De Interpretatione — da Lei e Outros Textos (inclusive a Biblia)

[Mais um artigo que foi publicado primeiro no meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

Excelente artigo de Conrado Hübner Mendes sobre hermenêutica jurídica na Folha de hoje. Espero achar tempo para discuti-lo, como merece, nos próximos dias. Os princípios enunciados não se aplicam, naturalmente, apenas à lei (muito menos apenas à Constituição): aplicam-se a qualquer texto, inclusive à Bíblia e a outros escritos sagrados.

No caso jurídico, o assunto tem sido objeto de acalorada controvérsia nos Estados Unidos, onde, a cada escolha de um novo membro da Suprema Corte. De um lado estão aqueles que acham que os textos, inclusive jurídicos e principalmente constitucionais, de certo modo falam por si mesmos e têm apenas um sentido que aparentemente literal e evidente: os juizes apenas o explicitam e aplicam. Do outro lado estão aqueles que acham que os textos – quaisquer que sejam – sempre admitem mais de uma interpretação, e que, além disso, há, na área jurídica (como em qualquer outra, inclusive na Bíblia), normas que estão em tensão umas com as outras, tensão essa que chega às raias da contradição aberta. O trabalho dos que interpretam a lei, portanto, não é um trabalho semi-mecânico de explicitar o sentido literal da lei e aplicar o que ela diz. Aquilo que a lei diz muitas vezes não é claro, outras vezes duas leis razoavelmente claras conflitam uma com a outra. A constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ordinária raramente é assunto pacífico e incontroverso. Diante desses fatos, quem interpreta a lei muitas vezes participa de sua construção – em outras palavras, legisla no lugar do legislador…

É isso.

O assunto se tornou candente aqui no Brasil em relação à questão da decisão do Supremo de que é possível aplicar a homossexuais o estatuto da união estável – e que, portanto, é cabível (do ponto de vista constitucional) falar em uma família composta por duas pessoas do mesmo sexo e não apenas por um homem e uma mulher.

E, no entanto, a Constituição Federal afirma, no Art. 226, § 3º:

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Esse dispositivo claramente determina que um homem e uma mulher em união estável sejam considerados uma família, para efeito da proteção do Estado.

Mas preclui ou impede que dois homens ou duas mulheres que vivem juntos de forma continuada e estável sejam também sejam considerados uma família, para efeito da proteção do Estado?

Há gente que pensa que sim. Mas o Supremo disse que não.

De Interpretatione é, naturalmente, o título, em Latim, de um livro famoso de Aristóteles.

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3105201107.htm

Folha de S. Paulo
31 de Maio de 2011

TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre heróis e demagogos?

CONRADO HÜBNER MENDES

Argumento jurídico não é um detalhe decorativo com o qual enfeitamos preferências políticas, mas raramente será mera repetição do texto legal

Há quase três meses, terminava um importante capítulo do caso da Lei da Ficha Limpa no Supremo Tribunal Federal: o tribunal, por seis votos a cinco, entendeu que a referida lei não se aplica às eleições de 2010. Nesta Folha, no dia 24/3, duas reações vieram à tona.

Eliane Cantanhêde entendeu que a decisão representava “a vitória da lei, da experiência e da técnica jurídica sobre o apelo fácil da demagogia”. Para ela, o grupo dos seis ministros não teria se curvado, tal como os outros cinco, ao “clamor popular e do aplauso fácil”. Teria tido a “coragem de enfrentar as câmeras e as críticas”.

Páginas adiante, o professor Joaquim Falcão nos oferecia leitura mais comedida. Explicava que a controvérsia diz respeito à escolha entre dois artigos constitucionais, que levaram, respectivamente, a duas posições opostas no caso.

Aplicar a Constituição, para ele, é “ato de vontade do ministro. (…) Há flexibilidade interpretativa”.

O contraste entre as duas reações não poderia ser mais ilustrativo. A primeira evoca um mito tão antigo e universal quanto persistente sobre o Estado de Direito.

Segundo esse mal-entendido, caberia ao juiz deixar suas inclinações de lado e respeitar a letra da lei, um ato certo e mecânico. Virtude e preparo técnico, assim, seriam suficientes para que a “verdadeira resposta” seja descoberta nas entrelinhas do texto legal, sem interferência da vontade.

Essa visão é conveniente para os dois lados: de um, o juiz deixa de ser inquirido pelas escolhas interpretativas que faz, pois as apresenta como resultados naturais da técnica jurídica que o público leigo não domina; de outro, o público leigo se vê dispensado da árdua tarefa de ler as decisões, pois, a não ser que o juiz seja desonesto, elas corresponderiam ao comando único da lei. Juízes virtuosos e bem treinados, portanto, bastariam para a saúde dessa engrenagem.

Há poucos dias, de forma unânime, o STF determinou a extensão da união estável para casais homossexuais. Celebramos o avanço, uma custosa e demorada vitória dos direitos individuais sobre a inércia crônica e mal fundamentada do Congresso. Sobretudo mal fundamentada.

O STF está dividido no primeiro caso e unido no segundo. Cabe agora refletir sobre o significado dessa diferença e acompanhar como o Congresso reagirá nos dois casos.

Não foi o bem que venceu o mal, nem a técnica jurídica que prevaleceu sobre o casuísmo medroso, populista ou intolerante. A “letra da lei”, em ambos os casos, não é tão óbvia. Ao contrário, ela acaba de ser (e continuará a ser) escrita pelo próprio tribunal, por mais curioso que isso possa parecer.

Não teremos um debate maduro sobre nossa jurisprudência constitucional enquanto não percebermos essa característica elementar.

Rejeitar aquele confortável mito do juiz que faz valer a “letra da lei” traz desafios importantes para a prática do jornalismo judicial, da pesquisa acadêmica e para o exercício da própria cidadania. Decisões do STF podem e devem ser elogiadas ou criticadas, mas há maneiras mais ricas de fazê-lo.

Argumento jurídico não é, por certo, um detalhe decorativo com o qual enfeitamos nossas preferências políticas, mas raramente será, por outro lado, mera repetição do texto legal. Somente avaliando os argumentos que os ministros apresentaram em cada caso, entre tantos outros casos da agenda do Supremo Tribunal Federal, poderemos avançar na discussão. E os “derrotados” merecem tanta consideração quanto os “vitoriosos”.

CONRADO HÜBNER MENDES, doutor em filosofia do direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e doutor em ciência política pela USP, é professor licenciado da Direito GV.

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Em São Paulo, 31 de Maio de 2011

Transcrito aqui em São Paulo, 8 ed Setembro de 2015

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