Ortodoxia e Heresia – 3

[Este mais um artigo — o último de uma trilogia — que foi publicado primeiro no meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space). Infelizmente, por razões  de que agora não me lembro, a parte final ficou sem terminar — pretendo completa-la assim que tiver um tempo]

I. A Construção da Ortodoxia

1. O Sentido Etimológico dos Termos Heresia e Ortodoxia

O termo “heresia” nos vem do Grego, através do Latim.

Em Grego, o termo αἵρεσις (hairesis, em transliteração para o nosso alfabeto) significava, originalmente, escolha, ou coisa escolhida, ou até mesmo grupo dos que fizeram uma escolha. Assim, podia significar uma aceitação de alguma ideia, crença, doutrina ou teoria, ou até mesmo, uma seita: o grupo daqueles que aceitavam um conjunto determinado de ideias, crenças, doutrinas, teorias.

No Novo Testamento o termo foi aplicado aos Fariseus, aos Saduceus, e mesmo aos Cristãos, entendidos, todos eles, como seitas do Judaísmo.

Em Latim o termo haeresis veio a significar forma de pensar, escola filosófica — inicialmente sem se indicar se a forma de pensar ou escola filosófica era considerada correta ou desviante.

Com o tempo, já na era cristã, o termo veio a ser usado para se referir a crenças e doutrinas que se desviavam da opinião (δόξα, termo grego que, transliterado, dá doxa) geralmente aceita, ou, com o tempo, do ensinamento, instrução, ou doutrina (διδαχń, em Grego, transliterado como didaché, ou, ainda, doctrina, em Latim) tido como certo, correto, verdadeiro, oficial (oρθός, transliterado como orthós): a “ortodoxia”.

2. Das Heresias à Ortodoxia

Mencionei de passagem, na seção anterior, que o movimento que veio a se tornar o Cristianismo, durante boa parte do primeiro século da era que veio a ser conhecida como cristã, foi visto, inicialmente, e de forma correta, como uma seita judaica — na verdade, uma heresia do Judaísmo. Diferentemente dos Fariseus e dos Saduceus, que no primeiro século já eram seitas (ou formas de pensar) judaicas bem aceitas e assimiladas, os seguidores de Jesus de Nazaré não foram bem aceitos na Palestina, durante boa parte do primeiro século.

A história nos mostra, e uma leitura atenta do livro de Atos dos Apóstolos comprova, que, logo depois da morte de Jesus, seus seguidores eram quase que exclusivamente judeus. Mas havia basicamente dois tipos de judeus naquela época:

  • Os judeus que moravam na Palestina (em especial na Judeia e na Galileia), que falavam judaico ou aramaico, e eram cumpridores fieis e zelosos das leis e dos regulamentos judaicos;
  • Os judeus que moravam fora da Palestina (na Diáspora), que falavam grego, e que, embora ainda seguidores da religião judaica, adotavam uma religião à qual se haviam misturado elementos do pensamento helênico, e cujos costumes, pela sua convivência diária com gentios, não eram mais tão rigorosos.

É de esperar que houvesse certa animosidade entre uns e outros, animosidade essa que aumentava nas ocasiões em que os judeus helênicos visitavam o Tempo de Jerusalém.

Os cristãos que habitavam a Palestina se viam, inicialmente, como judeus, não como membros de uma outra religião. Como os demais, iam ao Templo, observavam as normas alimentícias, circuncidavam-se (no caso dos homens, naturalmente), etc.

Mas os seguidores de Jesus logo se esparramaram por cidades fora da Palestina, que eram helênicas, nas quais os judeus existentes eram judeus helênicos. Em Antioquia, diz o livro de Atos, os seguidores de Jesus foram pela primeira vez chamados cristãos. Nessas cidades, muitos judeus helênicos e muitos gentios (os chamados de “pessoas tementes a Deus”) aceitaram as ideias que os seguidores de Jesus lhes apresentavam e se converteram, sendo batizados.

Por admitirem, entre seus adeptos, judeus helênicos (da Diáspora) e até mesmo gentios, os seguidores de Jesus que viviam em cidades fora da Palestina sofreram discriminação por parte daqueles que viviam na Palestina, que exigiam que eles seguissem as normas alimentícias e outras, e, no caso dos homens, fossem circuncidados.

Por volta do ano 50 AD, em Jerusalém, um encontro entre Paulo, Pedro e Tiago (o irmão de Jesus), supostamente acertou essa questão (vide Atos 15 e Gálatas 2). Mas mesmo depois desse “acerto” ainda houve conflitos entre os seguidores de Jesus da Palestina e os das cidades helênicas.

Mesmo em Jerusalém, seguidores de Jesus que eram suspeitos de não aceitar totalmente a Torah foram perseguidos, e, no caso de Estêvão, assassinados (vide Atos   ).

Os primeiros cinco séculos da história cristã, até, basicamente, o ano de 476, que marca, para muitos, o fim da Antiguidade e o início da Idade Média, foram um período que viram a transformação daquilo que era, inicialmente, uma heresia judaica em uma outra religião, a religião cristã, e viram a fixação da ortodoxia dessa religião.

