Há Futuro para um Ecumenismo Cristão? Reflexões sobre o que nos Separa

Eduardo Chaves

1. Introdução

Sei que vou mexer em vespeiro e, possivelmente, atrair para mim a ira de boa parte dos cristãos. Mas vou fazer isso, não para puxar briga e criar dissensão, mas para concitar meus amigos que, como eu, se consideram cristãos, a refletir um pouco sobre a nossa desunião crônica e sobre nossa tendência inelutável (no caso Evangélico) à separação.

Quando falo sobre “Ecumenismo”, no título, tenho em mente, como deixo claro, “Ecumenismo Cristão”, isto é a convivência pacífica e cordial entre aqueles que se consideram cristãos. Deveria ser mais fácil, mas não é. Mas que fique claro que não estou cogitando de um Ecumenismo que inclua os Judeus, os Muçulmanos, os Hindus, os Budistas, os seguidores de Religiões Africanas, etc. Incluo apenas aqueles que, em algum sentido relevante do termo, se consideram cristãos. Isso significa que incluo os Católicos e os Ortodoxos Orientais. Acho desnecessário frisar que incluo Pentecostais de todo naipe, Adventistas, Testemunhas de Jeová, Mórmons e até os “Moonies” (membros da Igreja da Unificação do Rev. Sun Myung Moon).

Sei que o termo “relevante”, na parágrafo anterior, é complicado e pode já gerar alguma discussão e controvérsia. Mas meu objetivo, neste artigo, não é criar mais conflito e desunião. Pelo contrário. É achar um “minimum minimorum”, como dizia meu pai, que nos permita, nem digo viver no amor cristão, mas simplesmente viver em paz e cordialidade.

Os dois termos, “paz” e “cordialidade”, são importantes. Viver em paz não basta, não é suficiente. Eu posso viver em paz com um primo meu que eu nunca vejo, e com quem não converso, há mais de cinquenta anos. O termo “cordialidade” é apto, pois enfatiza mais do que a paz decorrente da distância e da ausência de contato, apontando para a necessidade de uma convivência ativa e agradável – algo que pelo menos chegue perto de comunhão..

 Para quem não me conhece, sou presbiteriano de nascimento. Meu pai era pastor, eu nasci em casa, e a igreja de que meu pai era pastor funcionava em anexo. Sou, por formação, Historiador do Cristianismo (das Igrejas que se denominam Cristãs) e do Pensamento Cristão. Fiz curso de Teologia na Graduação, curso de História da Igreja, no Mestrado, e curso de História da Filosofia, no Doutorado. Faz mais de sessenta anos que esse assunto me fascina (desde o início dos anos sessenta). Meu Doutorado (em Filosofia, mas com tese sobre o Pensamento Cristão) foi concluído e defendido em Agosto de 1972, na University of Pittsburgh. Faz mais de cinquenta anos. O título de minha tese foi: David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought. O tema foi a revolução que o Iluminismo (exemplificado por Hume) produziu na História do Pensamento Cristão, fazendo que surgisse o Liberalismo do Século 19.  

Não por desejo nem por escolha minha, só vim a exercer função profissional nessa área em Julho de 2014, fazendo-o por apenas três anos, até Junho de 2017 – e, neste caso, a saída foi a despeito de minha vontade de continuar. Ou seja, só vim a exercer a função para a qual me preparei academicamente durante a vida toda apenas depois de completar setenta anos – quando a maioria das pessoas já está aposentada. (Eu também já estava, como professor de Filosofia na UNICAMP). Mas isso não se deu por desejo e por escolha minha, repito.

Ao longo desses mais de cinquenta anos, passei cerca de quarenta anos fora da igreja – totalmente desigrejado. Isso se deu desde 1970, quando decidi que não havia futuro para mim na igreja como pastor ou professor de teologia, até 2010, quando me tornei membro da Catedral Evangélica de São Paulo (Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo). Fiquei membro da Catedral durante basicamente dez anos e meio, pedindo o meu desligamento em Março de 2021, durante a Pandemia do COVID. Desde então, não sou membro de nenhuma igreja – embora frequente, com regularidade, e grande satisfação, faço questão de esclarecer, a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, onde resido. Sinto-me em casa na igreja, mesmo não sendo membro dela.

