Cristãos Tradicionais e Cristãos Liberais

Uma Tentativa de Explicação da Diferença Básica entre Cristãos Tradicionais e Cristãos Liberais

Cristãos, tanto tradicionais como liberais, em geral se congregam em igrejas, nas quais mantêm relacionamentos interpessoais razoavelmente profundos uns com os outros, que lhes permitem chamar-se de “irmãos”. Eles vivem, para usar um termo favorito deles, “em comunhão” uns com os outros. Admitidamente, essa comunhão é tão mais fácil quanto mais semelhantes entre si sejam os cristãos. Assim, cristãos tradicionais têm, em regra, mais ou melhor comunhão com outros cristãos tradicionais, e cristãos liberais, com outros cristãos liberais.

Em um país dito cristão, como o Brasil, que já foi considerado o maior país católico do mundo, há dois tipos de atividade dos cristãos: a) a atividade de culto e b) a atividade de evangelização. De atividades de culto participam, em geral, pessoas que já são cristãs. As atividades de evangelização são destinadas aos ainda não-cristãos e têm o objetivo de convertê-los ao Cristianismo.

(Vou chamar os não-cristãos de “gentios”, da mesma forma que os judeus chamavam, acho que ainda chamam, os não-judeus de gentios, ou goim. Mas também considero aceitável o termo “pagão” para designar o não-cristão. Em tempos idos, cristãos tradicionais protestantes não consideravam os católicos como cristãos. E vice-versa. Ainda hoje há muitos cristãos tradicionais protestantes que não consideram os adventistas, os mórmons, os testemunhas de Jeová, os “moonies”, etc., como cristãos.)

Quando os cristãos tradicionais pregam a sua mensagem – o que chamam de Evangelho – aos gentios, o que eles esperam daqueles a quem eles pregam, isto é, dos gentios?

A resposta provável é que eles esperam que os gentios aceitem a mensagem, acreditem que ela é verdadeira, tenham fé nessa mensagem.

Como a mensagem dos cristãos tradicionais tem que ver com a pessoa de Jesus de Nazaré, objeto principal das histórias e das cartas do Novo Testamento, principalmente as de Paulo, ela envolve e demanda a aceitação, mediante a fé, de uma ou mais das seguintes afirmações: que Jesus é o Cristo (i.e., o Messias que os judeus esperavam), que Jesus é o Senhor, que Jesus é o Filho de Deus, que a morte de Jesus na cruz e sua posterior ressurreição (segundo o Novo Testamento) são parte do plano de Deus para não só nos perdoar os pecados, mas também nos “salvar”, que salvar, no caso, é livrar da condenação eterna no inferno e implica ganhar vida eterna no céu depois que a gente morrer, etc.

Os cristãos teologicamente liberais, influenciados pelas ideias iluministas e em especial pelo chamado deísmo do século 18, surgiram a partir do século 19. Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, considerado o pai da teologia liberal, viveu de 1768 a 1834, ou seja, 32 anos no século 18 e 34, no século 19.

A essência do liberalismo teológico é o questionamento – alguns dirão: a rejeição total – do supernaturalismo, isto é, da tese de que existe, além do plano natural em que vivemos, um plano sobrenatural. Os teólogos liberais, em regra, tendem a aceitar a ideia de que “deus” é um nome que damos àquilo que de certo modo é responsável pela existência do mundo natural e explica os processos naturais, mas que “deus” é imanente ao mundo e aos processos naturais, não os “transcendendo” (estando acima ou além deles).

Consequentemente, boa parte da mensagem que os cristãos tradicionais pregam aos gentios é inaceitável para os cristãos liberais: as ideias de que a morte de Jesus tem poder de perdoar pecados e assegurar a vida eterna do crente no céu, de que isso é garantido pelo milagre da ressurreição dentre os mortos de Jesus de Nazaré, de que, depois de ressurreto, Jesus teria ascendido aos céus, onde está, até hoje, sentado à mão direita de Deus,  de onde há de voltar um dia para julgar os vivos e os mortos (que, na ocasião, serão também ressuscitados), sendo os aprovados levados para viver eternamente no céu e os condenados sendo enviados para o fogo eterno do inferno, etc.

Mas se os cristãos liberais rejeitam tudo isso, que é considerado o “cerne” da mensagem do evangelho pelos cristãos tradicionais, porque eles se dão ao trabalho de ainda se considerarem cristãos, de frequentarem igrejas, de trabalhar em seminários onde dão aulas de teologia e brigam com os cristãos tradicionais, etc.? A respostá está na pessoa humana de Jesus de Nazaré, a quem os cristãos liberais em geral respeitam, e cuja mensagem, desvestida de sua roupagem sobrenatural, consideram o ponto alto do desenvolvimento intelectual e moral da humanidade. Os liberais, assim, distinguem com razoável precisão a mensagem de Jesus de Nazaré, que eles chamam de Cristianismo, da mensagem de Paulo e do restante do Novo Testamento, que eles chamam, variadamente, de “Paulismo” ou “Catolicismo” (não no sentido romano, necessariamente).

Essa mensagem de Jesus (para usar o resumo feito pelo Adolf von Harnack em seu livro Das Wesen des Christentums (A Essência do Cristianismo — em Inglês o livro foi intitulado What is Christianity?), que os liberais consideram “o Cerne do Cristianismo”, no seu entendimento do termo, é, essencialmente, a seguinte:

  1. Todos os homens, vivos, já mortos e que vierem a nascer, são irmãos, isto é, parte de uma espécie animal só, independentemente das diferenças externas, biológicas e culturais, que os caracterizem, porque “por dentro”, “na alma”, por assim dizer, são todos iguais;
  2. O relacionamento entre os homens, assim irmanados, deve ser pautado pelo amor, que é definido pela chamada “lei áurea”, que tem um lado negativo e um lado positivo, a saber: do lado negativo, não fazer aos outros o que não queremos que eles nos façam, e, do lado positivo, fazer aos outros o que queremos que eles nos façam;
  3. Se vivermos consistentemente assim, criaremos o Céu aqui na Terra, isto é, implantaremos aqui mesmo uma sociedade (um “reino”) em que o amor suplantará a lei e irá muito além da justiça (até mesmo da chamada “justiça social” pelos socialistas).

A versão liberal da mensagem cristã veio a ser rotulada, em especial pelos seus inimigos, os cristãos tradicionais, de “Evangelho Social”. Ela seria uma alternativa ao Socialismo de vertente atéia.

Na prática, tem se mostrado difícil a vida comum – até mesmo pacífica, quanto mais amorosa – entre cristãos que acreditam que o Céu é um lugar num outro plano, para onde alguns vão depois da morte, e entre cristãos que acreditam que o Céu é um lugar aqui mesmo na Terra, que nós vamos criar (estamos criando?) na medida em que seguirmos os ensinamentos morais e éticos de Jesus de Nazaré. Isso se dá porque, embora as crenças dos cristãos tradicionais sejam toleradas e, em grande medida, respeitadas pelos cristãos liberais, o oposto o mais das vezes não acontece: os cristãos tradicionais não admitem que os cristãos liberais sejam de fato cristãos, chamando-os de hereges que, na melhor das hipóteses, crêem em uma religião diferente do Cristianismo (ainda que com alguns pontos de contato).

É isso.

Em São Paulo, 1º de Agosto de 2018.

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