Ortodoxia e Heresia – 2

[Mais um artigo — este a segunda parte de uma trilogia — que foi publicado primeiro em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

Ortografia é grafia correta. Ortodoxia é opinião correta, ponto de vista correto.

Na História da Igreja Cristã o oposto de um ponto de vista correto é uma heresia. Uma heresia é, portanto, um ponto de vista incorreto. Uma pessoa que adota uma heresia, um ponto de vista incorreto, é um herege.

Na História da Igreja Cristã hereges eram em regra excomungados. Quando alguém que é membro da igreja é excomungado ele deixa de ser membro da igreja e perde os direitos que tinha como membro, como, por exemplo, o direito de comungar, vale dizer, o direito de ter comunhão com os demais membros, participar da Eucaristia ou da Ceia do Senhor, votar em assembleias, etc. A excomunhão é, por assim dizer, e para fins práticos, a revogação do batismo — a retenção da carteirinha de membro do indivíduo na entidade “igreja”.

Para que se conclua que alguém é herege, na igreja, é preciso saber, com bastante clareza e precisão, o que conta como ponto de vista correto — isto é, o que conta como ortodoxia.

Isso nem sempre é fácil.

Os pontos de vista classificáveis como ortodoxia ou heresia são, em regra, pontos de vista acerca de doutrina.

Uma doutrina, na religião, diferentemente de uma teoria, é um conjunto de enunciados acerca de um tema de importância para a religião que é colocado como objeto de fé ou aceitação pelos fiéis daquela religião.

No caso do Cristianismo, os enunciados

(a) “Jesus era filho de Maria”

(b) “Jesus era judeu”

não são exatamente doutrinas — são meras afirmações de fatos. Por outro lado, os enunciados

(c) “Jesus é filho de Deus”

(d) “Jesus é divino”

são afirmações de doutrinas (ou afirmações doutrinárias).

Por quê?

Uma razão é que qualquer um pode aceitar (com base em evidências históricas) a veracidade dos dois primeiros enunciados [(a) e (b)] sem ser, por isso, considerado cristão. Aceitar a veracidade dois enunciados seguintes [(c) e (d)] é, muito provavelmente, equivalente a identificar-se como cristão.

Por isso.

Também parece ser uma afirmação doutrinária dizer que

(e) “Maria, a mãe de Jesus, o concebeu e deu a luz a ele sendo virgem”

(f) “Maria, a mãe de Jesus, continuou a ser virgem mesmo depois de dar a luz a Jesus”.

Essa última doutrina é chamada de a doutrina da “virgindade perpétua de Maria”; a anterior é chamada de a doutrina do “nascimento virginal de Jesus”.

Disse atrás que decidir que um determinado ponto de vista é ortodoxo ou herético muitas vezes não é fácil.

Nossa evidência para aceitar os enunciados (a) e (b) é o fato de que a Bíblia afirma esses enunciados E (esse “e” é importante) não parece haver razão nenhuma para questionar essa afirmação.

O problema é que muita gente está convicta de que a Bíblia também afirma os enunciados (c) e (d) — enquanto, aqui, um bom número de pessoas contesta que esse seja o caso.

Mas antes de discutir enunciados (c) e (d), passemos rapidamente pelos enunciados (e) e (f).

A Bíblia afirma (e) e não afirma (f). Faz alguma diferença?

Bem, alguma diferença faz. A questão é: para quem e quanta.

Evidentemente, para quem já é cristão, faz (alguma) diferença se a Bíblia afirma ou não afirma algo. Para o cristão, o fato de que a Bíblia afirma que Jesus foi concebido em uma virgem e nasceu dela por obra do Espírito Santo de Deus torna esse enunciado merecedor de alguma atenção especial.

Se ele é um cristão, digamos, conservador, provavelmente esse fato é suficiente para justificar sua aceitação do enunciado (e).

Se ele é um cristão, digamos, liberal, o fato de a Bíblia afirmar esse enunciado pode não ser suficiente para que ele aceite o enunciado, embora ele provavelmente precise ter algum cuidado para se justificar, caso o recuse.

