A Bíblia e a Sabedoria de Eclesiastes: Lições de Vida em Meio a Vários Problemas

A Bíblia e a Sabedoria de Eclesiastes: 
Lições de Vida em Meio a Vários Problemas

A Bíblia é um livro surpreendente. A gente está sempre se deparando com coisas novas nela. Às vezes, com coisas não muito edificantes, mas sempre instrutivas.

Ainda ontem, lendo os livros de Samuel, Reis e Crônicas (é… alguém ainda lê esses livros, de vez em quando, ainda que seja por dever de ofício), descobri que Salomão, por um conluio entre o profeta Natã e Bate-Seba (sim, aquela, do banho pelado no meio da tarde – II Samuel 12), veio a ser rei, ainda muito novinho e aparentemente inexperiente (o conluio é narrado em I Reis 1:11-32). Com exceção da atitude de Bate-Seba, que, afinal de contas, era a mãe dele, havia uma oposição significativa a Salomão, no restante da família (um irmão mais velho, Adonias, estava em plena campanha para ser coroado rei), no exército (o Comandante do Exército, Joabe não queria Salomão como rei) e no segmento religioso (o Sumo-Sacerdote, Abiatar também se opunha a Salomão). Todos esses apoiavam as pretensões de Adonias (I Reis 1:5-10). Mas Davi, embora já velhinho, ainda era sensível aos encantos de Bate-Seba, mesmo que esta já tivesse uns vinte anos a mais (a idade provável de Salomão, seu filho com Davi), e fez coroar Salomão, não seu irmão mais velho (I Reis 1:33-53).

Em seguida, Davi deu alguns conselhos e recomendações a Salomão, e morreu (1 Reis 2:1-10). Entre as recomendações estava a de que Salomão “não [deixasse] que [Joabe] [viesse a ter] morte natural” (1 Reis 2:6). Sutil a recomendação. Em relação a Simei, um profeta, que se recusara a apoiar as pretensões de Adonias, mas que tinha contas antigas a acertar com Davi, o velho rei simplesmente disse ao filho, recém coroado: “Você é um sábio e não deve deixar que ele fique sem castigo. Você sabe o que deve fazer para que ele morra” (1 Reis 2:8-9). Simples, e, como veremos, eficiente e eficaz.

Assim que Davi morreu, o que fez Salomão? Basicamente duas coisas, ambas envolvendo o princípio: “Ordem dada é ordem cumprida”:

• Acabou com a oposição: mandou matar todos, um por um, com toda a frieza do mundo (1 Reis 2:13-46);

• Depois, só depois, pediu a Deus sabedoria (1 Reis 3:1-15).

Pelo jeito, sábio Salomão já era, tanto que fez as coisas na ordem certa… Só pediu sabedoria depois de limpar a área de seus principais inimigos.

Entre os que Salomão mandou matar estavam seu irmão (na verdade, meio-irmão), Adonias (1 Reis 2:13-25), Joabe (1 Reis 2:26-35), e Simei (1 Reis 2:36-46). Abiatar ele apenas substituiu por Zadoque (1 Reis 2:35).

Apesar da mortandade, Deus atendeu ao pedido de sabedoria que lhe fez Salomão: “Dá-me sabedoria para que eu possa governar o teu povo com justiça e saber a diferença entre o bem e o mal”. E Deus elogiou o jovem rei por ter pedido sabedoria e não a morte de seus inimigos (!), ou riquezas, ou vida longa… Por causa da sabedoria implícita no pedido de sabedoria de Salomão, Deus resolveu lhe dar todo o resto: conhecimento, entendimento, riquezas, honras, vida longa, muitas mulheres lindas – “como ninguém teve antes de você, nem terá depois”… Registre-se que toda essa conversa de Salomão com Deus aconteceu em um sonho de Salomão (1 Reis 3:1-15)… [De vez em quando fico pensando por que os meus sonhos são tão chinfrins, comparados com os sonhos dos personagens bíblicos. Em 80 anos de vida nunca sonhei que estava falando com Deus, nem mesmo para receber uma bronca, quanto mais para ser abençoado, receber promessas de sabedoria, conhecimento, riquezas, etc.]

Para encurtar a história, Salomão reinou durante 40 anos (como seu pai Davi, antes dele, e como Saul, antes de Davi…) e nesse tempo construiu o Primeiro Templo de Jerusalém. [Esse negócio de 40 anos parece mandato de rei. Que os presidentes brasileiros (no sentido genérico, que inclui as presidentas, inclusive a presidanta que já tivemos, se é que um dia vai haver mais do que uma) não sigam a moda. Mas voltemos a Salomão…]. Mais para o fim de seu longo reinado e de sua vida (Salomão morreu em plena posse do poder), depois de se casar com 700 mulheres e arrumar 300 concubinas, muitas delas estrangeiras, Salomão deixou-se enredar por elas e abandonou os mandamentos de Jeová, que, por amor ao seu pai, não lhe tirou o trono imediatamente, mas fez com que 8/10 do reino fossem perdidos pelo seu descendente… Foi aí que surgiu a divisão entre o Reino de Israel, os 8/10 do Norte, que deixou de ficar com os descendentes de Salomão, e o Reino de Judá, os 2/10 Sul, que incluía Jerusalém e, naturalmente, Belém, de onde Davi era originário, que ficou com Reboão, filho de Salomão, tornando possível a genealogia de Jesus, como descendente de Davi, no Evangelho. [A morte de Salomão é relatada em 1 Reis 11:41-43; a revolta das tribos do Norte, lideradas por Jeroboão, e a divisão do reino em dois, Israel e Judá, em 1 Reis 12:1-20 e 2 Crônicas 10:1-19. A divisão dos dois reinos se deu assim que Reboão foi coroado, em 931 aC. O Reino do Norte durou cerca de 210 anos, até 721 aC, quando foi tomado pelos Assírios, o povo de Israel sendo levado cativo para a Assíria (2 Reis 17:5-40), e o Reino do Sul até 586, quando foi tomado pelos Babilônios, que conquistaram Jerusalém (2 Reis 25:1-7), destruíram o Tempo construído por Salomão (2 Reis 25:8-17) e levaram cativos o povo de Judá para a Babilônia (2 Reis 25:18-21). Nabucodonosor, rei da Babilônia, deixou um preposto, Gedaías, em Judá, para governar os judeus que não foram levados para a Babilônia, mas Gedaías foi assassinado e o povo de Judá que permanecia na Palestina fugiu para o Egito (2 Reis 25:22-26). Essa história do Cativeiro Babilônico é relatada ou mencionada em vários outros lugares na Bíblia. Oportunamente, a começar em 538 aC, os judeus do Sul começaram a voltar para a Judéia, onde reconstruíram o Templo, que durou cerca de seiscentos anos, até que foi destruído novamente, agora pelos Romanos, que, no ano 70 aD, já na nossa era, arrasaram Jerusalém, e, com a cidade, o Templo, expulsando os judeus para fora da Palestina – até, de certo modo, o século 19, quando começaram a voltar para a Palestina, em consequência do movimento sionista, para, no século 20, ganhar de novo uma pátria ali, que eu espero que eles defendam para nunca mais perder.]

o O o

Ao ler essa longa história lembrei-me de minha primeira infância. Para mim, quando era pequeno, a Bíblia era fonte de aprendizado e de entretenimento. Voltemos a ela. Ali há história, há narrativa, há poesia, há parábola (que é algo parecido com uma fábula), há provérbios, há cartas, há preceitos morais, religiosos, e de bom senso, há profetas dando sarrafadas morais e religiosas num povo meio relaxado, e há uma literatura meio fantástica como a do Apocalipse (à qual eu, confesso, nunca foi apegado)… A Bíblia é instrutiva, fonte de aprendizagem, e, para um menino, ansioso por descobrir o mundo através da literatura (visto que não tinha condições de sair de casa), divertido. Literalmente divertido.

E, além dessa série de gêneros literários que foi citada, há o livro de Eclesiastes. É meio difícil classificar Eclesiastes. Talvez a melhor classificação do livro é como “Filosofia de Vida”. É uma filosofia de vida meio instigante, que faz a gente pensar. Há momentos em que o autor soa meio cínico, um tanto pessimista, como quem está “desencantado da vida” (ou pelo menos da maior parte dela…). Há momentos em que ele parece ainda encontrar algum prazer em atividades simples, despretensiosas, como tomar vinho e curtir a mulher que a gente ama…

Só isso já mostra que o autor é homem. Se fosse mulher, falaria em tomar talvez um Campari com o homem amado…

Há quem conclua que Salomão foi o autor de Eclesiastes, com base em 1:1 e 1:12, especialmente. O livro tem um narrador que, depois de um curto versículo introdutório (1:1), passa a palavra àquele que seria o autor, propriamente dito, para retomá-la só ao final. O narrador diz que o autor é um “Sábio”, e que “era filho de Davi e Rei em Jerusalém” (1:1). Certamente o narrador pretende nos fazer crer que se trata de Salomão, o único filho de Davi que foi rei de Israel. Mas há vários indícios linguísticos e históricos de que o autor não foi Salomão. No versículo 1:12 o autor, diz: “Eu, o Sábio, fui rei de Israel, em Jerusalém”. Como “fui rei de Israel”, posto que Salomão morreu como rei!!! Nunca poderia ter dito “eu fui rei de Israel” porque nunca houve época em que ele, tendo sido, não tivesse sido mais. Se fosse verdade que o autor de Eclesiastes era Salomão, e Salomão o tivesse escrito em sua velhice, arrependido das besteiras que fez na mocidade e na adultice, apesar de sábio, mas, na realidade, “desencantado da vida” (como diz o Professor Paulo Vanzolini em “Ronda”), ele teria dito “eu sou rei de Israel”… Enfim, até a Bíblia de Estudo da Nova Tradução em Linguagem de Hoje admite que o livro não foi escrito por Salomão, tendo sido escrito entre 450 e 200 aC, ou seja, cerca de 500 anos ou mais depois da morte de Salomão (vide a Introdução ao livro de Eclesiastes, p.751 na minha edição).

Além disso, acrescento aqui minhas considerações. Se foi Salomão o autor de Cantares, é quase impossível crer que a mesma pessoa tivesse escrito também Eclesiastes… A visão de mundo, a filosofia de vida, e o estilo literário claramente não batem. Nem mesmo que se afirme, como pretendem alguns comentaristas conservadores, que Cantares revela o Salomão jovem, quase adolescente ainda, entusiasmado com os seios de suas amadas, e Eclesiastes o Salomão mais velho, mais cansado da vida, depois do desencantamento da vida que lhe proporcionaram algumas de suas mil mulheres… Nem todas, é verdade. O autor de Eclesiastes ainda revela que curte tomar uma taça de vinho na companhia da mulher que ele ama… Se é verdade o que diz a Bíblia, que ele teve mil mulheres (não sei se em paralelo ou em série), isso talvez fosse suficiente para deixar qualquer homem meio cínico e pessimista ao final da vida… Mas consideremos a questão da autoria resolvida (não foi Salomão) e deixêmo-la de lado.

o O o

Em um artigo em um blog meu, que virou postagem no Facebook, selecionei várias passagens de Eclesiastes às quais dei o nome de “Pérolas Esparsas”. Meu pai tinha um livro com esse título de que eu sempre gostei. Ao ler um livro não é preciso que a gente encontre “pérolas” a cada linha. Basta que encontre algumas, espargidas ao longo do texto. Transcrevo-as aqui, para servir de base para minha conclusão na seção seguinte.

“Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.

Há tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.

Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar e tempo de afastar.

Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.

Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.”

(Eclesiastes, 3:1-8)

“Procurei descobrir qual a melhor maneira de viver e então resolvi me alegrar com vinho e me divertir. Pensei que talvez fosse essa a melhor coisa que uma pessoa pode fazer durante a sua curta vida aqui na terra.” (Eclesiastes 2:3).

“Então eu me arrependi de ter trabalhado tanto e fiquei desesperado por causa disso. A gente trabalha com toda a sabedoria, conhecimento e inteligência para conseguir alguma coisa e depois tem de deixar tudo para alguém que não fez nada para merecer aquilo. Isso também é ilusão e não está certo!” (Eclesiastes 2:20-22).

“A melhor coisa que alguém pode fazer é comer e beber e se divertir com o dinheiro que ganhou. (…) Mesmo essas coisas vêm de Deus. Sem Deu, como teríamos o que comer ou com que nos divertir?” (Eclesiastes 2:24-25)

“Então entendi que nesta vida tudo o que a pessoa pode fazer é procurar ser feliz e viver o melhor que puder. Todos nós devemos comer e beber e aproveitar bem aquilo que ganhamos com o nosso trabalho. Isso é um presente de Deus.”  (Eclesiastes 3:12-13).