Conheço várias pessoas que se dizem cristãs (até, na minha opinião, cristãs bastante conservadoras), mas que afirmam ser severas críticas da igreja. O primeiro livro que ganhei (de minha mulher), no final de minha fase de “desigrejado”, foi Alma Sobrevivente, de Philip Yancey, que tem por subtítulo a seguinte qualificação: Sou Cristão, Apesar da Igreja.

2. Como Eu Vejo a Questão

Eu vejo as coisas de um ângulo um pouco diferente. Acho esquisito o subtítulo do livro de Yancey. Para mim, ser parte de uma igreja é parte essencial de ser cristão. Consigo entender um desigrejado, mas não um cristão desigrejado. Tanto que, durante os quarenta anos que fiquei desigrejado, não me considerei cristão. Considerava-me, então, cético, agnóstico, até mesmo ateu. Durante os dez anos e meio em que fui membro da Catedral, eu evidentemente voltei a me considerar cristão. E, nesta segunda fase, frequentando a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, continuo a me considerar cristão, apesar de, oficialmente, não ser membro da igreja. (As igrejas têm alguma dificuldade para me rotular. Não seria correto me considerar um interessado. Seria eu apenas um visitante? Mas o visitante, no caso, é regular, comparece à igreja todos os domingos, participa da célula que se reúne no meio da semana… Que rótulo aplicar a ele? Como classifica-lo).

Em tese, eu gosto da Igreja, enquanto comunidade de pessoas que se consideram irmanadas por alguma coisa, por algum ideal – no caso de igreja, um ideal religioso. O que me atrapalha é a questão da doutrina – e da crença (ou fé) nessa doutrina que se exige dos membros (que precisam confessar a sua fé de público). Os que regularmente frequentam uma igreja cristã em geral se consideram “irmãos na fé”. Para se tornar membro de uma igreja cristã não basta, normalmente, querer ser membro: é preciso também crer ou acreditar em algumas doutrinas consideradas essenciais. No caso das Igrejas Presbiterianas em geral o essencial é toda a Confissão de Fé de Westminster, mais os Catecismos, a Ordem do Culto, o Código de Disciplina. Um essencial bem gordo. O número e a precisão das doutrinas que outras igrejas cristãs exigem varia, podendo ir desde “Você acredita em Deus e aceita Jesus Cristo como seu salvador?” até formulações bem mais detalhadas e cada vez mais complicadas de aceitar para algumas pessoas como eu.

O Novo Testamento diz, em Mateus 18:8-9:

“8. Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno.

⁹ E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.”

Marcos 9:43-48, que a maioria dos entendidos em Novo Testamento avaliam como mais antigo do que Mateus, e consideram uma fonte usada por este, afirma basicamente a mesma coisa (acrescentando três vezes uma frase cuja primeira parte é de complicado entendimento, na primeira tradução que estou usando):

“⁴³ E, se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga,

⁴⁴ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.

⁴⁵ E, se o teu pé te escandalizar, corta-o; melhor é para ti entrares coxo na vida do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno, no fogo que nunca se apaga,

⁴⁶ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.

⁴⁷ E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno,

⁴⁸ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.”

Para ninguém me criticar, estou citando, em ambos os casos, pela Almeida Corrigida e Fiel (ACF), e, confesso, não tenho a menor ideia do que a primeira parte da afirmação repetida nos versículos 44, 46 e 48 de Marcos quer dizer (“onde o seu bicho não morre”). Mas, para mim, esse trecho não faz muita diferença. Ser lançado no fogo do inferno só já basta para me deixar apavorado  – até porque é um foto eterno, nunca se apaga.

A Nova Tradução para Linguagem de Hoje (NTLH), de que muito crente tradicional e conservador não gosta, traduz os versículos de Mateus assim, deixando-o mais fácil de entender (como se espera):

“⁸ Se uma das suas mãos ou um dos seus pés faz com que você peque, corte-o e jogue fora! 

⁹ Se um dos seus olhos faz com que você peque, arranque-o e jogue fora! Pois é melhor você entrar na vida eterna com um olho só do que ter os dois e ser jogado no fogo do inferno.”

