras, às obras).

As Igrejas Protestantes foram muito influenciadas pela tese de Lutero (oriunda em Paulo e defendida, antes de Lutero, por Agostinho, e, depois de Lutero, por Calvino) de que, por causa da queda (do pecado original) de Adão e Eva, a natureza humana ficou tão corrompida (depravada, é o termo que por vezes usam) que o ser humano não consegue fazer absolutamente nada para, por seus próprios méritos, conseguir ser justificado (considerado justo): nem fazer boas obras (seguir os mandamentos, ajudar os pobres, etc.) e, o que é mais surpreendente, nem mesmo ter fé. A sua justificação se dá exclusivamente por decisão e pela ação de Deus – é um ato unilateral da graça divina. A doutrina protestante (de boa parte deles) é da justificação exclusivamente pela graça divina (sola gratia) – embora às vezes se diga que seja “justificação pela fé” (sola fide), algo que comentarei na sequencia. (Como é que pode ser “sola gratia” e ao mesmo tempo “sola fide” é um problema sério – a menos que seja “só” pelas duas coisas).

Nesse contexto surge outro problema sério: se a justificação se dá exclusivamente por decisão e pela ação divina, sem participação humana, por que alguns são justificados (salvos ou redimidos) e outros não? A resposta protestante é complicada e os principais reformadores, Lutero e Calvino, diferem um pouco um do outro, em termos de ênfase e sensibilidade. Mas de forma resumida a resposta protestante é a seguinte:

  1. Todos os seres humanos são pecadores (pela ação de Adão e Eva, cuja culpa é transmitida aos seus descendentes – doutrina do pecado original);
  2. O pecado original contaminou de tal maneira o ser humano que sua natureza ficou totalmente corrompida, tornando-o absolutamente incapaz de obter, por seus próprios méritos, a sua justificação (salvação ou redenção);
  3. Assim, todos os seres humanos merecem a condenação eterna (em outras palavras, merecem padecer no inferno para todos os tempos – a chamada doutrina das “penas eternas”);
  4. No entanto, Deus, em sua infinita soberania, e em decorrência de sua perfeita bondade (misericórdia, etc.), decidiu (escolheu, elegeu) salvar alguns seres humanos dessa agonia eterna e enviou seu filho para morrer na cruz, e, por sua morte, expiar os pecados dos escolhidos ou eleitos, justificando-os (salvando-os, redimindo-os) e dando-lhes, por assim dizer, um novo começo, um novo nascimento, uma nova vida.

É isso. Fim da história. É essa a doutrina da justificação EXCLUSIVAMENTE PELA GRAÇA (sola gratia).

Há vários problemas evidentes nessa doutrina – o maior deles sendo a aparente injustiça, da parte de Deus, de escolher e eleger apenas alguns para se beneficiar da morte sacrificial de seu filho. Por que não todos? (Os calvinistas mais radicais afirmam que Deus escolheu (elegeu) e predestinou alguns para a salvação e outros para a perdição eterna – esta a chamada doutrina da “dupla predestinação”, que tem causado tanta celeuma entre protestantes, em geral, e presbiterianos, em particular).

Aqui entram algumas tentativas de amenizar a crueza da doutrina da justificação pela graça – acrescentando a dimensão “fé”. Nessa versão amenizada, Deus enviou seu filho para, pela sua morte sacrificial, justificar (salvar ou redimir) TODOS os pecadores. Mas, para se beneficiar do sacrifício de Jesus, o ser humano tem de crer (ter fé) em sua eficácia. Assim, a justificação é, sem dúvida, pela graça (sola gratia), mas também  MEDIANTE a fé (sola fide) – há um jogo com as preposições “por” e “mediante”, embora em Latim elas inexistam – usa-se simplesmente o chamado caso Ablativo. Quem tiver fé na eficácia do sacrifício de Jesus é justificado (salvo ou redimido), tem seus pecados expiados (“lavados pelo sangue do Cordeiro” – Vide Apocalipse 7:14). Quem não tiver essa fé, está perdido. A fé se torna, consequentemente, importante – na verdade, essencial. (Muitos calvinistas ortodoxos consideram essa saída uma heresia, chamando essa solução de pelagiana ou arminiana – a primeira uma heresia condenada pela Igreja Católica, lá atrás, a segunda condenada pela Igreja Reformada ou Presbiteriana, no século 17 – Sínodo de Dort, na Holanda, em 1619 – vide http://www.monergismo.com/textos/credos/sinodo_dort_witt.htm e também http://www.mackenzie.br/7057.html).