Para quem não é cristão, porque é, digamos, cético ou racionalista, o fato de a Bíblia afirmar (e) não quer dizer grande coisa — ou não significa nada. Dado o conteúdo do enunciado, essa pessoa simplesmente rejeita a sua veracidade, pois esse enunciado contraria, ou parece contrariar, sua experiência uniforme de como seres humanos funcionam (no caso, se reproduzem).

No caso do enunciado (f), que não está na Bíblia, muitos cristãos (por exemplo, todos os protestantes) e virtualmente todos os não-cristãos o rejeitam. Apenas os católicos, ou pelo menos alguns deles, o aceitam, por se tratar de uma doutrina consagrada pela tradição, ainda que não tenha respaldo bíblico. E a aceitam apesar de a Bíblia ser clara ao dizer que Jesus tinha vários irmãos — o que significa (provavelmente) que Maria teve outros filhos depois de Jesus. E a Bíblia não registra que a concepção e o nascimento dos irmãos de Jesus também tenham sido virginais.

Discutamos agora os enunciados (c) e (d).

A Bíblia afirma que Jesus era filho de Deus? A resposta a essa pergunta não é muito clara. Em alguns poucos lugares a Bíblia registra que algumas pessoas afirmaram que Jesus era filho de Deus. Em outros lugares, registra que algumas pessoas afirmaram que ele era o Messias que havia de vir, ou “aquele que está por vir” (erxomenos). Mas mesmo que a Bíblia afirmasse, taxativamente, não em um relato mas nas palavras do autor da passagem, que Jesus era filho de Deus, ainda restaria a questão de determinar o que a expressão “filho de Deus” significa — porque em outros lugares todos nós, ou, pelo menos, todos os que creem, são chamados de filhos de Deus.

Em nenhum lugar a Bíblia afirma taxativamente, nas palavras do autor, que Jesus é Deus ou que é divino. Afirma-se, por exemplo, em João 1:1, que, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”. É possível extrair daí, com uma boa exegese, a interpretação de que Jesus era Deus. Mas a passagem comporta outras interpretações também.

O que dizer?

Por um bom tempo, na História da Igreja, a questão da divindade de Jesus ficou, digamos, em suspenso. Por uma razão muito boa: os cristãos, como os judeus, dos quais descenderam, eram monoteístas. Afirmar que Jesus era Deus os colocava diante do sério problema de explicar como é que alguém que crê em dois deuses pode se considerar monoteísta — e abrir mão do monoteísmo parecia ser equivalente a chancelar o politeísmo dos pagãos.

A solução encontrada, lá pelo século quarto, foi dizer mais ou menos isto: Deus e Jesus possuem uma mesma e única natureza (substância, essência) divina mas são duas pessoas (hypostases) distintas, o Pai e o Filho. Depois o Espírito foi acrescentado, produzindo a doutrina da Trindade: um só Deus (uma só natureza / substância / essência divina compartilhada por três pessoas, o Deus Três-em-Um [Tri(ú)no].

Resolvido (de modo a satisfazer a maioria que importava) o problema da divindade de Jesus (ou o problema trinitário, da Trindade de Deus), surge o problema conhecido como cristológico: se Jesus é de fato Deus (eterno, espiritual, imaterial, incorpóreo, etc.) como pode ter ele nascido de mulher, andado aqui na Terra, sofrido, morrido e (segundo se crê) sido ressuscitado? [Interessante que a Bíblia em nenhum ligar diz que Jesus “se ressuscitou” dos mortos: ela afirma que ele “foi ressuscitado (por Deus)”].

A solução do problema cristológico foi, de certo modo, o oposto da solução do problema trinitário (ou da divindade de Jesus), mas operou nos mesmos pressupostos metafísicos. No caso da discussão do problema trinitário, postulou-se a existência de duas (na verdade três) pessoas em uma só natureza (essência, substância). No problema cristológico, postulou-se a existência, em uma só pessoa, mas com duas naturezas (essências, substâncias): a divina e a humana. Dessa forma, afirmou-se que Jesus (embora uma só pessoa) era “verdadeiramente Deus” e “verdadeiramente homem” (ou seja, tinha duas naturezas, ou essências, ou substâncias).