3. Pluralismo e Relativismo de Pontos de Vista – e Tolerância

É evidente que, em contextos pluralistas e relativistas, isto é, em que vários pontos de vista divergentes são tolerados em relação a uma mesma coisa (pluralismo), e em que (indo além da mera tolerância) se acredita que um é tão bom, certo, correto, ou verdadeiro quanto os demais (relativismo), não faz sentido falar em heresia — exatamente por inexistir, nesse contexto, a ideia de um único ponto de vista correto ou verdadeiro (ortodoxia) em relação a algum tema. Tudo é tolerado, tudo é admitido.

Em um contexto assim, a única coisa não tolerada é a ortodoxia intolerante — isto é, a postura daqueles que, por estarem convictos de que estão certos e de que estão de posse da verdade, não toleram divergência — passam a resistir ao pluralismo e, com maior razão, ao relativismo.

De certo modo, na época em que nascia o Cristianismo o Império Romano era pluralista, relativista e, por isso, tolerante — mas os judeus, embora fossem tolerados pelos romanos, não tinham postura igualmente tolerante, porque se julgavam o povo escolhido, os únicos a quem o Deus único e verdadeiro havia se revelado. Como diz Rubem Alves, “a linguagem religiosa sente vertigens diante de qualquer tipo de pluralismo e relativismo” (Dogmatismo e Tolerância, 26).

A antipatia dos romanos para com o judeus, e, depois, para com os cristãos, têm origem nesse fato.

4. Ferramentas para a Construção da Ortodoxia Cristã

Como vimos no primeiro artigo desta série, muita gente acredita que a maioria dos cristãos nos quatro ou cinco primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Vimos, também, que provavelmente a coisa não era bem assim, e que o mais certo é supor que por um bom tempo vicejaram várias doutrinas ou escolas de pensamento que, posteriormente, quando fixada a ortodoxia, foram declaradas heréticas, mas que, antes dessa fixação, competiam de forma razoavelmente livre entre si. A ortodoxia, neste ponto de vista, foi uma construção lenta e cuidadosa que exigiu, por parte das lideranças do cristianismo nascente, a criação de várias ferramentas, entre as quais as mais importantes são:

  • A definição, ou o fechamento, do cânon do Novo Testamento.
  • A definição de fórmulas que definiam, de forma telegráfica, as principais doutrinas do cristianismo nascente — as chamadas “regras de fé” (regulae fidei), usadas por ocasião do batismo, e, que, oportunamente se tornaram os credos.
  • A concentração de poder nas mãos do clero, em especial dos bispos, para definir, entre outras coisas, o que é pensamento ortodoxo e o que é pensamento herético.
  • Quando os bispos não se entendiam, convocação de concílios onde as divergências eram debatidas e se tentava chegar a um consenso — dos quais o de Calcedônia, em 451, é considerado o mais importante (embora não tenha sido o último).

É fácil de lembrar: são quatro “c’s”: cânon, credo, clero e concílio.

II. As Principais Controvérsias

É de esperar que as principais controvérsias desses primeiros tempos tenham tido que ver com a natureza da principal figura do Cristianismo: Jesus de Nazaré.

1. Quem é Jesus de Nazaré?

Nem mesmo os livros que vieram a ser definidos como canônicos concordam acerca de quem era, em sua essência mais profunda, Jesus de Nazaré.

De um lado, eles dizem, com todas as letras, que Jesus era um homem, “nascido de mulher”, como diz a Bíblia, que tinha mãe (e pai — ele é chamado de “o filho do carpinteiro”), que sentia fome e frio, que foi tentado, sofreu e finalmente morreu e foi sepultado.

De outro lado, ele parecia ser um homem muito especial. Alguns livros do Novo Testamento dizem que sua concepção no ventre de Maria prescindiu da colaboração de seu marido (noivo), José, e que Jesus, portanto, era filho de uma virgem, que o concebeu por obra do Espírito Santo.

Além disso, ele era extremamente precoce (discutia com os doutores no Templo quando tinha apenas 12 anos), carismático, excelente mestre e pregador, realizador de inúmeros milagres e, em relação a algumas questões, profeta.

Por fim, embora tenha sem dúvida morrido, os livros do Novo Testamento afirmam que ele foi ressuscitado depois de três dias, havendo registro de que apareceu vivo a várias pessoas (embora em circunstâncias às vezes não inequívocas), e, finalmente, ascendeu aos céus onde continua vivo junto de Deus.

Até aí temos que Jesus foi um homem — mas um homem muito especial.

Os nomes que os escritores dos livros que vieram a se tornar parte do Novo Testamento aplicam a ele são diversos: Mestre talvez seja o mais comum. Os nomes que ele próprio aplica a si mesmo (segundo os escritores dos livros do Novo Testamento), Filho do Homem provavelmente sendo o mais comum.

Mas ele é chamado também de Cristo, Logos, Filho de David, Filho de Deus, Cordeiro de Deus, Rei dos Judeus (na cruz)…

Em nenhum lugar no Novo Testamento Jesus é chamado pura e simplesmente de Deus ou mesmo de divino.