“Cheguei à conclusão de que Deus está pondo as pessoas à prova para que elas vejam que não são melhores do que os animais. No fim das contas, o mesmo que acontece com as pessoas acontece com os animais. Tanto as pessoas como os animais morrem. O ser humano não leva nenhuma vantagem sobre o animal, pois os dois têm de respirar para viver. Como se vê, tudo é ilusão, pois tanto um [o ser humano] como o outro [o animal] irão para o mesmo lugar, isto é, o pó da terra. Tanto um como o outro vieram de lá e voltarão para lá. Como é que alguém pode ter a certeza de que o sopro de vida do ser humano vai para cima e que o sopro de vida do animal desce para a terra? Assim, eu compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer no trabalho. Esta é a nossa recompensa. Pois como é que podemos saber o que vai acontecer depois da nossa morte?” (Eclesiastes 3:18-22)

“Também descobri por que as pessoas se esforçam tanto para ter sucesso no seu trabalho: é porque elas querem ser mais do que os outros. Mas tudo é ilusão. É tudo como correr atrás do vento. Dizem que só mesmo um louco chegaria ao ponto de cruzar os braços e passar fome até morrer. Pode ser. Mas é melhor ter pouco numa das mãos, com paz de espírito, do que estar com as duas mãos sempre cheias de trabalho, tentando pegar o vento.” (Eclesiastes 4:4-6)

“Descobri que na vida existe mais uma coisa que não vale a pena: é o homem viver sozinho, sem amigos, sem filhos, sem irmãos, sempre trabalhando e nunca satisfeito com a riqueza que tem. Para que é que ele trabalha tanto, deixando de aproveitar as coisas boas da vida? Isso também é ilusão, é uma triste maneira de viver. É melhor haver dois do que um, porque duas pessoas trabalhando juntas podem ganhar muito mais. Se uma delas cai, a outra a ajuda a se levantar. Mas se alguém está sozinho e cai, fica em má situação, porque não tem ninguém que o ajude a se levantar. Se faz frio, dois podem dormir juntos e se esquentar; mas um sozinho, como é que vai se esquentar?” (Eclesiastes 4:7-11)

“Tenha cuidado quando for ao Templo.  (…) Vá pronto para ouvir e obedecer a Deus. Pense bem antes de falar e não faça a Deus nenhuma promessa apressada. (…) Fale pouco. Quanto mais você se preocupar, mais pesadelos terá; e quanto mais você falar, mais tolices dirá. (…) É melhor não prometer nada do que fazer uma promessa e não cumprir.” (Eclesiastes 5:1-5).

“Então cheguei a esta conclusão: a melhor coisa que uma pessoa pode fazer durante a curta vida que Deus lhe deu é comer e beber e aproveitar bem o que ganhou com o seu trabalho. Essa é a parte que cabe a cada um.” (Eclesiastes 5:18.

“Se Deus der a você riquezas e propriedades e deixar que as aproveite, fique contente com o que recebeu e com o seu trabalho. Isso é um presente de Deus. E você não sentirá o tempo passar, pois Deus encherá o seu coração de alegria.” (Eclesiastes 5:19-20).

“Uma coisa é certa: quanto mais falamos, mais tolices dizemos; e não ganhamos nada com isso” (Eclesiastes 6:11).

“Quem só pensa em se divertir é tolo; quem é sábio pensa também na morte. . . . É melhor ir a uma casa onde há luto do que ir a uma casa onde há festa, pois onde há luto lembramos que um dia também vamos morrer. E os vivos nunca devem esquecer isso.” (Eclesiastes 7:4,2).

“Há pessoas boas que morrem, e há pessoas más que continuam a viver a sua vida errada. Por isso, não seja bom demais, nem sábio demais; por que você iria se destruir? Mas também não seja mau demais, nem tolo demais; por que você iria morrer antes do seu tempo? Por isso, evite tanto uma coisa como a outra.” (Eclesiastes 7:15-18)

“Não existe no mundo ninguém que faça sempre o que é direito e que nunca erre. . . . É melhor ouvir a repreensão de um sábio do que escutar elogios de um tolo.” (Eclesiastes 7:20, 5).

“Estou convencido de que devemos nos divertir porque o único prazer que temos nesta vida é comer, beber e nos divertir. Podemos fazer pelo menos isso enquanto trabalhamos durante a vida que Deus nos deu neste mundo.” (Eclesiastes 8:15).

“Ninguém sabe nada do que vai acontecer no futuro, mas isso não faz diferença. Pois a mesma coisa acontece com os honestos e os desonestos, os bons e os maus, os religiosos e os não religiosos, os que adoram a Deus e os que não adoram. A mesma coisa acontece com quem é bom e com quem é pecador. (…) A mesma coisa acontece com todos; e isso é o pior de tudo o que acontece neste mundo.” (Eclesiastes 9:1-3).

“Só os vivos têm esperança. É melhor ser um cachorro vivo do que um leão morto!” (Eclesiastes, 9:4; tradução A Bíblia Viva.)

“Enquanto você viver neste mundo de ilusões, aproveite a vida com a mulher que você ama. Pois isso é tudo que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que Deus lhe deu.” (Eclesiastes 9:9).

“Eu descobri mais outra coisa neste mundo: nem sempre são os corredores mais velozes que ganham as corridas; nem sempre são os soldados mais valentes que ganham as batalhas. Notei ainda que as pessoas mais sábias nem sempre têm o que comer e que as mais inteligentes nem sempre ficam ricas. Notei também que as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas posições. Tudo depende da sorte e da ocasião.” (Eclesiastes 9:11).

“Se alguém colocar moscas mortas num vídeo de perfume, ele acabará cheirando mal! Assim, um pequeno erro pode destruir muita sabedoria e honra.” (Eclesiastes, 10:1; tradução A Bíblia Viva).

“As festas ajudam a gente a se divertir, e o vinho ajuda a gente a se alegrar; mas sem dinheiro não se pode ter nem uma coisa nem outra. Não critique o governo nem mesmo em pensamento e não critique o homem rico nem mesmo dentro do seu próprio quarto, pois um passarinho poderia ir contar a eles o que você disse.” (Eclesiastes 10:19-20).

“Quem fica esperando que o tempo mude e que o tempo fique bom, nunca plantará, nem colherá nada.” (Eclesiastes 11:4).

“Se você esperar que tudo fique normal, jamais fará qualquer coisa.” (Eclesiastes 11:4; tradução A Bíblia Viva.)

“É maravilhoso viver! Ver a luz, o sol! Se uma pessoa chegar à velhice, deve se alegrar em todos os dias de sua vida. Mas se deve lembrar também que a eternidade é muito mais comprida; quando se compara a vida com a eternidade, o que fazemos aqui não vale nada!” (Eclesiastes, 11:7-8; tradução A Bíblia Viva.)

[Exceto onde indicado (quatro citações), no restante foi usada a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), que, de resto, foi usada na primeira parte do texto também. As quatro exceções foram tiradas da tradução A Bíblia Viva (ABV), que é uma tradução quase parafraseada que vale a pena conferir. Exceto no caso da primeira citação, o restante vem na ordem dos capítulos do livro, embora, dentro dos capítulos, eu tenha feito uma ou outra inversão na ordem dos versículos, devidamente assinalada na referência.]

o O o

Que lições podemos tirar dessas passagens citadas (e várias outras que poderiam ter sido acrescentadas?

Várias. Talvez inúmeras.

Mas, primeiro, vou me referir a uma conclusão (só uma) que é relevante para a Teologia – judaica e cristã, mas principalmente para esta. As demais são relevantes para a Vida – inclusive a nossa vida, hic et nunc, aqui e agora.

A conclusão relevante para a Teologia se revela no fato de que Eclesiastes tem sido chamado de um livro que não se encaixa no contexto dos demais livros da Bíblia – tanto da Bíblia Judaica como da Bíblia Cristã. O termo que se lhe aplica é “misfit”: Eclesiastes é um livro desajustado na Bíblia: ele não se encaixa. (Há um filme com Clark Gable, Montgomery Clift e Marylin Monroe que se chama “The Misfits”: Os Desajustados.) Os três, no filme, se mostram pessoas desajustados à vida. Eclesiastes se mostra desajustado em relação à maior parte do restante da Bíblia.

Vejamos apenas alguns exemplos, depois de um parágrafo introdutório.

Para mim a Bíblia foi, em um primeiro momento, cartilha: aprendi a ler nela, por volta de 1948, quando tinha cerca de cinco anos. Meu pai era pastor. Naquela época ele pastoreava um campo pioneiro no Norte do Paraná. Mudamos de Marialva para Maringá na época que esta cidade foi emancipada, 1947. Parecia o Oeste Americano. Havia tiroteios na rua com frequência. Era arriscado brincar fora de casa, até mesmo no quintal da casa que ficava anexa à parte de trás do Salão de Cultos. O jeito era brincar dentro de casa. Meu irmão, Flávio, ainda era muito pequeno: tinha apenas dois anos. Então a saída era inventar coisas para fazer. Aprender a ler foi uma delas. Meu pai lia bastante e minha mãe também. O exemplo surtiu efeito. Comecei tentando ler passagens que eu conhecia bem e, com um pouco de ajuda do pai e da mãe, logo estava lendo qualquer coisa – os Salmos, os Evangelhos e os livros históricos do Velho Testamento. Da Bíblia passei a ler os romances policiais sobre Perry Mason que minha devorava… Se a gente pensar bem, o Velho Testamento de Samuel, Reis e Crônicas tem quase tanto assassinato como os livros de Erle Stanley Gardner…

• Eclesiastes 3:18-20 argumenta que não há grande diferença entre os homens e os animais. Ambos vieram da terra e para ela eles retornam. Ambos nascem, vivem e morrem. Quando morrem, voltam para a terra, de onde vieram, e ponto final. É uma ilusão “ter a certeza de que o sopro de vida do ser humano vai para cima e que o sopro de vida do animal desce para a terra”. Esse é o nosso fim: a terra em que somos, e ficamos, enterrados. Se é possível que algo diferente disso possa nos acontecer, não há como seja possível saber. Em outras palavras: vida após a morte, seja através da ressurreição dos mortos, seja por causa da imortalidade da alma, tudo isso é ilusão. Embora houvesse judeus (os saduceus) que não acreditavam na ressureição dos mortos, os cristão sempre aceitaram. E alguns aceitam a imortalidade da alma também.

• Eclesiastes 7:15-18 comenta e recomenda: “Há pessoas boas que morrem, e há pessoas más que continuam a viver a sua vida errada. Por isso, não seja bom demais, nem sábio demais; por que você iria se destruir? Mas também não seja mau demais, nem tolo demais; por que você iria morrer antes do seu tempo? Por isso, evite tanto uma coisa como a outra.” O comentário não se disputa. Mas e a recomendação? O que fazer com o “Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai de vocês que está nos céus”, de Mateus 5:48, palavras atribuídas a Jesus, e que, portanto, vêm em cor diferente em algumas Bíblias? É verdade que há pastor por aí, como o meu amigo no Facebook, Rev. Elienai Cabral Júnior, que afirma que Jesus, tendo sido perfeito, nos salvou, com sua morte, até mesmo da necessidade de ser perfeitos, ou, talvez, até mesmo da exigência de perseguir a perfeição. Ele tem até um livro com o título Salvos da Perfeição. Mas tem muito cristão por aí que não concorda com o Elienai, e que não só continua buscando a perfeição como, até, muitas vezes, acha que já a alcançou… É verdade também que Jesus, como Eclesiastes, de vez em quando desequilibra… Lembram-se da Parábola do Fariseu e o Publicano? O fariseu se julgava o bom. Se não perfeito, chegando lá. Dava graças a Deus por não ser como os demais homens. O publicano, pobre coitado, apenas pedia a Deus que tivesse misericórdia dele, pecador. E o publicano, diz a parábola, foi para sua casa justificado, foi tornado, ou considerado, justo.

• Em várias passagens, algumas das quais citarei a seguir, o autor de Eclesiastes chega perto de dizer que a vida é tão injusta, em tantos aspectos, que é difícil de acreditar que Deus, que a dá, que arbitra sua duração, e que, chegada a hora, a tira, seja justo – pelo menos segundo os nossos critérios de justiça.

Basta… Vamos ver se achamos algumas “Lições de Vida” em Eclesiastes que sirvam para nós, aqui neste mundo (pois que do mundo futuro não é possível saber nada, agora). Como, aparentemente, acreditava o autor de Eclesiastes, essas Lições de Vida serviam para o seu tempo, tanto que ele se preocupou em transmitir sua mensagem.

o O o

A primeira grande Lição de Vida é a de que muito pouco da nossa vida está sob nosso controle. Nós não escolhemos quando, onde, e de quem vamos nascer, nem que características (físicas, mentais, emocionais, etc.) teremos. Tudo parece ser regido pelos princípios da “sorte” (e do azar) – vide a passagem de Eclesiastes 9:11, citada atrás. Um tem sorte, e nasce um Salomão, “com o busanfã virado pra Lua”, como diz o grande teólogo popular Faustão. Ganha sabedoria, conhecimento, entendimento, riqueza, poder, honra, fama, mulheres… Outro nasce sem condições de sobreviver: desnutrido, doente, pobre, sem quase nenhuma possibilidade de dar certo na vida e vir a adquirir ainda que seja uma pequena parcela daquilo que Salomão teve. Isso é justo?