A NTLH traduz o texto de Marcos de forma coerente. Ela traduz a frase que eu achei de difícil entendimento em Mateus como: “Ali os vermes que devoram não morrem”. Como a vida humana no inferno também é eterna, nunca acabará, nem os seres humanos condenados, nem os vermes que tentarão nos devorar, terão fim. Penas eternas.

Segundo entendo, o que o Novo Testamento quer dizer é, basicamente, o seguinte (transportando para a primeira pessoa): se minha mão, ou meu pé, ou o meu olho me fizer pecar, ou escandalizar alguém, devo-o cortá-lo (ou removê-lo, no caso do olho) e jogá-lo fora, se eu quero escapar do Inferno.

O meu problema, para ser sincero, é o seguinte: e se minha cabeça (o meu cérebro) me fizer pecar, ou escandalizar alguém, devo eu cortar minha cabeça e jogá-la fora (supondo que minha mente esteja ligada de alguma forma ao meu cérebro e o cérebro esteja dentro da cabeça)?

MAS, se eu cortar minha cabeça, eu morro (na verdade, estarei me suicidando, o que não sei se a Bíblia recomendaria). Na verdade, se eu cortar a minha cabeça, não vou conseguir sequer jogá-la fora – alguém terá de fazer isso por mim. A questão mais séria, porém, é esta: será que eu evito o Inferno e entro no Céu sem cabeça? Ou será que eu ganho uma cabeça nova (com cérebro novo, com mente nova) nos portais do Reino de Deus? Mas, se eu tiver uma nova cabeça com um cérebro novo e uma mente nova, serei eu mesmo que entrarei no Céu ou será uma réplica parcial de mim? Como é que eu preservo a minha identidade de ser humano se minha cabeça, meu cérebro e minha mente forem trocados? Ou será que, por ter pecado com a cabeça (incluindo o cérebro e a mente), eu não tenho remédio e vou para o Inferno sem cabeça – mas, nesta hipótese, eu, por ter cortado voluntariamente minha cabeça, ficarei em desvantagem no Inferno em relação aos que não fizeram esse gesto heróico de cortar a própria cabeça…  Complicada a coisa, não é? Eu acho – e olhem que já li e pensei muito sobre essas coisas.

Eu sei que, a essas alturas, haverá muita gente que vai dizer que estou brincando com coisa séria. Concordo que a coisa é séria, mas discordo de que esteja brincando. Poucas vezes falei tão sério em minha vida.

3. O Problema, em Última Instância, é a Natureza da Bíblia

Antes de fornecer a minha solução, eu vou apresentar o meu diagnóstico. O problema, em última instância, é a questão da doutrina, que, no entanto, em última instância, depende da Bíblia — ou, melhor dizendo, depende de como entendemos a natureza da Bíblia.

A alternativa é:

OU a Bíblia é a Palavra de Deus, inspirada (ou, segundo alguns, virtualmente ditada) por ele para uma série de pessoas, tendo Deus garantido que ela, a Bíblia, tanto no Velho como no Novo Testamento, nos autógrafos originais, em Hebraico e em Grego, nas cópias subsequentes, e nas traduções para outras línguas, ao longo de quase três mil anos, é inerrante e infalível, em relação a qualquer questão, espiritual, moral, histórica, científica, e do dia-a-dia;

OU a Bíblia é um livro notável, de leitura altamente útil e, por vezes, agradável, que pode nos ajudar a ver o mundo de uma maneira importante e nele viver, tanto quanto possível, de modo correto, mas um livro humano, que, como tudo que é humano, contém erros e falhas, em relação a todas as questões que ela aborda (espirituais, morais, históricas, científicas, e do dia-a-dia).

É isso ou é isso. Pode-se tentar ficar tucanamente entre as duas alternativas, mas a posição é precária e a gente acaba caindo de um lado ou do outro.

O texto citado acima, na sua versão de Mateus e de Marcos, não só consta da Bíblia (no caso, do Novo Testamento) mas é atribuído a ninguém menos do que Jesus de Nazaré. O próprio.