Como é, então, que, a partir de toda essa diversidade, Jesus veio a ser considerado, no Credo de Calcedônia, de 451:

“Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à [sua] divindade, e perfeito quanto à [sua] humanidade; verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo, consubstancial com o Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em tudo semelhante a nós, excetuando o pecado; [mas] gerado segundo a divindade pelo Pai antes de todos os séculos, e nestes últimos dias, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, mãe de Deus; um e só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a distinção de naturezas de modo algum [sendo] anulada pela união, antes [sendo] preservada a propriedade de cada natureza, concorrendo para formar uma só pessoa e em uma subsistência; não separado nem dividido em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito, Verbo de Deus, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas desde o princípio acerca dele testemunharam, e o mesmo Senhor Jesus nos ensinou, e o Credo dos santos Pais nos transmitiu.”

[Vide http://pt.wikipedia.org/wiki/Credo_calcedoniano]

O processo foi gradativo, e, em sua maior parte, consistiu em negar a veracidade de determinadas afirmações que algumas pessoas e alguns grupos estavam fazendo.

A. Jesus de Nazaré é Mestre, Profeta, Ser Especial, mas é Menos do que Deus

Aqui vamos discutir Ebionismo (Ebionitismo), Adocionismo e Arianismo.

a. Ebionismo (Ebionitismo)

Os Ebionitas, no segundo século, insistiam na necessidade de o Cristianismo observar a Lei e os costumes dos Judeus. Para eles, Jesus era o eleito ou escolhido de Deus, era um profeta verdadeiro (na linha dos profetas do Velho Testamento, mas não era um ser divino. Coerentemente, não aceitavam que ele fosse eterno, ou co-eterno com Deus, nem que tivesse nascido, miraculosamente, de uma virgem. Quem “incarnou” em Jesus foi um arcanjo celestial. Era admissível chama-lo de Messias e Cristo, porque ele cumpriu a Lei. Mas é a Lei que continua importante, não aquele, por mais honorável que seja, que a cumpriu.

[Cp. Leo Donald Davis, The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology, 1983, p. 33]

b. Adocionismo

Teodoto de Roma (século II) e Paulo de Samosata (século III) foram dois pensadores que também negaram a plena divindade de Jesus, afirmando que ele era um homem que foi (por ocasião de seu batismo) adotado por Deus. Paulo de Samosata acreditava que o Verbo (Logos) havia se incorporado ao homem Jesus, mas sem torna-lo divino. É possível chama-lo, portanto, de Filho de Deus, segundo Teodoto, mas não se pode esquecer de que a filiação é por adoção, e que Jesus, portanto, não compartilha da substância, natureza, essência de Deus, embora tenha recebido poderes especiais quando de sua adoção. Paulo de Samosata admitia que se chamasse Jesus de Filho de Deus por causa do seu progresso moral, não porque ele fosse divino.

Paulo de Samosata, é bom que se registre, era um bispo em Antioquia (260-268) — embora seu comportamento fosse bizarro para um bispo.

c. Arianismo

Desafio maior do que o dos Ebionitas e dos Adocionistas foi o de Ário (nascido na Líbia, por volta de 256, mas que escreveu e atuou principalmente no século seguinte, isto é, no início do século IV. Ele era um cristão de Alexandria, na verdade um teólogo de primeira, com enorme capacidade de argumentação e que conhecia extremamente bem os escritos cristãos. A data do início da controvérsia ariana é geralmente tida como 318.

Ário era um padre sério, austero, de aparência acética. Aparentemente era alto e bonito, e fazia sucesso com as mulheres. Consta que tinha um séquito de 700 virgens consagradas que o acompanhavam.

Ário tinha Jesus em mui alta conta, admitindo que ele fosse melhor do que os demais homens, e mesmo que fosse, em alguns aspectos diferentes dos demais homens. Ou seja, Ário estava disposto a aceitar a tese de que Jesus era “mais do que humano”.

No entanto, não podia se convencer de que ele chegasse a ser Deus, ou divino, porque cria que Deus só há um. Se viesse a admitir que Jesus era Deus, ou divino, teria de, em seu modo de ver, abandonar sua crença no monoteísmo. Assim, embora pudesse admitir que Jesus fosse “mais do que humano”, insistia em que ele era “menos do que divino”.

Jesus ficava, portanto, para Ário, numa posição intermediária entre “plenamente humano” e “plenamente divino”, não sendo, na verdade, nenhuma das duas coisas, mas compartilhando características de ambas.

Para Ário, Deus é um só, e só esse Deus único é “ingênito” (agenneton, não gerado, e, portanto, autoexistente; só esse Deus não tem princípio (anarchon), nem fim, e, portanto, é eterno; só esse Deus é perfeitamente bom, todo-poderoso, onisciente, criador de tudo o que existe, etc. etc. etc.

Por mais elevado que fosse o status de Jesus, Ário não admitia que ele fosse descrito em termos que se aplicam exclusivamente a Deus. Logo, não se pode dizer que Jesus fosse “ingênito”; mas pode-se dizer que ele era unigênito de Deus — o único gerado por Deus. A tese de Ário a esse respeito é compatível com João 3:16, em que Jesus é chamado de filho “unigênito” de Deus [vide também Rom 8:29 e Col 1:15, em que ele é chamado de “primogênito”), bem como com a linguagem de que Deus é Pai e Jesus, Filho (só que, para Ário, Jesus não é “Deus Filho”). Para Ário, dizer que Jesus foi gerado equivale a dizer que ele foi criado, isto é, faz parte da criação, como todas as outras coisas que existem (fora Deus).