Mas a injustiça da coisa vai além. Às vezes, por mais difícil que seja, o que nasceu doente e pobre luta, batalha, melhora na vida, consegue alguma coisa, talvez até consiga acumular alguma riqueza, e tudo sem roubar ou fraudar, e, quando está pronto para desfrutar o que, com muito esforço, alcançou, morre em decorrência de uma doença repentina e incurável, ou em um acidente de carro, ou, fruto da maldade alheia, em um roubo seguido de assassinato… Isto é justo? Além de ser injusto, parece quase sádico! Por que não deixar o cara morrer enquanto era pequeno? O autor de Eclesiastes chega a sugerir (6:3) que “uma criança que nasce morta tem mais sorte do que ele”. [Ou, talvez, que é deliberadamente morta antes de nascer, havendo aqui uma defesa implícita do aborto?]

Assim, uma primeira grande Lição de Vida é que a vida, qualquer que tenha sido a razão pela qual foi criada, não é justa. Fim de papo. E não adianta tentar torná-la mais justa com políticas públicas e coisas assemelhadas. O cara recebe um terreno de graça no assentamento ou uma casinha do “Minha Casa, Minha Vida” e vende ou aluga, arruma um jeito de fraudar o esquema. Os que estão administrando o sistema, roubam, corrompem, ficam ainda mais ricos do que já eram. O autor de Eclesiastes é realista (não cínico como o chamam alguns) porque é genuinamente pessimista. Parece Agostinho, que, acreditando que a justiça só vai imperar na Cidade de Deus (na vida futura), não tinha ilusão nenhuma sobre a Cidade dos Homens: sobre ela, seus governantes e seus súditos, era tão realisticamente pessimista quanto veio a ser Maquiavel, cerca de mil anos depois. O autor de Eclesiastes é mais ou menos um precursor dos dois.

Uma segunda lição. O autor de Eclesiastes não é, como Agostinho, ou alguns seguidores de Calvino, alguém que acredita que a natureza humana é totalmente corrompida, que nada de bom sobra nela. Ele acredita que temos, ou alguns de nós têm, algo de bom, um resquício de livre arbítrio, que nos torna capazes de fazer escolhas, tomar decisões, agir, de preferir sabedoria a fama e riquezas… Mas ele sabe que nunca seremos capazes de garantir que nossas ações surtirão sempre os efeitos desejados, porque a gente não controla as ações dos outros e, além do mais, há fatores imprevisíveis e imponderáveis (aquilo que geralmente chamamos de sorte e azar – ou que a teologia chama de divina providência, cujos decretos são admitidamente insondáveis e inescrutáveis)… Por isso, ele concordaria com quem disse que quando revelamos a Deus os nossos planos, Deus dá risada deles… Inocente, conclui Deus: mal sabe ele que vai morrer a semana que vem… Você sabe o que quer, se mata de trabalhar para alcançar o que quer, e, quando alcança o que sempre esperou, tem um infarto e morre… A segunda Lição de Vida que o autor de Eclesiastes nos deixa é que devemos sempre viver como se o dia de hoje fosse o nosso último – e não pudéssemos ter certeza de que a nossa vida vai continuar em um outro plano.

Diante disse, a terceira grande Lição de Vida é aprender a fruir ou desfrutar as coisas simples da vida — e ser gratos por elas. O autor de Eclesiastes afirma que trabalhar pode ser um prazer que enriquece a vida – se não estivermos tentando ficar ricos, poderosos, famosos – coisas que tornam nossa vida geralmente um inferno. Quais as outras coisas: divertir-se, comer e beber (sempre vinho), curtir a pessoa amada, viver em companhia de pessoas que acrescentam qualidade à nossa vida… E nunca nos preocupar demais com o futuro… Devemos, diz ele, fazer o que é possível para combater injustiças e tornar nossa vida melhor, ma no troppo, sem exageros e fanatismos, sem fazer disso uma religião. Ele é contra todo tipo de fundamentalismo, contra o excesso de rigor, contra os que não admitem pequenas falhas de caráter ou conduta… Não devemos ser sábios nem bons demais (nem maus demais, naturalmente). Devemos, isto sim, procurar fazer o que é certo, mas sem nos preocupar demais com nossos erros, nem com os dos outros (Vide 7:20, citado atrás: “Não existe no mundo ninguém que faça sempre o que é direito e que nunca erre”): por isso é preciso se compreensivo e tolerante, com nós mesmos e com os outros.

A quarta grande Lição de Vida é de que há tempo para tudo. Mas essa lição não devemos levar muito a sério. Às vezes o tempo nos falta, porque nós é tirado e nós morremos, por vezes cedo demais. Em regra, o melhor tempo para fazer as coisas, assinala o autor de Eclesiastes, é a mocidade, “antes que venham os dias maus e cheguem os anos em que você dirá ‘Não tenho mais prazer na vida’” (12:1). Mas quem chega a esses dias e anos deve se sentir feliz, porque a alternativa é morrer cedo e nem ter tempo de fazer nada, ou grande coisa. Por isso, o autor afirma: “É maravilhoso viver! Ver a luz, o Sol! Se uma pessoa chegar à velhice, deve se alegrar em todos os dias de sua vida.” (11:7). Esta é a atitude correta, e não dizer “Não tenho mais prazer na vida”, porque estou velho, doente, etc. Mesmo na velhice é possível comer comida gostosa, beber vinho, e curtir a vida junto de quem se ama. O fim pode chegar a qualquer momento – mas para muitos o fim chegou quando eles eram muito jovens e não tiveram nenhum dos prazeres que a gente que é velho já teve e pode ainda ter…

“Quem fica esperando que o tempo mude e que o tempo fique bom, nunca plantará, nem colherá nada.” (Eclesiastes 11:4; NTLH).

“Se você esperar que tudo fique normal, jamais fará qualquer coisa.” (Eclesiastes 11:4; tradução A Bíblia Viva).

“Quem só pensa em se divertir é tolo; quem é sábio pensa também na morte. . . . É melhor ir a uma casa onde há luto do que ir a uma casa onde há festa, pois onde há luto lembramos que um dia também vamos morrer. E os vivos nunca devem esquecer isso.” (Eclesiastes 7:4,2; NTLH).

o O o

“O que é que esse livro está fazendo na Bíblia?”, perguntou um escritor ortodoxo e conservador. Eclesiastes pode parecer um desajustado dentro da Bíblia, o menos canônico dos livros canonizados. Mas ele tem maravilhosas Lições de Vida – possivelmente por ser diferente. Talvez essas lições não sejam muito teológica ou politicamente corretas, mas são, na minha forma de ver o mundo e a vida, maravilhosas. Não deixe de ler o Eclesiastes e de refletir com calma sobre suas lições. Quem sabe todo dia um pouquinho…

Em Salto, 21 de Março de 2017

Texto escrito com vistas a uma palestra que darei, em 25/3/2017, para o Ministério “Amigos no Caminho”, da Catedral Evangélica de São Paulo (a Primeira Igreja Presbiteriana de São Paulo), destinado a solteiros, viúvos, divorciados, e outros tipos de não casados ou descasados…

Há Futuro para um Ecumenismo Cristão? Reflexões sobre o que nos Separa

Eduardo Chaves

1. Introdução

Sei que vou mexer em vespeiro e, possivelmente, atrair para mim a ira de boa parte dos cristãos. Mas vou fazer isso, não para puxar briga e criar dissensão, mas para concitar meus amigos que, como eu, se consideram cristãos, a refletir um pouco sobre a nossa desunião crônica e sobre nossa tendência inelutável (no caso Evangélico) à separação.

Quando falo sobre “Ecumenismo”, no título, tenho em mente, como deixo claro, “Ecumenismo Cristão”, isto é a convivência pacífica e cordial entre aqueles que se consideram cristãos. Deveria ser mais fácil, mas não é. Mas que fique claro que não estou cogitando de um Ecumenismo que inclua os Judeus, os Muçulmanos, os Hindus, os Budistas, os seguidores de Religiões Africanas, etc. Incluo apenas aqueles que, em algum sentido relevante do termo, se consideram cristãos. Isso significa que incluo os Católicos e os Ortodoxos Orientais. Acho desnecessário frisar que incluo Pentecostais de todo naipe, Adventistas, Testemunhas de Jeová, Mórmons e até os “Moonies” (membros da Igreja da Unificação do Rev. Sun Myung Moon).

Sei que o termo “relevante”, na parágrafo anterior, é complicado e pode já gerar alguma discussão e controvérsia. Mas meu objetivo, neste artigo, não é criar mais conflito e desunião. Pelo contrário. É achar um “minimum minimorum”, como dizia meu pai, que nos permita, nem digo viver no amor cristão, mas simplesmente viver em paz e cordialidade.

Os dois termos, “paz” e “cordialidade”, são importantes. Viver em paz não basta, não é suficiente. Eu posso viver em paz com um primo meu que eu nunca vejo, e com quem não converso, há mais de cinquenta anos. O termo “cordialidade” é apto, pois enfatiza mais do que a paz decorrente da distância e da ausência de contato, apontando para a necessidade de uma convivência ativa e agradável – algo que pelo menos chegue perto de comunhão..

 Para quem não me conhece, sou presbiteriano de nascimento. Meu pai era pastor, eu nasci em casa, e a igreja de que meu pai era pastor funcionava em anexo. Sou, por formação, Historiador do Cristianismo (das Igrejas que se denominam Cristãs) e do Pensamento Cristão. Fiz curso de Teologia na Graduação, curso de História da Igreja, no Mestrado, e curso de História da Filosofia, no Doutorado. Faz mais de sessenta anos que esse assunto me fascina (desde o início dos anos sessenta). Meu Doutorado (em Filosofia, mas com tese sobre o Pensamento Cristão) foi concluído e defendido em Agosto de 1972, na University of Pittsburgh. Faz mais de cinquenta anos. O título de minha tese foi: David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought. O tema foi a revolução que o Iluminismo (exemplificado por Hume) produziu na História do Pensamento Cristão, fazendo que surgisse o Liberalismo do Século 19.  

Não por desejo nem por escolha minha, só vim a exercer função profissional nessa área em Julho de 2014, fazendo-o por apenas três anos, até Junho de 2017 – e, neste caso, a saída foi a despeito de minha vontade de continuar. Ou seja, só vim a exercer a função para a qual me preparei academicamente durante a vida toda apenas depois de completar setenta anos – quando a maioria das pessoas já está aposentada. (Eu também já estava, como professor de Filosofia na UNICAMP). Mas isso não se deu por desejo e por escolha minha, repito.

Ao longo desses mais de cinquenta anos, passei cerca de quarenta anos fora da igreja – totalmente desigrejado. Isso se deu desde 1970, quando decidi que não havia futuro para mim na igreja como pastor ou professor de teologia, até 2010, quando me tornei membro da Catedral Evangélica de São Paulo (Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo). Fiquei membro da Catedral durante basicamente dez anos e meio, pedindo o meu desligamento em Março de 2021, durante a Pandemia do COVID. Desde então, não sou membro de nenhuma igreja – embora frequente, com regularidade, e grande satisfação, faço questão de esclarecer, a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, onde resido. Sinto-me em casa na igreja, mesmo não sendo membro dela.

Conheço várias pessoas que se dizem cristãs (até, na minha opinião, cristãs bastante conservadoras), mas que afirmam ser severas críticas da igreja. O primeiro livro que ganhei (de minha mulher), no final de minha fase de “desigrejado”, foi Alma Sobrevivente, de Philip Yancey, que tem por subtítulo a seguinte qualificação: Sou Cristão, Apesar da Igreja.

2. Como Eu Vejo a Questão

Eu vejo as coisas de um ângulo um pouco diferente. Acho esquisito o subtítulo do livro de Yancey. Para mim, ser parte de uma igreja é parte essencial de ser cristão. Consigo entender um desigrejado, mas não um cristão desigrejado. Tanto que, durante os quarenta anos que fiquei desigrejado, não me considerei cristão. Considerava-me, então, cético, agnóstico, até mesmo ateu. Durante os dez anos e meio em que fui membro da Catedral, eu evidentemente voltei a me considerar cristão. E, nesta segunda fase, frequentando a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, continuo a me considerar cristão, apesar de, oficialmente, não ser membro da igreja. (As igrejas têm alguma dificuldade para me rotular. Não seria correto me considerar um interessado. Seria eu apenas um visitante? Mas o visitante, no caso, é regular, comparece à igreja todos os domingos, participa da célula que se reúne no meio da semana… Que rótulo aplicar a ele? Como classifica-lo).