É evidente que ao falar em essência, substância, ou natureza, de algo (ou alguém), já se deixou muito para trás a linguagem do Novo Testamento para utilizar a linguagem da filosofia grega (helênica, helenista). Traduzir nessa linguagem o que diz a linguagem concreta e metafórica do Novo Testamento é sempre complicado.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso da Trindade, que Deus era constituído de três pessoas mas que possuía uma só natureza. Afirmar que Deus era uma pessoa só ou possuía três naturezas era cair em heresia: a heresia monarquista (antitrinitarismo) ou a heresia triteísta.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso de Cristológico, que Jesus tinha duas naturezas mas era uma só pessoa. Afirmar que Jesus tinha uma só natureza, ou que ele era de alguma forma constituído de duas pessoas era cair em heresia: a heresia monofisista, no primeiro caso, ou a heresia nestoriana, no segundo.

Aqueles que afirmavam que Jesus tinha apenas uma natureza (os monofisistas: phusis é natureza em Grego — donde vem física), não duas, foram condenados pela heresia do monofisismo.

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza divina, e só a aparência de uma natureza humana, foram condenados (também) pela heresia do docetismo (dokeo, em Grego, quer dizer parecer, aparentar).

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza humana, e só a aparência de um ser divino, foram condenados (também) pelas heresias do adocianismo (e outras variantes).

A discussão, na verdade, não parou aí. Se Jesus, embora uma só pessoa, tinha duas naturezas (essências, substâncias), o que dizer de sua vontade e de sua propensão a agir? Tinha ele uma só ou duas de cada uma dessas? Uma só vontade (telos)? Uma só propensão a agir (energia)? Ou duas? O monotelismo e o monergismo foram considerados heresia (em favor do duotelismo e do duergismo: duas vontades e duas propensões a agir).

Mas se duas, resta o problema: como elas se relacionavam uma com a outra? Qual prevalece? Em que condições?

E assim vai.

A seguir uma discussão interessante do monotelismo pelo apologeta contemporâneo William Lane Craig.

http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo

Monotelismo

PERGUNTA

Olá Dr Craig!

Estou lendo seu livro Philosophical Foundation for a Christian Worldview (Filosofia e Cosmovisão Cristã, ed. Vida Nova, 2005). Infelizmente, minha pergunta não foi respondida quando eu estava no seminário fazendo M. Div. uma década atrás. Após sua explicação, estou mais convencido de que a sua posição, o monotelismo (pg. 611), é a mais correta, apesar dessa conclusão ser apenas uma conclusão tentativa. Monotelismo está sempre ligado com monofisismo. Até onde eu entendo, o monotelismo não é, necessariamente, uma implicação do monofisismo. O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou tanto o monofisismo quanto o monotelismo como heréticos. (A maioria dos evangélicos reconhece esse concílio ecumênico?) O Dr. Norman Geisler também reconhece o monotelismo como herético (Systematic Theology [Teologia Sistemática] Volume 2: God, Creation, [Grand Rapids, MI: BethanyHouse, 2003] pg. 296). Minha pergunta é a seguinte: você não se preocupa com o fato de que alguns evangélicos consideram você um herege por causa da sua crença no monotelismo? Como eu estou mais convencido de sua explicação, eu não quero ser considerado como um herege nesse caso.

RESPOSTA

William Lane Craig:

Nenhum cristão sincero quer ser considerado um herético. Mas nós, protestantes, reconhecemos apenas a Escritura como nossa regra de fé final (o princípio da Reforma de sola scriptura). Portanto, nós trazemos até mesmo as afirmações de Concílios Ecumênicos perante o crivo da Escritura. Sempre existe uma grande hesitação em discordar de pronunciamentos de um Concílio Ecumênico. Ainda assim, como nós não os vemos como detentores de autoridade divina, estamos abertos para a possibilidade de que eles erraram em algumas coisas. Parece-me que ao condenar o monotelismo como uma doutrina incompatível com a crença cristã a igreja foi além de seus limites.