A lógica do pensamento de Ário deveria ter levado a concluir que houve um tempo em que o Filho “não era”, não existia — e que ele só tivesse começado a existir a partir do momento em que Deus o gerou (criou). Contudo, Ário estava disposto a admitir que Jesus tivesse sido gerado (criado) “antes da criação do tempo” — sem que, entretanto, isso o tornasse eterno…

De qualquer forma, como gerado, ou como criatura, independentemente de ter sido gerado ou criado antes da criação do tempo, Jesus era claramente menos do que Deus e subordinado a Deus. É por isso que ele diz, em João 14:28, que o Pai é “maior do que eu”. Sendo menor do que Deus, num sentido essencial, Jesus não poderia ter acesso aos desígnios de Deus, razão pela qual não podia entender tudo o que Deus estava fazendo, nem mesmo com ele e através dele, Jesus.

Ário, embora possuidor de uma lógica implacável, e apesar de ser um conhecedor profundo das Escrituras, que ele era capaz de citar de forma espertamente seletiva, omitindo passagens que pudessem ser usadas contra ele, foi considerado herege no Concílio de Nicéia, de 325 (considerado o Primeiro Concílio Ecumênico, de sete que aconteceram). Assim, desde então, o arianismo — que, convenhamos, embora decretado heresia, custou a desaparecer — foi rejeitado, e a ortodoxia se comprometeu a aceitar a tese de que Jesus é divino, totalmente igual a Deus, da mesma “substância”, “natureza”, ou “essência” de Deus, embora reconhecendo que Deus e Jesus sejam duas “pessoas” diferentes.

O arianismo é considerado uma variante, ou uma categoria, de outras doutrinas rejeitadas pela igreja, como, por exemplo, o monarquianismo, doutrina antitrinitária que enfatiza que Deus é um único princípio e uma única pessoa, não mais, e o “subordinacionismo”.

[Cp. Williston Walker, História da Igreja Cristã, pp. 156-173; Vide especialmente Mark A. Noll, Momentos Decisivos da História do Cristianismo, pp. 53-58].

B. A Afirmação da Divindade de Jesus no Concílio de Nicéia (325)

Eis o Credo de Nicéia, que incorpora as decisões do Concílio convocado pelo Imperador Constantino para resolver a questão da natureza de Jesus:

“Cremos em um só Deus, Pai todo poderoso, Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis; E em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho de Deus, gerado do Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial do Pai, por quem todas as coisas foram feitas no céu e na terra, o qual por causa de nós homens e por causa de nossa salvação desceu, se encarnou e se fez homem, padeceu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus e virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo. Mas quantos àqueles que dizem: ‘existiu [um tempo] quando [Jesus Cristo] não era’ e ‘antes que nascesse não era’ e ‘foi feito do nada’, ou àqueles que afirmam que o Filho de Deus é uma hipóstase ou substância diferente, ou foi criado, ou é sujeito à alteração e mudança, a estes a Igrejaanatematiza”.

[http://pt.wikipedia.org/wiki/Primeiro_Conc%C3%ADlio_de_Niceia]

Como se vê, o Credo de Nicéia admite que Jesus foi gerado — mas nega que geração seja equivalente a criação e nega que tenha havido um tempo em que ele não estava, ou houvesse sido, gerado. Fica aberta a porta para a afirmação posterior de que sua geração pelo Pai foi eterna — isto é, o Pai, em sua eternidade, sempre esteve a gerar o Filho. A geração do Filho não significa, portanto, que ele fosse menor do que o Pai.

2. A Questão Trinitária

O Concílio de Nicéia afirmou que Jesus é da mesma substância que Deus, que é “consubstancial” de (com) Deus. Isso significa que ele tem a mesma natureza ou essência de Deus. Mas não negou que cada um fosse uma “pessoa” diferente. E afirma, meio en passant, a crença no Espírito Santo — que seria ainda uma outra pessoa. O desafio agora é explicar como essas três pessoas de uma mesma substância (natureza, essência) não são “três deuses”. O desafio, em outras palavras, é afirmar a Trindade e negar o Triteísmo.

Como disse G. L . Prestige,

“Como seria possível, dentro do sistema monoteísta que a Igreja herdou dos Judeus, que é claramente explicitado na Bíblia, e que vinha sendo proposto e defendido pertinazmente contra os pagãos, ainda manter a unidade de Deus e, ao mesmo tempo, insistir na plena divindade de alguém que era uma pessoa distinta de Deus, o Pai”.

[G. L. Prestige, God in Patristic Thought, 1936, apud Leo Donald Davis, The First Seven Ecumenical Councils (325-787): Their History and Theology, 1983, p. 33]

É evidente que o primeiro grande problema doutrinário da Igreja não foi a definição da Doutrina da Trindade, mas, sim, a definição da divindade de Jesus.

A. Patripassianismo

A doutrina (que veio a ser considerada herética) do Patripassianismo era uma doutrina antitrinitária, que paradoxalmente, reconhecia a divindade de Jesus, mas enfatizava a tal ponto a unidade de Deus que negava que o “Pai” e o “Filho” fossem pessoas diferentes, reconhecendo, assim, apenas um Deus. Para os patripassianistas, foi o próprio Pai que encarnou, nascendo da Virgem, e que sofreu e foi morto. Noeto de Smirna afirmou que “Cristo era o próprio Pai, e que foi o próprio Pai que nasceu, sofreu e morreu”. Daí vem o nome da doutrina: pater é pai, passionismo tendo que ver com paixão, sofrimento.