Em tese, eu gosto da Igreja, enquanto comunidade de pessoas que se consideram irmanadas por alguma coisa, por algum ideal – no caso de igreja, um ideal religioso. O que me atrapalha é a questão da doutrina – e da crença (ou fé) nessa doutrina que se exige dos membros (que precisam confessar a sua fé de público). Os que regularmente frequentam uma igreja cristã em geral se consideram “irmãos na fé”. Para se tornar membro de uma igreja cristã não basta, normalmente, querer ser membro: é preciso também crer ou acreditar em algumas doutrinas consideradas essenciais. No caso das Igrejas Presbiterianas em geral o essencial é toda a Confissão de Fé de Westminster, mais os Catecismos, a Ordem do Culto, o Código de Disciplina. Um essencial bem gordo. O número e a precisão das doutrinas que outras igrejas cristãs exigem varia, podendo ir desde “Você acredita em Deus e aceita Jesus Cristo como seu salvador?” até formulações bem mais detalhadas e cada vez mais complicadas de aceitar para algumas pessoas como eu.

O Novo Testamento diz, em Mateus 18:8-9:

“8. Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno.

⁹ E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.”

Marcos 9:43-48, que a maioria dos entendidos em Novo Testamento avaliam como mais antigo do que Mateus, e consideram uma fonte usada por este, afirma basicamente a mesma coisa (acrescentando três vezes uma frase cuja primeira parte é de complicado entendimento, na primeira tradução que estou usando):

“⁴³ E, se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga,

⁴⁴ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.

⁴⁵ E, se o teu pé te escandalizar, corta-o; melhor é para ti entrares coxo na vida do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno, no fogo que nunca se apaga,

⁴⁶ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.

⁴⁷ E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno,

⁴⁸ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.”

Para ninguém me criticar, estou citando, em ambos os casos, pela Almeida Corrigida e Fiel (ACF), e, confesso, não tenho a menor ideia do que a primeira parte da afirmação repetida nos versículos 44, 46 e 48 de Marcos quer dizer (“onde o seu bicho não morre”). Mas, para mim, esse trecho não faz muita diferença. Ser lançado no fogo do inferno só já basta para me deixar apavorado  – até porque é um foto eterno, nunca se apaga.

A Nova Tradução para Linguagem de Hoje (NTLH), de que muito crente tradicional e conservador não gosta, traduz os versículos de Mateus assim, deixando-o mais fácil de entender (como se espera):

“⁸ Se uma das suas mãos ou um dos seus pés faz com que você peque, corte-o e jogue fora! 

⁹ Se um dos seus olhos faz com que você peque, arranque-o e jogue fora! Pois é melhor você entrar na vida eterna com um olho só do que ter os dois e ser jogado no fogo do inferno.”

A NTLH traduz o texto de Marcos de forma coerente. Ela traduz a frase que eu achei de difícil entendimento em Mateus como: “Ali os vermes que devoram não morrem”. Como a vida humana no inferno também é eterna, nunca acabará, nem os seres humanos condenados, nem os vermes que tentarão nos devorar, terão fim. Penas eternas.

Segundo entendo, o que o Novo Testamento quer dizer é, basicamente, o seguinte (transportando para a primeira pessoa): se minha mão, ou meu pé, ou o meu olho me fizer pecar, ou escandalizar alguém, devo-o cortá-lo (ou removê-lo, no caso do olho) e jogá-lo fora, se eu quero escapar do Inferno.

O meu problema, para ser sincero, é o seguinte: e se minha cabeça (o meu cérebro) me fizer pecar, ou escandalizar alguém, devo eu cortar minha cabeça e jogá-la fora (supondo que minha mente esteja ligada de alguma forma ao meu cérebro e o cérebro esteja dentro da cabeça)?

MAS, se eu cortar minha cabeça, eu morro (na verdade, estarei me suicidando, o que não sei se a Bíblia recomendaria). Na verdade, se eu cortar a minha cabeça, não vou conseguir sequer jogá-la fora – alguém terá de fazer isso por mim. A questão mais séria, porém, é esta: será que eu evito o Inferno e entro no Céu sem cabeça? Ou será que eu ganho uma cabeça nova (com cérebro novo, com mente nova) nos portais do Reino de Deus? Mas, se eu tiver uma nova cabeça com um cérebro novo e uma mente nova, serei eu mesmo que entrarei no Céu ou será uma réplica parcial de mim? Como é que eu preservo a minha identidade de ser humano se minha cabeça, meu cérebro e minha mente forem trocados? Ou será que, por ter pecado com a cabeça (incluindo o cérebro e a mente), eu não tenho remédio e vou para o Inferno sem cabeça – mas, nesta hipótese, eu, por ter cortado voluntariamente minha cabeça, ficarei em desvantagem no Inferno em relação aos que não fizeram esse gesto heróico de cortar a própria cabeça…  Complicada a coisa, não é? Eu acho – e olhem que já li e pensei muito sobre essas coisas.

Eu sei que, a essas alturas, haverá muita gente que vai dizer que estou brincando com coisa séria. Concordo que a coisa é séria, mas discordo de que esteja brincando. Poucas vezes falei tão sério em minha vida.

3. O Problema, em Última Instância, é a Natureza da Bíblia

Antes de fornecer a minha solução, eu vou apresentar o meu diagnóstico. O problema, em última instância, é a questão da doutrina, que, no entanto, em última instância, depende da Bíblia — ou, melhor dizendo, depende de como entendemos a natureza da Bíblia.

A alternativa é:

OU a Bíblia é a Palavra de Deus, inspirada (ou, segundo alguns, virtualmente ditada) por ele para uma série de pessoas, tendo Deus garantido que ela, a Bíblia, tanto no Velho como no Novo Testamento, nos autógrafos originais, em Hebraico e em Grego, nas cópias subsequentes, e nas traduções para outras línguas, ao longo de quase três mil anos, é inerrante e infalível, em relação a qualquer questão, espiritual, moral, histórica, científica, e do dia-a-dia;

OU a Bíblia é um livro notável, de leitura altamente útil e, por vezes, agradável, que pode nos ajudar a ver o mundo de uma maneira importante e nele viver, tanto quanto possível, de modo correto, mas um livro humano, que, como tudo que é humano, contém erros e falhas, em relação a todas as questões que ela aborda (espirituais, morais, históricas, científicas, e do dia-a-dia).

É isso ou é isso. Pode-se tentar ficar tucanamente entre as duas alternativas, mas a posição é precária e a gente acaba caindo de um lado ou do outro.

O texto citado acima, na sua versão de Mateus e de Marcos, não só consta da Bíblia (no caso, do Novo Testamento) mas é atribuído a ninguém menos do que Jesus de Nazaré. O próprio.

Se o texto da Bíblia, em seu sentido literal (quando isso faz sentido), em qualquer das duas traduções, a fiel e a supostamente infiel, for total e absolutamente verdadeiro, não sobra um, meu irmão, porque a própria Bíblia diz que todos pecamos e destituídos fomos da Glória de Deus (Romanos 3:23) – e, se alguém, porventura, escapar da destituição, vai entrar na Glória sem mão, ou sem pé, ou sem olho, ou, pior, sem cabeça.

[UM PARÊNTESE. Eu sei, caros leitores, o que vem nos versículos seguintes de Romanos, como também sei que os cristãos não liberais, mas cultos e abertos, do dia de hoje, oferecem explicações mirabolantes para continuar a acreditar e afirmar que a Bíblia é literalmente a Palavra de Deus, mesmo sem ser inerrante e infalível em suas versões atuais, traduzidas para as línguas modernas, entre as quais a nossa. Sei que muitos acreditam — sem a menor evidência, registre-se — que os autógrafos, isto é, os originais, estariam sem erros e falhas, estes tendo sido introduzidos apenas por copistas e tradutores descuidados ou mal intencionados… Sei de tudo isso tão bem quanto qualquer um. Mas também sei que há um número enorme de pessoas, que poderiam estar incluídas no universo cristão, que se recusam a aceitar essas explicações mirabolantes. Sei também, por experiência, estudo e reflexão, que qualquer afirmação, por mais incoerente, inconsistente, autocontraditória e absurda que seja, sempre encontrará um intelecto brilhante disposto a aceitá-la, a acreditar nela, e a se dispor a convencer os outros de sua verdade. Estou cansado de saber tudo isso. Se vocês quiserem deixar de ler agora (se ainda não o fizeram), eu compreendo e lhes desejo um bom dia.]

Vou continuar ainda um pouco nesta mesma linha.

Há, na Bíblia, até mesmo no Novo Testamento, uma série de injunções (ordens, mandamentos, determinações, conselhos) que os cristãos, em sua maioria, mesmo os conservadores, e até mesmo os fundamentalistas, deixaram de aceitar nos dias atuais.

Paulo diz, em mais de um lugar, que as mulheres devem ficar caladas na igreja. Eis o que ele diz em 1 Coríntios 14:

33b Como em todas as igrejas do povo de Deus,

34 as mulheres devem ficar caladas nas reuniões de adoração. Elas não têm permissão para falar. Como diz a Lei, elas não devem ter cargos de direção.

35 Se quiserem saber alguma coisa, que perguntem em casa ao marido. É vergonhoso que uma mulher fale nas reuniões da igreja.

A passagem é clara é dispensa maiores comentários. Por mais que se tente, não dá para encontrar uma interpretação mirabolante que elimine o choque de alguém que lê esse trecho pela primeira vez no século 21. Especialmente se esse alguém for uma mulher jovem. Falo de cátedra. Tenho quatro filhas mulheres com idades entre 24 e 50 anos. E todas elas adoram falar.

Há muitas igrejas cristãs que, hoje em dia, simplesmente ignoram essa passagem, fazem de conta que ela não está na Bíblia. O pastor não prega sobre ela e a Escola Dominical / Sabatina não se aventura a por a questão em discussão.

Há igrejas cristãs, hoje em dia, que (felizmente) não fazem nenhuma distinção entre homem e mulher quando se trata de ocupar os principais ofícios da igreja: ensinar, pregar, oficiar os sacramentos, administrar a igreja. Há mulheres diaconisas, presbíteras, pastoras, bispas, apóstolas. Tudo exatamente o oposto do que Paulo determinou. O pessoal dessas igrejas vai todo para o Inferno?

A Bíblia inteira sugere que o homem é superior à mulher, sem qualificação, no mínimo porque teria sido criado primeiro, e ela teria sido criada a partir da costela dele. Isto já seria suficiente para que ele exerça a autoridade, como cabeça do casal, no lar, e que exerça as posições de liderança, fora do lar, no trabalho, e, naturalmente, na igreja. Embora haja mulheres que possuam papel importante no Cristianismo Primitivo, nenhuma foi chamada de discípula, apóstola, nem mesmo de bispa, pastora, presbítera e diaconisa.

Eis o que diz Paulo (ou seja quem for o autor de Efésios), no capítulo 5:

22 Esposa, obedeça ao seu marido, como você obedece ao Senhor.

23 Pois o marido tem autoridade sobre a esposa, assim como Cristo tem autoridade sobre a Igreja. E o próprio Cristo é o Salvador da Igreja, que é o seu corpo.

24 Portanto, assim como a Igreja é obediente a Cristo, assim também a esposa deve obedecer em tudo a o seu marido.” [Ênfase acrescentada.]

Eis o que Paulo (ou seja quem for que escreveu a carta) diz em 1 Timóteo 2:

11 As mulheres devem aprender em silêncio e com toda a humildade.

12 Não permito [sic!] que as mulheres ensinem ou tenham autoridade sobre os homens; elas devem ficar em silêncio. [Ênfase acrescentada.]

13 Pois Adão foi criado primeiro, e depois Eva.

14 E não foi Adão quem foi enganado; a mulher é que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus.”

(Aqui, o autor chega a afirmar que foi só a mulher que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus…)

[Veja-se, a propósito do constante nas duas passagens, o artigo publicado pelo Seminário JMC, uma instituição da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), na Web: https://www.seminariojmc.br/index.php/2018/02/21/as-mulheres-podem-ensinar-na-igreja/. Isso, em pleno século 21. Os barbados não têm vergonha de escrever isso porque, na opinião deles, foi Deus quem determinou que assim fosse.]

No Novo Testamento afirma-se que o divórcio é tolerável no caso de traição mas nega-se que o cônjuge não culpado possa se casar de novo e viver uma vida normal na igreja (a menos que o cônjuge culpado, ou que tomou a iniciativa no divórcio, seja não-cristão!). O Novo Testamento não vê com bons olhos o casamento de uma pessoa cristã com uma pessoa não cristã (aquilo que se chama de “jugo desigual”).