Se o texto da Bíblia, em seu sentido literal (quando isso faz sentido), em qualquer das duas traduções, a fiel e a supostamente infiel, for total e absolutamente verdadeiro, não sobra um, meu irmão, porque a própria Bíblia diz que todos pecamos e destituídos fomos da Glória de Deus (Romanos 3:23) – e, se alguém, porventura, escapar da destituição, vai entrar na Glória sem mão, ou sem pé, ou sem olho, ou, pior, sem cabeça.

[UM PARÊNTESE. Eu sei, caros leitores, o que vem nos versículos seguintes de Romanos, como também sei que os cristãos não liberais, mas cultos e abertos, do dia de hoje, oferecem explicações mirabolantes para continuar a acreditar e afirmar que a Bíblia é literalmente a Palavra de Deus, mesmo sem ser inerrante e infalível em suas versões atuais, traduzidas para as línguas modernas, entre as quais a nossa. Sei que muitos acreditam — sem a menor evidência, registre-se — que os autógrafos, isto é, os originais, estariam sem erros e falhas, estes tendo sido introduzidos apenas por copistas e tradutores descuidados ou mal intencionados… Sei de tudo isso tão bem quanto qualquer um. Mas também sei que há um número enorme de pessoas, que poderiam estar incluídas no universo cristão, que se recusam a aceitar essas explicações mirabolantes. Sei também, por experiência, estudo e reflexão, que qualquer afirmação, por mais incoerente, inconsistente, autocontraditória e absurda que seja, sempre encontrará um intelecto brilhante disposto a aceitá-la, a acreditar nela, e a se dispor a convencer os outros de sua verdade. Estou cansado de saber tudo isso. Se vocês quiserem deixar de ler agora (se ainda não o fizeram), eu compreendo e lhes desejo um bom dia.]

Vou continuar ainda um pouco nesta mesma linha.

Há, na Bíblia, até mesmo no Novo Testamento, uma série de injunções (ordens, mandamentos, determinações, conselhos) que os cristãos, em sua maioria, mesmo os conservadores, e até mesmo os fundamentalistas, deixaram de aceitar nos dias atuais.

Paulo diz, em mais de um lugar, que as mulheres devem ficar caladas na igreja. Eis o que ele diz em 1 Coríntios 14:

33b Como em todas as igrejas do povo de Deus,

34 as mulheres devem ficar caladas nas reuniões de adoração. Elas não têm permissão para falar. Como diz a Lei, elas não devem ter cargos de direção.

35 Se quiserem saber alguma coisa, que perguntem em casa ao marido. É vergonhoso que uma mulher fale nas reuniões da igreja.

A passagem é clara é dispensa maiores comentários. Por mais que se tente, não dá para encontrar uma interpretação mirabolante que elimine o choque de alguém que lê esse trecho pela primeira vez no século 21. Especialmente se esse alguém for uma mulher jovem. Falo de cátedra. Tenho quatro filhas mulheres com idades entre 24 e 50 anos. E todas elas adoram falar.

Há muitas igrejas cristãs que, hoje em dia, simplesmente ignoram essa passagem, fazem de conta que ela não está na Bíblia. O pastor não prega sobre ela e a Escola Dominical / Sabatina não se aventura a por a questão em discussão.

Há igrejas cristãs, hoje em dia, que (felizmente) não fazem nenhuma distinção entre homem e mulher quando se trata de ocupar os principais ofícios da igreja: ensinar, pregar, oficiar os sacramentos, administrar a igreja. Há mulheres diaconisas, presbíteras, pastoras, bispas, apóstolas. Tudo exatamente o oposto do que Paulo determinou. O pessoal dessas igrejas vai todo para o Inferno?

A Bíblia inteira sugere que o homem é superior à mulher, sem qualificação, no mínimo porque teria sido criado primeiro, e ela teria sido criada a partir da costela dele. Isto já seria suficiente para que ele exerça a autoridade, como cabeça do casal, no lar, e que exerça as posições de liderança, fora do lar, no trabalho, e, naturalmente, na igreja. Embora haja mulheres que possuam papel importante no Cristianismo Primitivo, nenhuma foi chamada de discípula, apóstola, nem mesmo de bispa, pastora, presbítera e diaconisa.