O que é monotelismo? É a doutrina que afirma que o Cristo encarnado tem uma única faculdade de vontade. Em contraste, o diotelismo ensina que o Cristo encarnado tem duas faculdades de vontade, uma associada com sua natureza humana (sua vontade humana) e uma associada com sua natureza divina (sua vontade divina). O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou o monotelismo, promulgando como obrigatório para Cristãos crerem em duas vontades em Cristo. Eu suspeito que a maioria dos evangélicos Cristãos declare fidelidade com seus lábios ao Terceiro Concílio e ao diotelismo sem ter refletido seriamente a respeito desse assunto.

Alguns de nós, no entanto, consideram o monotelismo como, pelo menos, uma opção legítima para o Cristão bíblico, sem dizer que seja verdade. O Concílio aparentemente pensou que negar uma vontade humana de Cristo implicaria que lhe faltava uma natureza humana completa, ou seja, Cristo não seria verdadeiramente homem nesta hipótese. Portanto, para proteger a integridade da natureza humana de Cristo, o Concílio promulgou o diotelismo como algo mandatório para uma crença cristã ortodoxa. A preocupação com a verdadeira humanidade do Cristo encarnado é louvável e importante. A doutrina cristã da encarnação requer que Cristo seja verdadeiramente homem e verdadeiramente divino. Mas por que pensar que o fato de Cristo ter uma única vontade reduziria sua natureza humana?

O que o Concílio presumia, e o que parece duvidoso para muitos, é que a faculdade da vontade pertence propriamente à natureza de alguém em vez de pertencer à pessoa. É por isso que o Concílio pensou que se a natureza humana de Cristo não tivesse a faculdade da vontade, então ela não seria uma natureza humana verdadeira e completa. Em contraste, me parece quase óbvio que a vontade é uma faculdade de uma pessoa. São pessoas que tem livre arbítrio e que o exercitam para escolher isso ou aquilo. Se a natureza humana de Cristo tinha sua própria vontade, o que significaria que Cristo tinha, literalmente, duas vontades, como o Concílio afirmou, então existiriam duas pessoas, uma humana e uma divina. Mas esta é a heresia conhecida como nestorianismo, que divide Cristo em duas pessoas. Eu não consigo compreender como a natureza humana de Cristo poderia ter uma vontade própria, distinta da vontade da Segunda Pessoa da Trindade, e não ser uma pessoa.

A pergunta, então, é se Cristo pode ter uma vontade, porém duas naturezas. Ou ter uma única vontade implicaria na heresia chamada Monofisismo, a doutrina que Cristo tinha uma única natureza? No Concílio de Calcedônia, a Igreja condenou o monofisismo e promulgou o diofisismo, a doutrina que Cristo tinha duas naturezas, humana e divina. A pergunta não é, como você colocou, se o monotelismo é, necessariamente, uma implicação do monofisismo – parece óbvio que sim, pois se há apenas uma pessoa e uma natureza no Cristo encarnado, de onde viria a segunda vontade? – mas se o monofisismo é, necessariamente, uma implicação do monotelismo, como o Concílio acreditava.

Eu não penso que é. No capítulo sobre a encarnação, no livro Filosofia e Cosmovisão Cristã, eu dou um possível modelo da encarnação de acordo com o qual a natureza humana de Cristo torna-se completa através de sua união com a Segunda Pessoa da Trindade. Como só existe uma pessoa em Cristo, existe apenas uma faculdade da vontade, e esta faculdade serve tanto à humanidade quanto à divindade de Cristo, sendo exercitada por meio tanto da natureza humana quanto da natureza divina. Assim, Cristo tem duas naturezas completas, mas uma única vontade, da mesma forma que – e porque – ele é uma única pessoa.

Portanto, embora eu não goste de contradizer os decretos de um Concílio Ecumênico, acredito que o perigo de cair em nestorianismo é muito maior do que o perigo de cair em monofisismo. Eu acho que podemos coerentemente e biblicamente ser monotelistas sem sermos monofisistas.

William Lane Craig

Leia mais: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo#ixzz3RuhRzuBm

Em São Paulo, 16 de Fevereiro de 2015

(Faz 51 anos hoje que assisti à minha primeira aula no Seminário Presbiteriano de Campinas).

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Setembro de 2015

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