Na verdade, os principais personagens do Novo Testamento, Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso, eram solteiros. E tinham uma certa preferência pela solteirice – até porque os dois imaginavam que o mundo ia acabar ainda no tempo deles…

Eis o que diz Paulo em 1 Coríntios 7:

8 Aos solteiros e às viúvas eu digo que seria melhor para eles ficarem sem casar, como eu.

9 Mas, se vocês não podem dominar o desejo sexual, então casem, pois é melhor casar do que ficar queimando de desejo.

10 Para os que já estão casados tenho um mandamento, que não é meu, mas do Senhor: que a mulher não se separe do seu marido.

11 Porém, se ela se separar, que não case de novo ou então que faça as pazes com o marido. E que o homem não se divorcie da sua esposa.

12 Aos outros digo eu mesmo, e não o Senhor: se um homem cristão é casado com uma mulher que não é cristã, e ela concorda em continuar vivendo com ele, que ele não se divorcie dela.

13 E, se uma mulher cristã é casada com um homem que não é cristão, e ele concorda em continuar vivendo com ela, que ela não se divorcie dele.

14 Pois Deus aceita o homem que não é cristão por ele estar unido com a sua esposa cristã; e aceita a mulher que não é cristã por ela estar unida com o seu marido cristão. Se não fosse assim, os filhos deles não pertenceriam a Deus. Mas, sendo assim, eles pertencem.

15 Porém, se o marido não cristão ou a esposa não cristã quiser [sic] o divórcio, então que se divorcie. Nesses casos o marido cristão ou a esposa cristã está livre para fazer como quiser, pois Deus chamou vocês para viverem em paz.”

Além disso, o Novo Testamento afirma que, na hora das relações sexuais, a mulher, como em tudo, deve obedecer o marido. Na verdade, também afirma que o homem não deve negar seu corpo à sua mulher, se ela porventura o desejar. Mas é só em relação à mulher, como vimos, que o Novo Testamento afirma que ela deve obedecer ao seu parceiro…).

Eis o que Paulo afirma, ainda em 1 Coríntios 7:

1b Vocês dizem que o homem faz bem em não casar.

2 Mas eu digo: já que existe tanta imoralidade sexual, cada homem deve ter a sua própria esposa, e cada mulher, o seu próprio marido.

3 O homem deve cumprir o seu dever como marido, e a mulher também deve cumprir o seu dever como esposa.

4 A esposa não manda no seu próprio corpo; quem manda é o seu marido. Assim também o marido não manda no seu próprio corpo; quem manda é a sua esposa.

5 Que os dois não se neguem um ao outro, a não ser que concordem em não ter relações por algum tempo a fim de se dedicar à oração. Mas depois devem voltar a ter relações, a fim de não caírem nas tentações de Satanás por não poderem se dominar. ”

Se a mulher não pode se negar ao marido, e apenas ela tem a obrigação de obedecer ao cônjuge (ele não), há uma disparidade de direitos e deveres no relacionamento conjugal.

No Novo Testamento há uma digressão curiosa (e até certo ponto esquisita para as pessoas do século 21) sobre o uso de véu pelas mulheres na igreja. Eis o que diz Paulo em 1 Coríntios 11 (a passagem é meio longa):

3 Mas quero que entendam que Cristo tem autoridade sobre todo marido, que o marido tem autoridade sobre a esposa e que Deus tem autoridade sobre Cristo.

4 Se um homem cobre a cabeça quando ora ou anuncia a mensagem de Deus nas reuniões de adoração, ele está ofendendo a honra de Cristo [!!!].

5 E, se uma mulher não cobre a cabeça quando ora ou anuncia a mensagem de Deus nas reuniões de adoração, ela está ofendendo a honra do seu marido [!!!]. Nesse caso, não há nenhuma diferença entre ela e a mulher que tem a cabeça rapada.

6 Se a mulher não cobre a cabeça, então é melhor que ela corte o cabelo de uma vez. Já que é vergonhoso para a mulher rapar a cabeça ou cortar o cabelo, então ela deve cobrir a cabeça.

7 O homem não precisa cobrir a cabeça, pois ele reflete a imagem e a glória de Deus. Mas a mulher reflete a glória do homem, [!!!]

8 pois o homem não foi feito da mulher, mas a mulher foi feita do homem [Ênfase acrescentada].

9 O homem não foi criado por causa da mulher, mas sim a mulher por causa do homem [Ênfase acrescentada].

10 Portanto, por causa dos anjos [!!!/???], a mulher deve pôr um véu na cabeça para mostrar que está debaixo da autoridade do marido.

11 No entanto, por estarmos unidos com o Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher.

12 Porque assim como a mulher foi feita do homem, assim também o homem nasce da mulher. E tudo vem de Deus. [Tentando consertar?]

13 Julguem vocês mesmos: será que é certo que, num culto de adoração, a mulher ore a Deus sem estar com a cabeça coberta?

14 Pois a própria natureza ensina que o cabelo comprido é uma desonra para o homem,

15 mas para a mulher o cabelo comprido é motivo de orgulho. O cabelo foi dado a ela para lhe servir de véu.”

Embora a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) ainda hoje não ordene mulheres, ela, felizmente, permite que mulheres ensinem na Universidade Presbiteriana Mackenzie, de propriedade da IPB, que já teve até Reitora… (no caso, Esther de Figueiredo Ferraz, de 1965 a 1969 – duas outras mulheres vieram a exercer o cargo subsequentemente).

Embora algumas igrejas Pentecostais ainda exijam, das mulheres, o uso do véu na igreja, a maioria das igrejas cristãs não exige nem lenço nem chapéu (embora não os proíba, no que a moda agradece).

A maioria das demais igrejas cristãs no Brasil não segue a maior parte das demais injunções bíblicas mencionadas nos parágrafos anteriores.

Está a Bíblia errada ao proibir essas condutas? Na época em que a Bíblia foi escrita (um período que cobre mais de mil anos – o último livro sendo escrito há quase dois mil anos atrás) essas injunções eram bem aceitas, porque faziam parte da cultura da época (como fazia parte, por exemplo, a poligamia dos patriarcas, e outros costumes, hoje inaceitáveis, pelo menos na maioria das culturas ocidentais). Mas hoje, vamos defender a excomunhão e o expurgo das mulheres que falam, ensinam, pregam, oficiam os sacramentos e participam da administração nas igrejas que admitem isso? Parece-me claro que não… Não faz sentido (exceto para a Igreja Presbiteriana do Brasil).

Assim, na maioria dos casos, não se trata de afirmar que a Bíblia esteja cheia de erros e falhas (embora ela, sem dúvida alguma, os contenha). É só admitir que ela é um livro humano que possui, exemplifica, demonstra e evidencia a cultura, os usos e costumes, bem como as crenças e os pontos de vista, de sua época. É pura perda de tempo ficar procurando nas profecias bíblicas algum indício de que, nas profecias relativas aos  últimos tempos, haja algum indício que aponte para o aparecimento da Inteligência Artificial ou algo parecido com o Chat GPT – como eu já vi em discussão recente no Facebook. Os autores bíblicos não tinham nem ideia do que era um computador para poder fazer profecia relativa a um de seus usos.

E não adianta dizer que a Bíblia é inerrante e infalível em questões de fé e moral, mesmo que não seja em questões de usos e costumes que não envolvem a moralidade. Não é. O Deus da Bíblia manda matar inimigos, inclusive mulheres e crianças. Se a interpretação calvinista de Deus tem um mínimo de plausibilidade, o Deus que essa interpretação nos mostra é arbitrário e injusto, pois condena às penas eternas uma criança que morre com um dia de vida, se ela não for eleita, porque ela “nasce em pecado”, mesmo que não tenha cometido nenhum pecado ela própria, como eu li ainda ontem (21.8.2023) no Facebook. O Deus de Calvino determinou quem seria eleito para a salvação e quem seria condenado à perdição eterna, antes da criação do mundo… isto é, antes de ter criado o homem, e, a fortiori, antes de ele haver pecado. Em condições como essas, não havia como o homem não pecar (non posso non peccare, como dizia Agostinho). Essa a doutrina da chamada dupla predestinação.

Não sou proselitista e não estou querendo convencer, nem muito menos converter, ninguém. Convivo muito bem com gente que pensa diferente de mim. Nunca tive uma inclinação missionária. Só quero ver se é possível encontrar uma solução prática para o problema da desunião entre os cristãos, que lhes permita viver em paz e em cordialidade.

Como disse atrás, voltei a me considerar cristão – mas, desde 1965, e especialmente desde 1970, sou um cristão liberal. O liberalismo é muito criticado nas hostes do cristianismo conservador e fundamentalista. Mas pastores e teólogos liberais nunca processaram nenhum pastor conservador ou fundamentalista, nunca procuraram fazer com que fossem punidos pelos tribunais eclesiásticos, nunca os expulsaram de sua igreja. Em contrapartida, os conservadores e fundamentalistas fizeram isso com os pastores e teólogos liberais. Porque frequentemente são vítimas, e nunca algozes, os liberais querem uma igreja inclusiva, latitudinária. Para eles não existe algo que possa ser chamado de heresia, e, consequentemente, não há hereges: o pensamento divergente é visto por eles como um direito, mesmo dentro da igreja. Não havendo heresia, não há como caracterizar uma ortodoxia. Ponto final.

4. Qual a Solução?

 A única solução que eu encontro é definir minimamente a essência do Cristianismo de modo que todos os cristãos possam se enxergar, e enxergar os outros que se consideram cristãos, nessa essência (mesmo que eles aceitem muito mais do que o mínimo previsto na essência).

Essa solução implica considerar a religião cristã, ou o Cristianismo, como um movimento social, com uma essência básica, interpretada de forma ampla, e não como um conjunto de pessoas com crenças religiosas e metafísicas iguais – exatamente idênticas.

Interpretado assim, o Cristianismo poderá ser considerado, sem firulas desonestas, o maior movimento social do mundo, com mais de dois milênios de duração, aceito, se interpretado de forma latitudinária, por mais de dois bilhões de habitantes da Terra. Sendo um movimento social de natureza religiosa, ele não pode prescindir de uma referência a Deus e à existência de uma esfera que vai além do mundo natural e o transcende – seja qual for o nome que se lhe dê: esfera sobrenatural, esfera espiritual, esfera transcendente, o Além, etc. O movimento social cristão se recusa a aceitar que o mundo material seja tudo que existe e que a ciência natural seja a única forma de conhecimento e explicação válida.  

Qual seria essa essência? Já a sugeri (em parte) atrás, mas repito aqui de forma mais plena e precisa:

Acreditar que Deus é o responsável pela existência, pela preservação e pela governança do universo em que vivemos e aceitar que os ensinamentos e o exemplo de Jesus de Nazaré apontam para a melhor forma de viver, individual, social e espiritualmente, nesse universo ou em outro que porventura possa existir.”

Essa é uma essência. Toda essência é concentrada, é mínima, precisa ser expandida. Cada pessoa, ou cada grupo, pode expandir essa essência como desejar – DESDE QUE ADMITA QUE OUTROS POSSAM FAZÊ-LO DE FORMA DIFERENTE E CONTINUEM A ACEITAR A ESSÊNCIA. Todos os que aceitam a essência são irmãos nessa forma de ver o mundo. Você quer aceitar que Deus operou milagres nos tempos antigos e continua a realizá-los hoje, na forma de curas, livramentos, bênçãos especiais, etc.? Aceite. Nenhuma igreja deveria proibi-lo de crer nisso. É algo além do mínimo. Mas que não obrigue todos os demais cristãos a acreditar.

Utopia? Pode ser.

Se não buscarmos algo que parece utópico hoje, teremos de conviver com absurdos, com gente que acha que um casamento de uma pessoa batista com uma pessoa católica é proibido, porque se trata de jugo desigual, com gente que acha que, se você é arminiano, e não calvinista radical, você é do Diabo e já tem seu passaporte carimbado para o Inferno; E assim por diante.

Você prefere isso?

Você prefere viver em uma igreja em que as mulheres precisem ter cabelos compridos, e usar véus, e ainda por cima ficar totalmente caladas, no seu canto ou no seu lado da igreja? Vai haver igreja que satisfaça o seu gosto.

Você prefere viver em uma igreja em que, se alguém se divorciar, e se casar de novo, será posto para fora? Vai haver igreja que satisfaça sua preferência. Mas também haverá igreja que acolherá com naturalidade os que, tendo se separado, sentem que devem se casar de novo.

Se você é homossexual, você vai preferir viver em uma igreja que condena a homossexualidade como doença e quer fazer a sua cura, ou em uma igreja que acolhe com naturalidade você e seu parceiro (ou sua parceira)?