Eis o que diz Paulo (ou seja quem for o autor de Efésios), no capítulo 5:

22 Esposa, obedeça ao seu marido, como você obedece ao Senhor.

23 Pois o marido tem autoridade sobre a esposa, assim como Cristo tem autoridade sobre a Igreja. E o próprio Cristo é o Salvador da Igreja, que é o seu corpo.

24 Portanto, assim como a Igreja é obediente a Cristo, assim também a esposa deve obedecer em tudo a o seu marido.” [Ênfase acrescentada.]

Eis o que Paulo (ou seja quem for que escreveu a carta) diz em 1 Timóteo 2:

11 As mulheres devem aprender em silêncio e com toda a humildade.

12 Não permito [sic!] que as mulheres ensinem ou tenham autoridade sobre os homens; elas devem ficar em silêncio. [Ênfase acrescentada.]

13 Pois Adão foi criado primeiro, e depois Eva.

14 E não foi Adão quem foi enganado; a mulher é que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus.”

(Aqui, o autor chega a afirmar que foi só a mulher que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus…)

[Veja-se, a propósito do constante nas duas passagens, o artigo publicado pelo Seminário JMC, uma instituição da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), na Web: https://www.seminariojmc.br/index.php/2018/02/21/as-mulheres-podem-ensinar-na-igreja/. Isso, em pleno século 21. Os barbados não têm vergonha de escrever isso porque, na opinião deles, foi Deus quem determinou que assim fosse.]

No Novo Testamento afirma-se que o divórcio é tolerável no caso de traição mas nega-se que o cônjuge não culpado possa se casar de novo e viver uma vida normal na igreja (a menos que o cônjuge culpado, ou que tomou a iniciativa no divórcio, seja não-cristão!). O Novo Testamento não vê com bons olhos o casamento de uma pessoa cristã com uma pessoa não cristã (aquilo que se chama de “jugo desigual”).

Na verdade, os principais personagens do Novo Testamento, Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso, eram solteiros. E tinham uma certa preferência pela solteirice – até porque os dois imaginavam que o mundo ia acabar ainda no tempo deles…

Eis o que diz Paulo em 1 Coríntios 7:

8 Aos solteiros e às viúvas eu digo que seria melhor para eles ficarem sem casar, como eu.

9 Mas, se vocês não podem dominar o desejo sexual, então casem, pois é melhor casar do que ficar queimando de desejo.

10 Para os que já estão casados tenho um mandamento, que não é meu, mas do Senhor: que a mulher não se separe do seu marido.

11 Porém, se ela se separar, que não case de novo ou então que faça as pazes com o marido. E que o homem não se divorcie da sua esposa.

12 Aos outros digo eu mesmo, e não o Senhor: se um homem cristão é casado com uma mulher que não é cristã, e ela concorda em continuar vivendo com ele, que ele não se divorcie dela.

13 E, se uma mulher cristã é casada com um homem que não é cristão, e ele concorda em continuar vivendo com ela, que ela não se divorcie dele.

14 Pois Deus aceita o homem que não é cristão por ele estar unido com a sua esposa cristã; e aceita a mulher que não é cristã por ela estar unida com o seu marido cristão. Se não fosse assim, os filhos deles não pertenceriam a Deus. Mas, sendo assim, eles pertencem.

15 Porém, se o marido não cristão ou a esposa não cristã quiser [sic] o divórcio, então que se divorcie. Nesses casos o marido cristão ou a esposa cristã está livre para fazer como quiser, pois Deus chamou vocês para viverem em paz.”

Além disso, o Novo Testamento afirma que, na hora das relações sexuais, a mulher, como em tudo, deve obedecer o marido. Na verdade, também afirma que o homem não deve negar seu corpo à sua mulher, se ela porventura o desejar. Mas é só em relação à mulher, como vimos, que o Novo Testamento afirma que ela deve obedecer ao seu parceiro…).

Eis o que Paulo afirma, ainda em 1 Coríntios 7:

1b Vocês dizem que o homem faz bem em não casar.

2 Mas eu digo: já que existe tanta imoralidade sexual, cada homem deve ter a sua própria esposa, e cada mulher, o seu próprio marido.

3 O homem deve cumprir o seu dever como marido, e a mulher também deve cumprir o seu dever como esposa.

4 A esposa não manda no seu próprio corpo; quem manda é o seu marido. Assim também o marido não manda no seu próprio corpo; quem manda é a sua esposa.