Parece um bom remendo – ainda que não (pelo menos na aparência) perfeitamente compatível com tudo o que a Bíblia e os reformadores dizem.

[Quando falo em “remendo”, tenho em mente um remendo no sentido lógico, mais do que no sentido cronológico, pois ele já vem de longe, lá das cartas paulinas. Haja vista o que diz Paulo em Efésios: “Pois pela graça sois salvos, por meio da fé.; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (2.8).]

Mas aí surge uma outra série de questões: e a decisão de acreditar ou não, de ter fé ou não, é inteiramente do ser humano? Se for, parece que o ser humano tem, afinal, por essa decisão, alguma participação (algum mérito) na sua justificação (salvação ou redenção). Se não for, o problema continua… Por que Deus dá fé a alguns e não a outros?

Alguns reformadores parecem ter defendido a tese de que a fé (crer ou não crer, eis a questão), como decisão unilateral do ser humano, é necessária, mas não configura participação (mérito) em sua justificação (salvação ou redenção). É apenas um ato passivo (parece meio contraditória a noção) de aceitação. A justificação (salvação ou redenção) continua ação (obra) exclusiva de Deus. Essa posição é por vezes chamada de monergista (ergo – ação; mono – de um só, a saber, Deus). (Os mais radicais dos calvinistas, monergistas até a medula, afirmam que mesmo a fé é um dom de Deus e que, quando Deus, pela sua graça, dá esse dom de fé a alguém, este alguém não tem como recusa-lo, não tem como resistir a Deus – esta a doutrina da “irresistibilidade da graça”; e, aceitando o dom da fé, como não teria alternativa, também não tem, depois, a possibilidade de abrir mão dele – a doutrina da “perseverança [inevitável] dos santos”. Complicado…).

Outros cederam um pouco e admitiram que a doutrina de que o pecado original produziu a total corrupção (depravação) da natureza humana era exagerada, e admitiram que o arbítrio humano continuou livre para aceitar ou rejeitar o dom (gratuito) de Deus e que essa aceitação ou rejeição configura uma participação, ainda que pequena, do ser humano em sua própria justificação (salvação ou redenção). Essa posição é por vezes chamada de sinergista (ergo – ação; sim – com, em grego), pois envolveria um certo nível de cooperação entre Deus e o ser humano – embora a participação deste seja bastante minoritária, embora, segundo os sinergistas, inegável). Assim, a fé é uma realização (ou obra) humana – donde a justificação vem pela graça, mediante a fé.

(Vide na Internet várias discussões dessa controvérsia, entre elas a seguinte, para selecionar apenas uma, que não é objetiva, mas partidária: http://textosdeteologiaefilosofia.blogspot.com.br/2013/02/monergismo-versus-sinergismo-por-norman.html).

Essa explicação toda não esclarece, porém, a questão original. OK, a fé pode ser vista como uma obra, mas e as chamadas “boas obras”, propriamente ditas, o cumprir os mandamentos, o ajudar os pobres, os órfãos, as viúvas, etc. Como ficam? São necessárias para a justificação (salvação ou redenção)? Para os protestantes, em geral, a resposta é, claramente, não. MAS, segundo eles, essas boas obras seguem, naturalmente, a justificação (salvação ou redenção), decorrem dela, pois esta “regenera” o ser humano, faz com que ele “nasça de novo”, dá-lhe uma nova natureza, etc., que, embora não o torne perfeito, sem pecado, o capacita (sempre com a assistência indispensável do Espírito Santo) a viver uma vida santificada, que implica o cumprimento dos mandamentos, a disposição de ajudar os outros, etc.

É isso. Tentei ser o mais claro possível navegando por uma questão complicada. Provavelmente vai haver algum protestante (possivelmente da variedade “evangélica”) que discorde de minha interpretação da questão, mas, se isso ocorrer, estou disposto a defender minha interpretação dessa delicada questão.

Em São Paulo, 2 de Setembro de 2015

Eduardo Chaves

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