Note-se que já progredimos bastante.

Lutero concordou que os Príncipes Alemães de sua região matassem cerca de cem mil camponeses (sic) porque estes queriam que a Reforma Luterana contemplasse não apenas a doutrina da justificação pela fé mas também a doutrina de que o ser humano deve ser livre para trabalhar para quem quiser, naquilo que preferir, onde lhe for mais interessante – ou seja, por defender uma reforma que não fosse apenas religiosa, mas também econômica e social. Hoje a maior parte das pessoas concordaria com os camponeses alemães.

Calvino condenou à morte Michel Serveto (e alguns outros) por não acreditar que Deus é Triúno, isto é, um Deus constituído de Três Pessoas mas com Uma Só Natureza. Serveto não era ateu. Ele acreditava em Deus. Ele acreditava que Jesus era divino – mas não exatamente igual a Deus. E mesmo assim foi morto, em fogo lento, para sofrer mais e por mais tempo. Maldade pura e simples.  Hoje a maior parte das pessoas concordaria com Sebastian Castellio, defensor de Serveto e crítico de Calvino, de que a punição de hereges com a morte é algo totalmente inadmissível. Serveto quase perdeu a vida por fazer essa defesa, pois foi perseguido implacavelmente por Calvino.

Você preferiria viver numa época como a de Lutero e Calvino a viver hoje, com todo o chamado secularismo da Cultura Ocidental – mas que, por enquanto, é razoavelmente livre, permitindo a liberdade de culto e de religião?

As coisas precisam começar a mudar a partir de casa. Se você acha que só quem faz parte de sua própria denominação é cristão, os membros das demais estando perdidos sem esperança, já estando na ante-sala do Inferno, onde o Diabo os espera, não há esperança. Se a gente não consegue aceitar como irmão alguém que pensa diferente da gente em algo menor, secundário, não essencial, não há esperança — não só para uma União dos Cristãos, mas para a pacificação do mundo.

É isso. Graça e, no momento, sobretudo Paz, Tolerância, e Cordialidade.

Em Salto, 22 de Agosto de 2023

O Liberalismo Teológico – Uma Nota

O Liberalismo Teológico não é um conjunto de doutrinas e crenças que todo adepto da Teologia Liberal precisa aceitar para ser considerado um liberal bona fide. Nele não existem credos e confissões que todo liberal precisa aceitar para poder se considerar um liberal. Não existe ortodoxia. Não existem Tribunais de Inquisição. Consequentemente, não existem heresias, nem tampouco hereges. Não existe perseguição nem, muito menos, expurgo dos que ousam pensar, ou conduzir sua vida, de forma diferente. E não existem fogueiras onde queimar os hereges, porque inexiste essa categoria de pessoas, porque também inexiste a categoria de liberais ortodoxos, uma verdadeira contradição de termos.

O Liberalismo Teológico é um jeito e uma forma de entender o Cristianismo, de relacionar o Cristianismo com o mundo em que ele está inserido, de ler e interpretar tanto a Bíblia como a Tradição, e de fazer Teologia. O Liberalismo Teológico procura identificar e preservar a essência da herança recebida, e está disposto a acomodar o restante às novas realidades em que o Cristianismo precisa se situar.

Quem não aceita esses postulados geralmente não vem para o Liberalismo Teológico. Mas se, por absurdo, quiser vir, virá, será bem-vindo, e ficará ali até quando quiser sair (se isso acontecer), porque ninguém ficará incomodado com ele, nem, muito menos, tentará impedi-lo de pensar como pensa, e agir como acredita que deve, e, muito menos, tentará puni-lo por pensar assim.

Na Igreja Presbiteriana Americana, quando os liberais teológicos, depois de sofrer perseguição e expurgos (felizmente não chegou a haver fogueiras na Inquisição de lá), alcançaram a maioria, eles não perseguiram nem colocaram para fora da igreja fundamentalistas e conservadores como J. Gresham Machen e John Gerstner. Estes ficaram lá até o momento em que eles próprios resolveram sair.

O movimento conhecido como “Liberalismo Teológico”, que existe desde os primórdios do Cristianismo, não tem esse nome por acaso. Seus adeptos prezam a liberdade de pensar e de agir, e, por conseguinte, de ser cristãos como acham que devem. E não negam esse direito para ninguém.

Se Paulo de Tarso houvesse sido obrigado a ser cristão judaizante, como Pedro e Tiago, não haveria Cristianismo, hoje. Ou o Cristianismo não seria nada mais do que uma variante do Judaísmo Ortodoxo, só que com Cristo. Paulo, se a gente descontar o próprio Jesus de Nazaré, foi o primeiro liberal teológico, à sua moda (como são todos os liberais teológicos, do seu jeito, “their way”). Ele acomodou o Cristianismo Judaizante de uma Palestina Judaica à realidade do mundo greco-romano pluralista, inclusive no tocante à religião, onde não havia nem judeu, nem grego, nem romano: havia apenas gente.

[Esta Nota representa a essência de um artigo que estou escrevendo sobre “A FATIPI e o Liberalismo Teológico”, a propósito de um podcast disponível no Youtube e no Spotify. Esperava publicar o artigo logo depois que o podcast foi divulgado, mas ele cresceu e está virando um ensaio, já com 60 páginas, sobre a Teologia Liberal. A divulgação desta “essência” do artigo tira um pouco da pressão que eu próprio coloquei sobre mim para publicar o ensaio, mesmo que meio inacabado…]

[Eduardo Chaves, 2.6.2023]

Hinos e Louvores: A Música na Igreja

[NOTA 1:

Artiguete que publiquei no Facebook em 13.4.23]

Eu basicamente nasci na Igreja. Meu pai era pastor presbiteriano, e, quando eu era pequeno, ele era um daqueles pastores missionários, desbravadores de campo, que sempre estava indo mais longe, para fundar / implantar / plantar (como se diz hoje) uma igreja presbiteriana onde não havia nenhuma. Fundou as igrejas de Lucélia, onde eu nasci, de Dracena, e várias outras no Oeste Paulista e no Norte do Paraná (Marialva, Maringá, Campo Mourão, etc.).

Meu pai tinha uma veia musical. Toda a família dele tinha. Tinha excelente ouvido, boa voz e tocava qualquer instrumento que pegasse, mas preferia o harmônio (órgão de fole), a sanfona (acordeão), o violão, a flauta transversal. E era um bom poeta. Em todo lugar por onde passava deixava uma igreja com um coral. Nessas igrejas fundadas por ele, ele era, além de pastor, organista e regente do coral (que ele criava assim que havia um número bom de membros com voz e afinação passáveis). Ele tinha um excelente ouvido. Todos esses instrumentos que mencionei ele tocava de ouvido. Mas lia música bem, quando necessário. Transpunha hinos de um tom para outro com naturalidade, quando o tom original lhe parecia muito alto ou muito baixo. Ele era um barítono, mas alcançava bem a melodia dos tenores. E adorava duetar. Nisso tudo puxei a ele.

Embora ele fosse muito preocupado com doutrina — a chamada recta doctrina — e tenha passado essa preocupação para mim e para os membros das igrejas que ele fundou, para mim igreja é algo que está intrinsecamente ligado com comunhão, com canto, e, portanto, com a música. Eu já fui organista, também toquei sanfona, violão, gaita, cantei em tudo que é tipo de coral e conjunto, e montei um octeto que, por um tempo, regi, e que cantou em vários lugares desse Brasil: Curitiba, Florianópolis, e até em Brasília (que, então, em 1963, tinha três anos de vida…)

Hoje não toco mais nenhum instrumento, mas ainda gosto de cantar — e, naturalmente, de ouvir música (boa música, que tem letra significativa e melodia agradável e envolvente, que fica na cabeça da gente horas e mesmo dias depois de ouvi-la).

Por que digo tudo isso?

Digo isso porque eu fiquei fora da igreja por uns quarenta anos (1970 a 2010), e, quando voltei, a música tinha mudado o seu papel na igreja. Hoje, na maioria das igrejas, o canto congregacional de hinos constantes de um hinário, com entremeios do canto coral, a quatro vozes, em ambos os casos com acompanhamento de harmônio, órgão ou (mais raramente) piano, cedeu lugar ao canto grupal e performático, chamado louvor, executado por pequeno grupo de cantores e tocadores de instrumentos (guitarra, baixo e bateria, às vezes com a ajuda de um teclado eletrônico) que se postam na frente da igreja, olhando para os congregantes.

Antes, o importante, era a música congregacional, focada nos hinos do hinário, que todo mundo cantava e, não raro, sabia de cor. É verdade que, quando a igreja tinha um coral, este cantava um ou dois hinos que o resto da congregação só ouvia. E, às vezes, havia também um dueto ou um solo. Mas o importante era o canto congregacional. E meu pai gostava de hinos animados, como ele dizia, cantados com vida e alegria. E, se ele não estava tocando o harmônio ou órgão, ele regia a congregação a partir do púlpito, e, como tinha uma voz muito boa e forte, “puxava” o canto congregacional, para que ficasse vivo e animado e não se tornasse mole, arrastado. E este canto congregacional era importante para os crentes, que, às vezes, pediam ao pastor que inserisse na liturgia algum hino favorito deles. O hinário sempre foi o Salmos e Hinos, na minha infância e juventude (embora, quando havia coral, este cantasse muitos hinos do Cantor Cristão também – meu pai tinha uma certa queda pelos hinos desse hinário). Embora as letras dos hinos de vez em quando beirassem o ininteligível (“Se da vida as vagas procelosas são”, por exemplo), a música em geral era boa e todo mundo tinha o seu hinário próprio (não existia projeção da letra em um telão na época) e, assim, aos poucos conseguia acompanhar o hino: na terceira ou quarta estrofe, mesmo de um hino meio desconhecido, todo mundo estava cantando junto em uníssono (com alguns mais ousados fazendo uma segunda, terceira ou quarta voz — contralto, baixo, ou tenor).

Hoje tudo isso está mudado nas igrejas presbiterianas, exceto em algumas igrejas mais tradicionais. Toda igreja, por menor que seja, tem o seu grupo de louvor, em que duas ou três pessoas cantam, alguém toca violão ou guitarra, outro toca baixo, mais um toca teclado, e ainda outro se ocupa da bateria.

Eu, confesso, não me acostumei isso. E não acho que essa mudança tenha sido para melhor. E por várias razões.

Primeiro, porque essa iniciativa fez com que o cantar na igreja fosse delegado (terceirizado) para o grupo de louvor. É este que canta. Os demais membros da igreja apenas ouvem. Quando acontece de haver um hino que eles conheçam, por ser mais da velha guarda, alguns na congregação tentam acompanhar — e, como a letra é projetada, às vezes conseguem. Ninguém mais carrega o hinário para a igreja (nem a Bíblia, pois os trechos bíblicos também são projetados ou, na pior das hipóteses, acompanhados no telefone, cada um lendo a sua tradução preferida da Bíblia). Mas, de resto, a congregação fica calada, mesmo quando — absurdo dos absurdos — se pede que a congregação se levante para ouvir os próximos dois hinos cantados pelo grupo de louvor… Levantar para cantar melhor, de modo mais vivo ou animado, um hino de ritmo rápido (como “Deus dos Antigos”, “Avante, Avante, ó Crentes”, por exemplo), até é compreensível, mas levantar para ouvir o conjunto cantar me parece sem sentido. Se o hino é meio animadinho, o chefe do grupo de louvor até pede que a congregação bata palmas no ritmo — e algumas pessoas mais ousadas, geralmente mulheres, gesticulam e dão uma gingadinha. (É raro ver um homem rebolando um pouco, mas, hoje, acontece). No todo, a participação da congregação na parte musical do culto foi reduzida a quase nada além de ver e ouvir (“participar passivamente” – algo que soa uma contradição de termos).

Segundo, porque o grupo de louvor depende da guitarra elétrica, do baixo, e da bateria, as músicas todas têm um ritmo parecido, meio roqueiro, com uma toada que favorece os músicos e dá um papel de destaque ao baterista e àqueles que, no conjunto, têm voz melhor e mais forte.

Terceiro, a letra dos hinos (não é costume mais designá-los assim: hoje se fala “dos louvores”), em geral, é sofrível — quando não horrível. Raramente os versos são bem construídos, com o mesmo número de sílabas, com rimas decentes, etc. Por vezes, a letra não passa de uma passagem bíblica, não versificada, sem rimas, e repetida ad nauseam (já contei doze repetições seguidas da mesma frase – DOZE!). Alguns trechos, que funcionam mais ou menos como refrão, às vezes chegam a ser repetidos mais de vinte vezes ao longo do louvor inteiro, uma vez depois da outra, cantando a mesma coisa, com um arremate de no mínimo seis vezes… Quando você pensa que está terminando, volta-se a cantar ainda uma vez. Qual o sentido dessa repetição toda??? E pelo menos nós, os mais velhos, temos, por vezes, de ficar em pé, com as pernas doendo, ouvindo a repetição infindável de um trecho da letra.