5 Que os dois não se neguem um ao outro, a não ser que concordem em não ter relações por algum tempo a fim de se dedicar à oração. Mas depois devem voltar a ter relações, a fim de não caírem nas tentações de Satanás por não poderem se dominar. ”

Se a mulher não pode se negar ao marido, e apenas ela tem a obrigação de obedecer ao cônjuge (ele não), há uma disparidade de direitos e deveres no relacionamento conjugal.

No Novo Testamento há uma digressão curiosa (e até certo ponto esquisita para as pessoas do século 21) sobre o uso de véu pelas mulheres na igreja. Eis o que diz Paulo em 1 Coríntios 11 (a passagem é meio longa):

3 Mas quero que entendam que Cristo tem autoridade sobre todo marido, que o marido tem autoridade sobre a esposa e que Deus tem autoridade sobre Cristo.

4 Se um homem cobre a cabeça quando ora ou anuncia a mensagem de Deus nas reuniões de adoração, ele está ofendendo a honra de Cristo [!!!].

5 E, se uma mulher não cobre a cabeça quando ora ou anuncia a mensagem de Deus nas reuniões de adoração, ela está ofendendo a honra do seu marido [!!!]. Nesse caso, não há nenhuma diferença entre ela e a mulher que tem a cabeça rapada.

6 Se a mulher não cobre a cabeça, então é melhor que ela corte o cabelo de uma vez. Já que é vergonhoso para a mulher rapar a cabeça ou cortar o cabelo, então ela deve cobrir a cabeça.

7 O homem não precisa cobrir a cabeça, pois ele reflete a imagem e a glória de Deus. Mas a mulher reflete a glória do homem, [!!!]

8 pois o homem não foi feito da mulher, mas a mulher foi feita do homem [Ênfase acrescentada].

9 O homem não foi criado por causa da mulher, mas sim a mulher por causa do homem [Ênfase acrescentada].

10 Portanto, por causa dos anjos [!!!/???], a mulher deve pôr um véu na cabeça para mostrar que está debaixo da autoridade do marido.

11 No entanto, por estarmos unidos com o Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher.

12 Porque assim como a mulher foi feita do homem, assim também o homem nasce da mulher. E tudo vem de Deus. [Tentando consertar?]

13 Julguem vocês mesmos: será que é certo que, num culto de adoração, a mulher ore a Deus sem estar com a cabeça coberta?

14 Pois a própria natureza ensina que o cabelo comprido é uma desonra para o homem,

15 mas para a mulher o cabelo comprido é motivo de orgulho. O cabelo foi dado a ela para lhe servir de véu.”

Embora a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) ainda hoje não ordene mulheres, ela, felizmente, permite que mulheres ensinem na Universidade Presbiteriana Mackenzie, de propriedade da IPB, que já teve até Reitora… (no caso, Esther de Figueiredo Ferraz, de 1965 a 1969 – duas outras mulheres vieram a exercer o cargo subsequentemente).

Embora algumas igrejas Pentecostais ainda exijam, das mulheres, o uso do véu na igreja, a maioria das igrejas cristãs não exige nem lenço nem chapéu (embora não os proíba, no que a moda agradece).

A maioria das demais igrejas cristãs no Brasil não segue a maior parte das demais injunções bíblicas mencionadas nos parágrafos anteriores.

Está a Bíblia errada ao proibir essas condutas? Na época em que a Bíblia foi escrita (um período que cobre mais de mil anos – o último livro sendo escrito há quase dois mil anos atrás) essas injunções eram bem aceitas, porque faziam parte da cultura da época (como fazia parte, por exemplo, a poligamia dos patriarcas, e outros costumes, hoje inaceitáveis, pelo menos na maioria das culturas ocidentais). Mas hoje, vamos defender a excomunhão e o expurgo das mulheres que falam, ensinam, pregam, oficiam os sacramentos e participam da administração nas igrejas que admitem isso? Parece-me claro que não… Não faz sentido (exceto para a Igreja Presbiteriana do Brasil).