Sabellius, da Líbia, foi outro que defendeu uma doutrina, se não idêntica, muito parecida com o Patripassianismo — embora alguns autores a rotulem de Monarquianismo ou Modalismo: um princípio (ou divindade) só, mas que aparece em diversos “modos” ou “modalidades”. O que caracteriza todas essas heresias é a tentativa de não negar a real divindade de Jesus (como o Ebionismo, o Adocionismo, o Arianismo) e de, ao mesmo tempo, afirmar a unidade (não a triunidade) de Deus: Deus é uma pessoa só que se manifesta de diversos modos, como Pai, como Filho, como Espírito.

B. A Defesa do Trinitarismo

[A SER COMPLETADO]

Em São Paulo, 11 de Março de 2015

Transcrito aqui em São Paulo, em 8 de Agosto de 2015

Transcrito aqui em São Paulo, em 8 de Setembro de 2015

Ortodoxia e Heresia – 2

[Mais um artigo — este a segunda parte de uma trilogia — que foi publicado primeiro em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

Ortografia é grafia correta. Ortodoxia é opinião correta, ponto de vista correto.

Na História da Igreja Cristã o oposto de um ponto de vista correto é uma heresia. Uma heresia é, portanto, um ponto de vista incorreto. Uma pessoa que adota uma heresia, um ponto de vista incorreto, é um herege.

Na História da Igreja Cristã hereges eram em regra excomungados. Quando alguém que é membro da igreja é excomungado ele deixa de ser membro da igreja e perde os direitos que tinha como membro, como, por exemplo, o direito de comungar, vale dizer, o direito de ter comunhão com os demais membros, participar da Eucaristia ou da Ceia do Senhor, votar em assembleias, etc. A excomunhão é, por assim dizer, e para fins práticos, a revogação do batismo — a retenção da carteirinha de membro do indivíduo na entidade “igreja”.

Para que se conclua que alguém é herege, na igreja, é preciso saber, com bastante clareza e precisão, o que conta como ponto de vista correto — isto é, o que conta como ortodoxia.

Isso nem sempre é fácil.

Os pontos de vista classificáveis como ortodoxia ou heresia são, em regra, pontos de vista acerca de doutrina.

Uma doutrina, na religião, diferentemente de uma teoria, é um conjunto de enunciados acerca de um tema de importância para a religião que é colocado como objeto de fé ou aceitação pelos fiéis daquela religião.

No caso do Cristianismo, os enunciados

(a) “Jesus era filho de Maria”

(b) “Jesus era judeu”

não são exatamente doutrinas — são meras afirmações de fatos. Por outro lado, os enunciados

(c) “Jesus é filho de Deus”

(d) “Jesus é divino”

são afirmações de doutrinas (ou afirmações doutrinárias).

Por quê?

Uma razão é que qualquer um pode aceitar (com base em evidências históricas) a veracidade dos dois primeiros enunciados [(a) e (b)] sem ser, por isso, considerado cristão. Aceitar a veracidade dois enunciados seguintes [(c) e (d)] é, muito provavelmente, equivalente a identificar-se como cristão.

Por isso.

Também parece ser uma afirmação doutrinária dizer que

(e) “Maria, a mãe de Jesus, o concebeu e deu a luz a ele sendo virgem”

(f) “Maria, a mãe de Jesus, continuou a ser virgem mesmo depois de dar a luz a Jesus”.

Essa última doutrina é chamada de a doutrina da “virgindade perpétua de Maria”; a anterior é chamada de a doutrina do “nascimento virginal de Jesus”.

Disse atrás que decidir que um determinado ponto de vista é ortodoxo ou herético muitas vezes não é fácil.

Nossa evidência para aceitar os enunciados (a) e (b) é o fato de que a Bíblia afirma esses enunciados E (esse “e” é importante) não parece haver razão nenhuma para questionar essa afirmação.

O problema é que muita gente está convicta de que a Bíblia também afirma os enunciados (c) e (d) — enquanto, aqui, um bom número de pessoas contesta que esse seja o caso.

Mas antes de discutir enunciados (c) e (d), passemos rapidamente pelos enunciados (e) e (f).

A Bíblia afirma (e) e não afirma (f). Faz alguma diferença?

Bem, alguma diferença faz. A questão é: para quem e quanta.

Evidentemente, para quem já é cristão, faz (alguma) diferença se a Bíblia afirma ou não afirma algo. Para o cristão, o fato de que a Bíblia afirma que Jesus foi concebido em uma virgem e nasceu dela por obra do Espírito Santo de Deus torna esse enunciado merecedor de alguma atenção especial.

Se ele é um cristão, digamos, conservador, provavelmente esse fato é suficiente para justificar sua aceitação do enunciado (e).

Se ele é um cristão, digamos, liberal, o fato de a Bíblia afirmar esse enunciado pode não ser suficiente para que ele aceite o enunciado, embora ele provavelmente precise ter algum cuidado para se justificar, caso o recuse.

Para quem não é cristão, porque é, digamos, cético ou racionalista, o fato de a Bíblia afirmar (e) não quer dizer grande coisa — ou não significa nada. Dado o conteúdo do enunciado, essa pessoa simplesmente rejeita a sua veracidade, pois esse enunciado contraria, ou parece contrariar, sua experiência uniforme de como seres humanos funcionam (no caso, se reproduzem).