Quarto, há a bendita gesticulação — a mímica. Se se fala de Deus, levantam-se os braços (quem está com microfone de mão só levanta um braço); se de bênção, esticam-se as mãos, com as palmas viradas para cima; às vezes se bate no peito ou se bate palmas… É triste… Em todo lugar é a mesma coisa. 

Chegou a hora de ser mais criativo na música cantada na igreja. Não quero apenas voltar aos hinos tradicionais, que todos sabíamos de cor (embora goste muito deles até hoje). Mas gostaria de ver o envolvimento da congregação cantando animada, alegre, com o vigor de quem está vivo e bem vivo — um hino cuja letra possa ser ouvida e entendida a uma quadra de distância (a letra, não o repique do baixo e da bateria. O sermão, que ocupa de 20 a 30 minutos, já é unidirecional: a congregação fica passiva. As orações são feitas por quem está lá na frente: a congregação continua passiva. Não se usa mais pedir que um irmão ou uma irmã faça uma oração voluntária, de improviso… Nem se abre a possibilidade de que quem quiser orar em voz alta que o faça, fatalmente acompanhado de vários améns (algo que os pastores de hoje consideram arriscado). Nada disso acontece mais nas igrejas presbiterianas. Tirando a coleta, a música era a única hora em que a congregação participava, se envolvia no culto. O louvor era dela, da congregação, não do coral, nem de um grupo rotulado de louvor. (O coral da minha igreja em Santo André chegou a ter noventa vozes, nada que se compare com as três ou quatro vozes dos grupos de louvor de hoje). Agora, nem o papel de louvar a congregação tem mais. Daqui a pouco a Santa Ceia será um lanchinho que o pastor e os presbíteros tomam lá na frente enquanto a congregação assiste… (Na Igreja Católica o vinho já é só o padre oficiante que toma… Afinal de contas, lá é vinho mesmo, e vinho custa caro para oferecer a todo mundo…).

Na minha modestíssima opinião há que se fazer alguma coisa para voltar a envolver a congregação no culto, e a música congregacional, que todos, ou a maioria dos membros, conhecem bem e gosta de cantar é o jeito mais fácil de fazer isso. Uma iniciativa nesse sentido reduzirá, por certo, o papel dos grupos de louvor, que passará a funcionar apenas como um mini-coral, cantando um, no máximo dois hinos ao longo do culto — não sete ou oito, dos quais quatro ou cinco de enfiada, no início do culto, com a congregação em pé… – um martírio para nós ao redor dos oitenta.

Sei que vou ouvir críticas e elogios, as críticas vindo até mesmo aqui de dentro de minha própria casa, mas faz parte…

EC, 13.4.23

[NOTA 2:

O artiguete recebeu até hoje, 3.5.23, 43 comentários, a maioria favorável.

Vide:

https://web.facebook.com/eduardo.chaves/posts/pfbid0GZYkjeTH6tqyt91Lmdux1LN6fzwXQRgicF95fvWSLa6ZVRR1Bn3a9CYjBDgQqvaHl   ]

[NOTA 3:

A seguir, comentário que escrevi em 30.4.2023, em resposta a um comentário feito por uma amiga minha, colocado em uma foto que postei do Grupo de Louvor da igreja que frequento, a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, com minha mulher cantando no grupo. O material pode ser visto em minha conta “chaves” no FB, no seguinte endereço:
https://web.facebook.com/chaves/posts/pfbid0pKNnJQRGDXuhhifBqMJH4ma6krAesVJJVGWcWUCLJhhhFmQvxkp91m4Mbz1GQg4Nl  ]

Comentário:

“Na sua Igreja tem Grupo de Louvor? Um dia desses você fez uma crítica severa aos Grupos de Louvor das Igrejas.🤔🤔”

Minha Resposta

SIM. A Igreja que eu frequento (ela não é minha, em nenhum sentido em que essa expressão possa ser legitimamente usada — eu não faço parte nem do rol de membros dela, só a frequento regularmente) tem um Grupo de Louvor, do qual a Paloma Epprecht Machado Campos Chaves, minha mulher, faz parte, de um certo tempo para cá.

Aproveito sua pergunta para esclarecer que meu artiguete, em estilo de comentário, não dirigiu suas críticas a “Grupos de Louvor”, em si, como categoria, nem a nenhum Grupo de Louvor específico, muito menos ainda ao Grupo de Louvor desta igreja que eu frequento, composto por pessoas, todas elas muito queridas, dedicadas, e esforçadas, que são respeitadas e admiradas por mim.

Minha crítica foi genérica e teve três pontos principais:

1. Por causa da disseminação generalizada dos Grupos de Louvor nas igrejas, que são grupos que cantam lá na frente da igreja, olhando para os congregantes, acompanhados por instrumentos especializados (guitarra, baixo, bateria, por vezes teclado eletrônico), e cujo repertório geralmente consiste de músicas de um gênero específico chamado louvor (distinto de hino de hinário) — por causa disso, repito, o canto congregacional, em que toda a igreja cantava hinos que quase todos os congregantes conheciam (às vezes até sabiam de cor), acompanhados geralmente de um órgão ou harmônio, ESTÁ DESAPARECENDO, SIMPLESMENTE DEIXANDO DE EXISTIR — o que eu acho uma lástima. Os congregantes, hoje, não cantam mais na igreja, em parte: (a) porque não conhecem os louvores; (b) porque não gostam do estilo das músicas; ou, (c) simplesmente, porque acham que cantar na igreja, como pregar do púlpito, é algo especializado, que é delegado (terceirizado) a um grupo específico que a gente assiste, às vezes, não sei por que, em pé. (Cantar em pé um hino animado eu até entendo, mas ouvir em pé, como se ouvindo o Hino Nacional sem cantar, eu acho que não faz muito sentido.

2. Embora goste de algumas músicas consideradas louvor, da maioria eu não gosto. Não gosto da melodia (música) porque ela em geral tem um ritmo predeterminado pelos instrumentos usados (em especial as guitarras, os baixos e a bateria). Há louvor em ritmo de valsa, balada, guarânia, mpb, etc., raramente no ritmo mais cadenciado que me acostumei a encontrar nos hinos. E não gosto da letra, porque é repetitiva em excesso, sem métrica cuidadosa, com pés quebrados, por assim dizer, sem rima bem feita, etc. Às vezes a letra é apenas um versículo bíblico (ou mais de um) cantado na forma bíblica original, sem tratamento melódico e/ou poético mais cuidadoso.

3. Não gosto, por fim, do ambiente que geralmente acompanha os louvores, com gestos, palmas e a inevitável gingadinha que o tipo de música, os instrumentos e as palmas induzem. Não acho que o culto deva ser um momento triste, de modo algum, mas acho que deva ter uma certa solenidade que parece incompatível com as características que descrevi acima.

REPITO: Minha crítica foi à substituição regular do canto congregacional convencional pelo louvor. Não sou contra os Grupos de Louvor, em si, nem ao seu uso, uma vez ou outra, muito menos aos que deles participam com muita dedicação e esforço. Mas não me sinto muito em casa em igrejas em que só há Grupos de Louvor, não havendo canto congregacional em que todos cantam hinos conhecidos de todos, e em que não há nem mesmo canto coral, com harmonia em quatro vozes, com acompanhamento por órgão, ou harmônio ou piano.

Sei que parte da minha crítica é resultante de minha idade. Farei 80 anos em 7 de Setembro. E às vezes me sinto, no culto, como se estivesse em festinha de adolescente, ou, pior, em concerto de rock (que só conheço por ver na TV).

É isso. Obrigado por provocar este meu esclarecimento. Um abraço para você e para a querida família de que você faz parte.

PS: Creio que sua sogra concorde comigo, pelo menos em parte… Diga-lhe que mando um beijo para ela, mesmo que ela não concorde comigo em nada… 🙂

Em Salto, 30.4.23

A Essência do Cristianismo?

Ontem à noite (2.10.2022), noite da apuração da eleição presidencial em seu primeiro turno, eu ouvi um sermão, proferido pelo Rev. Sérgio Oliveira, de Pilar do Sul. Ele trabalha na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), atualmente no Presbitério de Sorocaba, residindo em Pilar do Sul. Ele pregou na IPI de Salto porque o pastor havia sofrido uma cirurgia, dois dias antes, e estava acamado. O texto usado para o sermão foi pequeno: os quatro primeiros versículos do capítulo 2 do livro de Atos dos Apóstolos, que abre a narrativa sobre o Dia de Pentecostes. Dizem eles, na [NTLH]:

1. Quando chegou o dia de Pentecostes, todos os seguidores de Jesus estavam reunidos no mesmo lugar.

2. De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados.

3. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, que se espalharam como línguas de fogo; e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. 

4. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa.

A ênfase do pastor foi no sentido de que discípulos de Jesus esperavam, enquanto ele estava vivo, que viesse a ser um Messias político, que libertasse o povo judeu da dominação exercida pelos romanos. Mas Jesus foi preso e crucificado. Com sua ressurreição, reanimaram-se suas esperanças, de que Jesus fosse permanecer entre eles e liderar uma revolta contra os romanos. Jesus, porém, foi levado para o céu e eles ficaram novamente perdidos. A Festa de Pentecostes foi a ocasião em que revelou a eles todos que a natureza da missão de Jesus era diferente do que eles esperavam – diferentes em três aspectos. 

O primeiro aspecto é ressaltado exatamente no quarto versículo. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar, . . . de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. O poder do Espírito foi dado a todos, e todos começaram a falar “com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. O primeiro aspecto tem que ver com as distinções entre as pessoas, com a eliminação de preconceitos e a implantação da igualdade entre as pessoas. Fica evidente aqui que no Cristianismo Primitivo, todos tinham o poder do Espírito e todos podiam igualmente falar, não havendo distinção entre as pessoas, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre velhos e jovens, entre judeus e gentios, entre casados e solteiros ou viúvos, entre gente culta e estudada e gente simples e sem cultura. Consta que o judeu homem orava todo dia dando graças a Deus por ser homem, e não ser mulher, criança ou gentio. Essas distinções todas foram abolidas no Cristianismo de Jesus Cristo, revelado durante a Festa de Pentecostes. 

O segundo aspecto é ressaltado nos versículos 1 e 2. Ele tem que ver que ver com a distinção entre o Sagrado e o Secular. No Judaísmo, o templo era um lugar sagrado, e dentro do templo havia o lugar mais sagrado de todos, o santo dos santos, em que apenas o sumo sacerdote tinha o direito de penetrar. Diz o Novo Testamento que, quando Jesus morreu, o véu do templo que separava o Santo dos Santos, se rasgou de alto a baixo. A religião de Jesus Cristo eliminou essa distinção entre o espaço sagrado e o espaço secular. “Todos os seguidores de Jesus estavam reunidos em um mesmo lugar” – e o lugar não era uma sinagoga ou uma igreja: era a casa de uma das pessoas. Jesus Cristo rompeu de vez com a sacralidade de determinados espaços: todo espaço é local adequado para o culto a Deus e a comunhão dos crentes uns aos outros. Desnecessária se tornava a pessoa de um sumo sacerdote, e mesmo de um sacerdote, bem como a pessoa de um fariseu, um escriba, um levita, ou até mesmo um rabino. Cada um dos crentes recebeu o poder do Espírito Santo e passou a ter direito de falar, em louvor, pedido ou agradecimento a Deus. Todos, como definidos no primeiro aspecto, tinham direito de adorar e louvar a Deus em qualquer lugar, sem necessidade de um templo, de um altar, de um lugar para sacrifícios. É isso que Martinho Lutero chamou de “O Sacerdócio de Todos os Crentes”. 

O terceiro aspecto é ressaltado no versículo 1. O Espírito veio a todos no dia de Pentecostes, que acontecia cinquenta dias depois da Páscoa. A Páscoa acontecia numa sexta-feira à noite e no dia seguinte, período que veio a ser considerado sagrado na semana, o Sabbath, onde as pessoas não trabalhavam, e só adoravam a Deus. A Dia de Pentecostes, quando o Espírito foi dado a todos, fora de um lugar sagrado, acontecia num Domingo, o dia depois do Sábado sagrado (50 dias depois da Páscoa), e, portanto, em um dia útil, um dia de trabalho, não de adoração e culto, firmando o princípio que todo dia é dia de adoração, de louvor, de pregação, de ação de graças. 

Assim, se o primeiro aspecto aboliu distinções entre as pessoas, e o segundo aboliu distinções entre espaços sagrados e espaços seculares, o terceiro aboliu distinções entre tempos sagrados e tempos seculares, dias de trabalho e dias de descanso, adoração e louvor a Deus. 