Assim, na maioria dos casos, não se trata de afirmar que a Bíblia esteja cheia de erros e falhas (embora ela, sem dúvida alguma, os contenha). É só admitir que ela é um livro humano que possui, exemplifica, demonstra e evidencia a cultura, os usos e costumes, bem como as crenças e os pontos de vista, de sua época. É pura perda de tempo ficar procurando nas profecias bíblicas algum indício de que, nas profecias relativas aos  últimos tempos, haja algum indício que aponte para o aparecimento da Inteligência Artificial ou algo parecido com o Chat GPT – como eu já vi em discussão recente no Facebook. Os autores bíblicos não tinham nem ideia do que era um computador para poder fazer profecia relativa a um de seus usos.

E não adianta dizer que a Bíblia é inerrante e infalível em questões de fé e moral, mesmo que não seja em questões de usos e costumes que não envolvem a moralidade. Não é. O Deus da Bíblia manda matar inimigos, inclusive mulheres e crianças. Se a interpretação calvinista de Deus tem um mínimo de plausibilidade, o Deus que essa interpretação nos mostra é arbitrário e injusto, pois condena às penas eternas uma criança que morre com um dia de vida, se ela não for eleita, porque ela “nasce em pecado”, mesmo que não tenha cometido nenhum pecado ela própria, como eu li ainda ontem (21.8.2023) no Facebook. O Deus de Calvino determinou quem seria eleito para a salvação e quem seria condenado à perdição eterna, antes da criação do mundo… isto é, antes de ter criado o homem, e, a fortiori, antes de ele haver pecado. Em condições como essas, não havia como o homem não pecar (non posso non peccare, como dizia Agostinho). Essa a doutrina da chamada dupla predestinação.

Não sou proselitista e não estou querendo convencer, nem muito menos converter, ninguém. Convivo muito bem com gente que pensa diferente de mim. Nunca tive uma inclinação missionária. Só quero ver se é possível encontrar uma solução prática para o problema da desunião entre os cristãos, que lhes permita viver em paz e em cordialidade.

Como disse atrás, voltei a me considerar cristão – mas, desde 1965, e especialmente desde 1970, sou um cristão liberal. O liberalismo é muito criticado nas hostes do cristianismo conservador e fundamentalista. Mas pastores e teólogos liberais nunca processaram nenhum pastor conservador ou fundamentalista, nunca procuraram fazer com que fossem punidos pelos tribunais eclesiásticos, nunca os expulsaram de sua igreja. Em contrapartida, os conservadores e fundamentalistas fizeram isso com os pastores e teólogos liberais. Porque frequentemente são vítimas, e nunca algozes, os liberais querem uma igreja inclusiva, latitudinária. Para eles não existe algo que possa ser chamado de heresia, e, consequentemente, não há hereges: o pensamento divergente é visto por eles como um direito, mesmo dentro da igreja. Não havendo heresia, não há como caracterizar uma ortodoxia. Ponto final.

4. Qual a Solução?

 A única solução que eu encontro é definir minimamente a essência do Cristianismo de modo que todos os cristãos possam se enxergar, e enxergar os outros que se consideram cristãos, nessa essência (mesmo que eles aceitem muito mais do que o mínimo previsto na essência).

Essa solução implica considerar a religião cristã, ou o Cristianismo, como um movimento social, com uma essência básica, interpretada de forma ampla, e não como um conjunto de pessoas com crenças religiosas e metafísicas iguais – exatamente idênticas.

Interpretado assim, o Cristianismo poderá ser considerado, sem firulas desonestas, o maior movimento social do mundo, com mais de dois milênios de duração, aceito, se interpretado de forma latitudinária, por mais de dois bilhões de habitantes da Terra. Sendo um movimento social de natureza religiosa, ele não pode prescindir de uma referência a Deus e à existência de uma esfera que vai além do mundo natural e o transcende – seja qual for o nome que se lhe dê: esfera sobrenatural, esfera espiritual, esfera transcendente, o Além, etc. O movimento social cristão se recusa a aceitar que o mundo material seja tudo que existe e que a ciência natural seja a única forma de conhecimento e explicação válida.  