No caso do enunciado (f), que não está na Bíblia, muitos cristãos (por exemplo, todos os protestantes) e virtualmente todos os não-cristãos o rejeitam. Apenas os católicos, ou pelo menos alguns deles, o aceitam, por se tratar de uma doutrina consagrada pela tradição, ainda que não tenha respaldo bíblico. E a aceitam apesar de a Bíblia ser clara ao dizer que Jesus tinha vários irmãos — o que significa (provavelmente) que Maria teve outros filhos depois de Jesus. E a Bíblia não registra que a concepção e o nascimento dos irmãos de Jesus também tenham sido virginais.

Discutamos agora os enunciados (c) e (d).

A Bíblia afirma que Jesus era filho de Deus? A resposta a essa pergunta não é muito clara. Em alguns poucos lugares a Bíblia registra que algumas pessoas afirmaram que Jesus era filho de Deus. Em outros lugares, registra que algumas pessoas afirmaram que ele era o Messias que havia de vir, ou “aquele que está por vir” (erxomenos). Mas mesmo que a Bíblia afirmasse, taxativamente, não em um relato mas nas palavras do autor da passagem, que Jesus era filho de Deus, ainda restaria a questão de determinar o que a expressão “filho de Deus” significa — porque em outros lugares todos nós, ou, pelo menos, todos os que creem, são chamados de filhos de Deus.

Em nenhum lugar a Bíblia afirma taxativamente, nas palavras do autor, que Jesus é Deus ou que é divino. Afirma-se, por exemplo, em João 1:1, que, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus”. É possível extrair daí, com uma boa exegese, a interpretação de que Jesus era Deus. Mas a passagem comporta outras interpretações também.

O que dizer?

Por um bom tempo, na História da Igreja, a questão da divindade de Jesus ficou, digamos, em suspenso. Por uma razão muito boa: os cristãos, como os judeus, dos quais descenderam, eram monoteístas. Afirmar que Jesus era Deus os colocava diante do sério problema de explicar como é que alguém que crê em dois deuses pode se considerar monoteísta — e abrir mão do monoteísmo parecia ser equivalente a chancelar o politeísmo dos pagãos.

A solução encontrada, lá pelo século quarto, foi dizer mais ou menos isto: Deus e Jesus possuem uma mesma e única natureza (substância, essência) divina mas são duas pessoas (hypostases) distintas, o Pai e o Filho. Depois o Espírito foi acrescentado, produzindo a doutrina da Trindade: um só Deus (uma só natureza / substância / essência divina compartilhada por três pessoas, o Deus Três-em-Um [Tri(ú)no].

Resolvido (de modo a satisfazer a maioria que importava) o problema da divindade de Jesus (ou o problema trinitário, da Trindade de Deus), surge o problema conhecido como cristológico: se Jesus é de fato Deus (eterno, espiritual, imaterial, incorpóreo, etc.) como pode ter ele nascido de mulher, andado aqui na Terra, sofrido, morrido e (segundo se crê) sido ressuscitado? [Interessante que a Bíblia em nenhum ligar diz que Jesus “se ressuscitou” dos mortos: ela afirma que ele “foi ressuscitado (por Deus)”].

A solução do problema cristológico foi, de certo modo, o oposto da solução do problema trinitário (ou da divindade de Jesus), mas operou nos mesmos pressupostos metafísicos. No caso da discussão do problema trinitário, postulou-se a existência de duas (na verdade três) pessoas em uma só natureza (essência, substância). No problema cristológico, postulou-se a existência, em uma só pessoa, mas com duas naturezas (essências, substâncias): a divina e a humana. Dessa forma, afirmou-se que Jesus (embora uma só pessoa) era “verdadeiramente Deus” e “verdadeiramente homem” (ou seja, tinha duas naturezas, ou essências, ou substâncias).

É evidente que ao falar em essência, substância, ou natureza, de algo (ou alguém), já se deixou muito para trás a linguagem do Novo Testamento para utilizar a linguagem da filosofia grega (helênica, helenista). Traduzir nessa linguagem o que diz a linguagem concreta e metafórica do Novo Testamento é sempre complicado.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso da Trindade, que Deus era constituído de três pessoas mas que possuía uma só natureza. Afirmar que Deus era uma pessoa só ou possuía três naturezas era cair em heresia: a heresia monarquista (antitrinitarismo) ou a heresia triteísta.

O desafio dos ortodoxos foi justificar a afirmação, no caso de Cristológico, que Jesus tinha duas naturezas mas era uma só pessoa. Afirmar que Jesus tinha uma só natureza, ou que ele era de alguma forma constituído de duas pessoas era cair em heresia: a heresia monofisista, no primeiro caso, ou a heresia nestoriana, no segundo.

Aqueles que afirmavam que Jesus tinha apenas uma natureza (os monofisistas: phusis é natureza em Grego — donde vem física), não duas, foram condenados pela heresia do monofisismo.

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza divina, e só a aparência de uma natureza humana, foram condenados (também) pela heresia do docetismo (dokeo, em Grego, quer dizer parecer, aparentar).

Aqueles monofisistas que afirmavam que Jesus tinha apenas a natureza humana, e só a aparência de um ser divino, foram condenados (também) pelas heresias do adocianismo (e outras variantes).

A discussão, na verdade, não parou aí. Se Jesus, embora uma só pessoa, tinha duas naturezas (essências, substâncias), o que dizer de sua vontade e de sua propensão a agir? Tinha ele uma só ou duas de cada uma dessas? Uma só vontade (telos)? Uma só propensão a agir (energia)? Ou duas? O monotelismo e o monergismo foram considerados heresia (em favor do duotelismo e do duergismo: duas vontades e duas propensões a agir).

Mas se duas, resta o problema: como elas se relacionavam uma com a outra? Qual prevalece? Em que condições?

E assim vai.

A seguir uma discussão interessante do monotelismo pelo apologeta contemporâneo William Lane Craig.

http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo

Monotelismo

PERGUNTA

Olá Dr Craig!

Estou lendo seu livro Philosophical Foundation for a Christian Worldview (Filosofia e Cosmovisão Cristã, ed. Vida Nova, 2005). Infelizmente, minha pergunta não foi respondida quando eu estava no seminário fazendo M. Div. uma década atrás. Após sua explicação, estou mais convencido de que a sua posição, o monotelismo (pg. 611), é a mais correta, apesar dessa conclusão ser apenas uma conclusão tentativa. Monotelismo está sempre ligado com monofisismo. Até onde eu entendo, o monotelismo não é, necessariamente, uma implicação do monofisismo. O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou tanto o monofisismo quanto o monotelismo como heréticos. (A maioria dos evangélicos reconhece esse concílio ecumênico?) O Dr. Norman Geisler também reconhece o monotelismo como herético (Systematic Theology [Teologia Sistemática] Volume 2: God, Creation, [Grand Rapids, MI: BethanyHouse, 2003] pg. 296). Minha pergunta é a seguinte: você não se preocupa com o fato de que alguns evangélicos consideram você um herege por causa da sua crença no monotelismo? Como eu estou mais convencido de sua explicação, eu não quero ser considerado como um herege nesse caso.

RESPOSTA

William Lane Craig:

Nenhum cristão sincero quer ser considerado um herético. Mas nós, protestantes, reconhecemos apenas a Escritura como nossa regra de fé final (o princípio da Reforma de sola scriptura). Portanto, nós trazemos até mesmo as afirmações de Concílios Ecumênicos perante o crivo da Escritura. Sempre existe uma grande hesitação em discordar de pronunciamentos de um Concílio Ecumênico. Ainda assim, como nós não os vemos como detentores de autoridade divina, estamos abertos para a possibilidade de que eles erraram em algumas coisas. Parece-me que ao condenar o monotelismo como uma doutrina incompatível com a crença cristã a igreja foi além de seus limites.

O que é monotelismo? É a doutrina que afirma que o Cristo encarnado tem uma única faculdade de vontade. Em contraste, o diotelismo ensina que o Cristo encarnado tem duas faculdades de vontade, uma associada com sua natureza humana (sua vontade humana) e uma associada com sua natureza divina (sua vontade divina). O Terceiro Concílio de Constantinopla condenou o monotelismo, promulgando como obrigatório para Cristãos crerem em duas vontades em Cristo. Eu suspeito que a maioria dos evangélicos Cristãos declare fidelidade com seus lábios ao Terceiro Concílio e ao diotelismo sem ter refletido seriamente a respeito desse assunto.

Alguns de nós, no entanto, consideram o monotelismo como, pelo menos, uma opção legítima para o Cristão bíblico, sem dizer que seja verdade. O Concílio aparentemente pensou que negar uma vontade humana de Cristo implicaria que lhe faltava uma natureza humana completa, ou seja, Cristo não seria verdadeiramente homem nesta hipótese. Portanto, para proteger a integridade da natureza humana de Cristo, o Concílio promulgou o diotelismo como algo mandatório para uma crença cristã ortodoxa. A preocupação com a verdadeira humanidade do Cristo encarnado é louvável e importante. A doutrina cristã da encarnação requer que Cristo seja verdadeiramente homem e verdadeiramente divino. Mas por que pensar que o fato de Cristo ter uma única vontade reduziria sua natureza humana?

O que o Concílio presumia, e o que parece duvidoso para muitos, é que a faculdade da vontade pertence propriamente à natureza de alguém em vez de pertencer à pessoa. É por isso que o Concílio pensou que se a natureza humana de Cristo não tivesse a faculdade da vontade, então ela não seria uma natureza humana verdadeira e completa. Em contraste, me parece quase óbvio que a vontade é uma faculdade de uma pessoa. São pessoas que tem livre arbítrio e que o exercitam para escolher isso ou aquilo. Se a natureza humana de Cristo tinha sua própria vontade, o que significaria que Cristo tinha, literalmente, duas vontades, como o Concílio afirmou, então existiriam duas pessoas, uma humana e uma divina. Mas esta é a heresia conhecida como nestorianismo, que divide Cristo em duas pessoas. Eu não consigo compreender como a natureza humana de Cristo poderia ter uma vontade própria, distinta da vontade da Segunda Pessoa da Trindade, e não ser uma pessoa.