Qual seria essa essência? Já a sugeri (em parte) atrás, mas repito aqui de forma mais plena e precisa:

Acreditar que Deus é o responsável pela existência, pela preservação e pela governança do universo em que vivemos e aceitar que os ensinamentos e o exemplo de Jesus de Nazaré apontam para a melhor forma de viver, individual, social e espiritualmente, nesse universo ou em outro que porventura possa existir.”

Essa é uma essência. Toda essência é concentrada, é mínima, precisa ser expandida. Cada pessoa, ou cada grupo, pode expandir essa essência como desejar – DESDE QUE ADMITA QUE OUTROS POSSAM FAZÊ-LO DE FORMA DIFERENTE E CONTINUEM A ACEITAR A ESSÊNCIA. Todos os que aceitam a essência são irmãos nessa forma de ver o mundo. Você quer aceitar que Deus operou milagres nos tempos antigos e continua a realizá-los hoje, na forma de curas, livramentos, bênçãos especiais, etc.? Aceite. Nenhuma igreja deveria proibi-lo de crer nisso. É algo além do mínimo. Mas que não obrigue todos os demais cristãos a acreditar.

Utopia? Pode ser.

Se não buscarmos algo que parece utópico hoje, teremos de conviver com absurdos, com gente que acha que um casamento de uma pessoa batista com uma pessoa católica é proibido, porque se trata de jugo desigual, com gente que acha que, se você é arminiano, e não calvinista radical, você é do Diabo e já tem seu passaporte carimbado para o Inferno; E assim por diante.

Você prefere isso?

Você prefere viver em uma igreja em que as mulheres precisem ter cabelos compridos, e usar véus, e ainda por cima ficar totalmente caladas, no seu canto ou no seu lado da igreja? Vai haver igreja que satisfaça o seu gosto.

Você prefere viver em uma igreja em que, se alguém se divorciar, e se casar de novo, será posto para fora? Vai haver igreja que satisfaça sua preferência. Mas também haverá igreja que acolherá com naturalidade os que, tendo se separado, sentem que devem se casar de novo.

Se você é homossexual, você vai preferir viver em uma igreja que condena a homossexualidade como doença e quer fazer a sua cura, ou em uma igreja que acolhe com naturalidade você e seu parceiro (ou sua parceira)?

Note-se que já progredimos bastante.

Lutero concordou que os Príncipes Alemães de sua região matassem cerca de cem mil camponeses (sic) porque estes queriam que a Reforma Luterana contemplasse não apenas a doutrina da justificação pela fé mas também a doutrina de que o ser humano deve ser livre para trabalhar para quem quiser, naquilo que preferir, onde lhe for mais interessante – ou seja, por defender uma reforma que não fosse apenas religiosa, mas também econômica e social. Hoje a maior parte das pessoas concordaria com os camponeses alemães.

Calvino condenou à morte Michel Serveto (e alguns outros) por não acreditar que Deus é Triúno, isto é, um Deus constituído de Três Pessoas mas com Uma Só Natureza. Serveto não era ateu. Ele acreditava em Deus. Ele acreditava que Jesus era divino – mas não exatamente igual a Deus. E mesmo assim foi morto, em fogo lento, para sofrer mais e por mais tempo. Maldade pura e simples.  Hoje a maior parte das pessoas concordaria com Sebastian Castellio, defensor de Serveto e crítico de Calvino, de que a punição de hereges com a morte é algo totalmente inadmissível. Serveto quase perdeu a vida por fazer essa defesa, pois foi perseguido implacavelmente por Calvino.

Você preferiria viver numa época como a de Lutero e Calvino a viver hoje, com todo o chamado secularismo da Cultura Ocidental – mas que, por enquanto, é razoavelmente livre, permitindo a liberdade de culto e de religião?

As coisas precisam começar a mudar a partir de casa. Se você acha que só quem faz parte de sua própria denominação é cristão, os membros das demais estando perdidos sem esperança, já estando na ante-sala do Inferno, onde o Diabo os espera, não há esperança. Se a gente não consegue aceitar como irmão alguém que pensa diferente da gente em algo menor, secundário, não essencial, não há esperança — não só para uma União dos Cristãos, mas para a pacificação do mundo.

É isso. Graça e, no momento, sobretudo Paz, Tolerância, e Cordialidade.

Em Salto, 22 de Agosto de 2023

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