A pergunta, então, é se Cristo pode ter uma vontade, porém duas naturezas. Ou ter uma única vontade implicaria na heresia chamada Monofisismo, a doutrina que Cristo tinha uma única natureza? No Concílio de Calcedônia, a Igreja condenou o monofisismo e promulgou o diofisismo, a doutrina que Cristo tinha duas naturezas, humana e divina. A pergunta não é, como você colocou, se o monotelismo é, necessariamente, uma implicação do monofisismo – parece óbvio que sim, pois se há apenas uma pessoa e uma natureza no Cristo encarnado, de onde viria a segunda vontade? – mas se o monofisismo é, necessariamente, uma implicação do monotelismo, como o Concílio acreditava.

Eu não penso que é. No capítulo sobre a encarnação, no livro Filosofia e Cosmovisão Cristã, eu dou um possível modelo da encarnação de acordo com o qual a natureza humana de Cristo torna-se completa através de sua união com a Segunda Pessoa da Trindade. Como só existe uma pessoa em Cristo, existe apenas uma faculdade da vontade, e esta faculdade serve tanto à humanidade quanto à divindade de Cristo, sendo exercitada por meio tanto da natureza humana quanto da natureza divina. Assim, Cristo tem duas naturezas completas, mas uma única vontade, da mesma forma que – e porque – ele é uma única pessoa.

Portanto, embora eu não goste de contradizer os decretos de um Concílio Ecumênico, acredito que o perigo de cair em nestorianismo é muito maior do que o perigo de cair em monofisismo. Eu acho que podemos coerentemente e biblicamente ser monotelistas sem sermos monofisistas.

William Lane Craig

Leia mais: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/Monotelismo#ixzz3RuhRzuBm

Em São Paulo, 16 de Fevereiro de 2015

(Faz 51 anos hoje que assisti à minha primeira aula no Seminário Presbiteriano de Campinas).

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Setembro de 2015

Ortodoxia e Heresia – 1

[Mais um artigo — este parte de uma trilogia — que publiquei primeiro em meu blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

Comprei e estou lendo um livro (recentíssimo, publicado já em 2015) de História da Igreja muito interessante: Medieval Christianity: A New History, de Kevin Madigan (Yale University Press, 2015). Embora o livro seja, como indica o título, uma abordagem nova à História do Cristianismo na Idade Média, sua primeira parte é dedicada à História do Cristianismo na Antiguidade.

O autor, para justificar a sua “História Nova”, tenta provar, em relação ao Cristianismo na Era Antiga, uma tese complexa que vai contra o que normalmente se acredita.

O que normalmente se acredita é que a maioria dos cristãos nos quatro primeiros séculos da era cristã subscrevia àquilo que hoje se considera ortodoxia em sua doutrina, as diversas heresias aparecendo apenas nas periferias, e sendo rapidamente combatidas e rechaçadas pela maioria ortodoxa.

Contra essa crença convencional Madigan procura provar uma tese complexa:

  1. A construção do que hoje chamamos ortodoxia foi um processo longo e difícil, concluído apenas por volta do século V e VI, e que foi objeto de deliberação cuidadosa e intencional;
  2. A maioria dos cristãos durante os primeiros quatro ou cinco séculos subscrevia a pelo menos uma doutrina, geralmente a mais de uma, que veio a ser considerada herética posteriormente;
  3. A ortodoxia foi construída, de cima para baixo, à medida em que bispos e a liderança teológica (os pais da igreja que acabaram por não ser considerados heréticos em algum aspecto importante) se valeram de três instrumentos para forçar os demais cristãos a subscrever ao núcleo de doutrinas considerado ortodoxo por eles: a definição de fórmulas, regras de fé ou credos; a definição do cânon do Novo Testamento; a sujeição e submissão do pensamento da generalidade dos cristãos aos ditames do clero, em especial do bispo da região: Credo, Canon e Clero são os três C’s daquilo que vai a ser considerado ortodoxia no Cristianismo Católico (mais dois C’s aqui…);
  4. No processo, doutrinas que não se adequavam aos credos foram sendo consideradas heréticas e anatematizadas, bispos e teólogos discordantes foram sendo eliminados (por excomunhão) do rol das autoridades, e os escritos que de alguma forma não se ajustavam totalmente aos credos aprovados ficaram fora do cânon.

Interessante, não? A maioria dos cristãos (no centro, e não na periferia) era não-ortodoxa (pelo critério de ortodoxia adotado posteriormente), vale dizer, herege, e a ortodoxia se construiu por um processo gradual mas deliberado de eliminação de heresias e hereges.

Termino com um comentário pessoal… Tenho dificuldade para acreditar que pequenos pontos de divergência doutrinária tenham servido, ao longo da história da igreja, para inúmeras excomunhões de pessoas e grupos de pessoas, bem como para cismas e divisões da igreja. Às vezes, do ângulo da dedicação à igreja e da moralidade, não havia reparo a fazer a alguém… Mas seus pontos de vista tinham um “cheiro” de heresia (em geral arianismo ou pelagianismo)… Nada mais do que isso. Logo, excomunhão nele. Sempre achei isso lastimável. Que, porém, essa atitude ainda perdure no século 21 é ainda mais lamentável.

Em Salto, 14 de Fevereiro de 2015 (pequeno acréscimo em 16/2/2015)

Transcrito aqui em São Paulo em 8 de Setembro de 2015