Esse novo espírito introduzido pela religião de Jesus começou a se perder a partir do quarto século. A partir das ocasiões em que o Cristianismo se tornou religião lícita, em 313 AD, e quando se tornou religião oficial do Império Romano, em 381 AD, as distinções foram sendo reintroduzidas gradativamente. 

Em primeiro lugar, as distinções entre as pessoas foram sendo reintroduzidas: diáconos, presbíteros, bispos, arcebispos, patriarcas, metropolitanos, cardeais, papas… Algumas dessas funções eram privativas de homens, sendo vedadas às mulheres, ou às crianças; algumas dessas funções foram reservadas a homens celibatários, que foram proibidos de se casar; mulheres virgens começaram a ter um status especial no Cristianismo. Na Bíblia se diz apenas que o bispo seja marido de uma só mulher: mais tarde se decidiu que ele não podia ser marido de nenhuma mulher. 

Em segundo lugar, o Cristianismo pobre, que precisava se reunir na casa das pessoas, ou nas catacumbas, ganhou ricas igrejas dos Imperadores Romanos, e os lugares sagrados começaram a ser de novo demarcados dos lugares seculares, chamados de profanos. 

E, por fim, em terceiro lugar, reintroduziram-se os dias santos: primeiro, os domingos de todas as semanas, depois os dias de festas tradicionais do Cristianismo, como o Natal e a própria Páscoa, e assim por diante, até que cada dia do calendário tinha seu santo – e as comemorações do santo do dia, como no caso das Festas Juninas…

Assim os elementos essenciais da mensagem que o Espírito Santo trouxe no dia de Pentecostes acabaram por se perder – e o Cristianismo se tornou uma religião como o Judaísmo e as demais religiões. 

É preciso que tentemos recuperar a igualdade de todos os seres humanos, de todos os espaços, e de todos os tempos e momentos. Essa foi a mensagem do sermão. 

Também não devemos nos esquecer – e esta é uma contribuição minha, não do pastor – de que foi a partir do mesmo século quarto que se começou a definir um cânon – um conjunto especial – de livros a serem lidos pelos cristãos, deixando de fora do cânon um número enorme de livros que até ali eram lidos e discutidos com proveito. 

E também foi a partir do mesmo século quarto que começam a reunir, convocados pelos Imperadores Romanos, Concílios Ecumênicos, que definiram cânones, credos e confissões contendo aquilo que os cristãos podiam e deviam acreditar… Foi aí que começou a ideia de Recta Doctrina, Ortodoxia, e a consequente ideia, que tanto mal e sofrimento já causou dentro do Cristianismo, de Heresia – com a devida punição dos hereges. 

O sermão me fez lembrar de um artigo que publiquei aqui recentemente sobre a importância da desigrejação (ou do desigrejamento) do Cristianismo. Eu deveria ter enfatizado naquele artigo, também, aquilo que mencionei dos dois últimos parágrafos e o que discuti no restante do artigo: a igualdade entre as pessoas e o abraçamento de qualquer tipo de pessoa no Cristianismo, todos os já mencionados e mais os que ainda são discriminados hoje, os gays, os bissexuais, os multissexuais, os transsexuais, os que se preferem manter solteiros ou mesmo virgens, sem a constituição de uma família convencional, sem esquecer os supostamente hereges; também a dessacralização dos espaços, com o abraçamento dos espaços seculares, em especial os locais de serviço e de lazer e a rua; e também a dessacralização dos tempos, dos momentos de adoração, louvor, oração e ação de graças, com o abraçamento dos momentos até aqui considerados profanos.

O Cristianismo é algo que se vive e que se pratica na companhia de qualquer pessoa (anyone), em qualquer lugar (anywhere), em qualquer momento (anytime), quando estamos fazendo qualquer tipo de coisa (anything), não só lendo a Bíblia, orando, pregando, cantando, tomando uma ceia especial com pão e vinho. O balcão de um bar ou de uma padaria, em que se come um salgado, é, com a atitude apropriada, igual a uma cerimônia eucarística. 

É possível explorar qual é essa “atitude apropriada” – mas não é difícil encontra-la nas páginas do Novo Testamento. 

Em Salto, 3 de Outubro de 2022. 

NOTA: Embora as ideias aqui expressas tenham sido inspiradas pelo sermão do Rev. Sérgio Oliveira, elas são minhas e não devem, sem o eventual endosso e a devida aceitação dele, ser atribuídas a ele. Pessoas com ideias criativas e inovadoras sofrem dentro da igreja. Não desejo, de modo algum, que minhas ideias, aqui expressas, sejam consideradas como se deles fossem, embora haja paralelos e, de vez em quando, pontos de contato, que não podem ficar em linhas paralelas. Eu, que me considero cristão, protestante e presbiteriano, estou no momento “inalcançável” por Tribunais de Inquisição Presbiteriana, que ainda persistem. Essa é uma das vantagens de ser desigrejado: minhas “heresias” não podem ser punidas pela autonomeado “ortodoxia”. 

Como Identificar os Cristãos, os Protestantes, e os Diversos Ramos Protestantes?

Uma das minhas qualificações profissionais é ser Historiador da Igreja Cristã e do Pensamento Cristão. Preparei-me, depois que, em 1959, terminei o Ginásio (Educação Escolar de Nível Fundamental II), para ser isso. Mas há um ditado que diz que Deus, quando nos vê fazendo planos, dá risadas, pensando com seus botões: “Mal sabe ele que…”.

Comigo foi assim. No caminho, vários de meus planos, ou nem começaram, ou, se começaram, deram errado… Precisei fazer várias correções de rumo, dei várias guinadas, umas mais fortes, outras, nem tanto… Dei uma guinada, não muito forte, para trabalhar com a História da Filosofia Ocidental (que, no Ocidente, é algo próximo, da História do Pensamento Cristão Ocidental). Depois dei várias guinadinhas, dentro da Filosofia: trabalhar, não tanto com História da Filosofia (minha especialização era o século 18), mas com Epistemologia (Teoria do Conhecimento), depois com a Filosofia Política (Liberalismo e Libertarianismo), depois com a Filosofia da Educação…

Foi só em 2014, depois de aposentado da UNICAMP, que vim a trabalhar, profissionalmente, com História da Igreja Cristã e História do Pensamento Cristão, na Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI). Mesmo assim, por apenas três anos e meio. Daí aposentei-me de vez.

Mas creio que tenho condições de tentar esclarecer a questão que dá título a este artigo — embora, advirto os leitores, muita gente não vá concordar com a minha explicação. Dentro das religiões, em geral, e do Cristianismo, em particular, e, no Cristianismo, dentro do Protestantismo, de forma particularíssima, paixões afloram com facilidade e pessoas se ofendem, com razoável facilidade, com sua opinião. Mas hoje parece que o mundo inteiro é assim, tem casca meio fina, se escandaliza e se ofende com muita facilidade, e quando se escandaliza ou se ofende com algo que você diz quer proibir você de dizê-lo…

Deixo claro, portanto, de início, de onde venho. Nasci na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Esse é o nome de uma denominação protestante brasileira que se orienta por princípios presbiterianos (que são princípios doutrinários calvinistas – originados com João Calvino – e organizacionais escoceses – originados com João Knox, que estudou em Genebra com Calvino). Meu pai era pastor dessa igreja — foi durante quase 50 anos, do fim de 1941, quando se formou, até Março de 1991, quando morreu. Nasci virtualmente dentro da Igreja Presbiteriana de Lucélia, SP, que foi fundada pelo meu pai em 1943, como uma igreja local, dentro da denominação IPB (fundada em 1859, por missionários americanos). Em Agosto de 1966 fui desligado, contra a minha vontade, do Seminário Presbiteriano do Sul (SPS), de Campinas, onde eu estudava, e que pertencia, como ainda pertence, à IPB.  “Ser desligado contra a vontade” é eufemismo para ser expulso. Depois de ser desligado do SPS, estudei por um semestre (o primeiro de 1967) em um Seminário, chamado de Faculdade de Teologia (FT), da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo, RS. A IECLB é outra denominação protestante brasileira, mas ela se orienta por princípios luteranos, não presbiterianos. No segundo semestre de 1967 fui estudar nos Estados Unidos, no Pittsburgh Theological Seminary (PTS), em Pittsburgh, PA, que pertencia a uma denominação presbiteriana americana, que, naquela época, se chamava United Presbyterian Church in the USA (UPC-USA). Hoje, depois de juntar com outras denominações presbiterianas, ela tem outro nome (Presbyterian Church – US).

Os termos e as siglas às vezes deixam as pessoas com dificuldade para entender. Na verdade, ninguém deve ter vergonha de não entender essas coisas, porque elas são realmente complicadas. Por isso escrevo este artigo.

Vou definir, inicialmente, alguns termos:

Religião: um conceito amplo, que se aplica a macro conglomerados. Existem, por exemplo, e simplificando, as três grandes religiões monoteístas, isto é, que acreditam que existe um, e apenas um, Deus: o Judaísmo, o Cristianismo, e o Islamismo. Fora essas três, existem religiões politeístas, que admitem a existência de vários deuses, como o Hinduísmo, e religiões que parecem não acreditar em nenhum deus, como é o caso do Budismo. Aqui no Ocidente têm aparecido, em tempos recentes, religiões ateias — religiões de gente que não acredita em Deus mas gosta da vida de igreja, da comunhão, de hinos, até de sermões. Mas vamos deixá-las de lado.

Dentro do Cristianismo havia basicamente dois grandes ramos até o século 16: o Católico (Ocidental, que privilegiava a língua latina) e o Ortodoxo (Oriental, que privilegiava a língua grega). No século 16 houve a Reforma Protestante e, com ela, a divisão do Cristianismo Ocidental (não o Oriental), que passou a ter, além de um Ramo Católico, um Ramo Protestante (que, por sua vez, se dividiu em vários). Assim, é comum reconhecer que, hoje em dia, há três grandes ramos dentro do Cristianismo: o Católico e o Protestante, predominantes no Ocidente. e o Ortodoxo, que predomina, ou predominava, no Oriente (e que, em geral, se divide geograficamente: Grego, Russo, etc.).

Dentro do Protestantismo, que é considerado um ramo só, as divisões se dão por Tendências Teológicas-Éticas-Litúrgicas-Organizacionais. Há várias dessas Tendências: a original é a Luterana, dependente de Martinho Lutero, depois surgiu a Calvinista, dependente de João Calvino (tendência que é chamada, na Europa, de Reformada, como se as outras não fossem reformadas, e, nas Ilhas Britânicas, nos Estados Unidos, no Brasil, etc., de Presbiteriana), a Anglicana, dependente de Henrique VIII e seus sucessores, na Inglaterra (e predominante nas Ilhas Britânicas e nas ex-colônias britânicas), a Batista, a Metodista (surgida no século 18), etc., além de algumas menores: Menonitas, Quakers, Amish, etc. No século 20 surgiu a tendência Pentecostal, que, apesar de ser a mais recente, é hoje, das Tendências Protestantes, certamente a maior, numericamente falando.

Dentro de cada Tendência há o que se convencionou chamar de Denominações. Uma denominação é uma pessoa jurídica, dentro das regras de um determinado país ou região. Pode haver várias denominações de tendência Presbiteriana (ou Luterana, ou Batista, etc.) em um mesmo país ou uma mesma região. Ilustrando com a Tendência Presbiteriana, no Brasil, por exemplo, há pelo menos as seguintes denominações: a Igreja Presbiteriana do Brasil (a original, criada em 1859), a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (criada em 1903), a Igreja Presbiteriana Unida (criada em 1986, se não me engano), a Igreja Presbiteriana Conservadora, a Igreja Presbiteriana Fundamentalista, a Igreja Presbiteriana Renovada, etc., que foram criadas em datas de que não me lembro sem ir olhar. Todas essas denominações são presbiterianas, mas elas divergem em alguns aspectos, sejam doutrinários, sejam morais (regras de conduta), sejam formas de cultuar (mais sérias e formais, de um lado, mais descontraídas e espontâneas), sejam formas específicas de se organizar e se administrar.

Assim, temos, em princípio: Luteranos são Luteranos, Presbiterianos são Presbiterianos, Pentecostais são Pentecostais, Batistas são Batistas, Metodistas são Metodistas, etc. Alguns, como os Anglicanos, são chamados de Episcopais, fora da Inglaterra, mas fazem parte de uma tendência só. Os Presbiterianos, como já disse, assim chamados na Grã-Bretanha, nos EUA, no Brasil e em vários outros lugares, são chamados de Reformados, na Europa, principalmente. Mas Presbiterianos e Reformados são uma coisa só — “Reformados” com “R” maiúsculo. Todas as denominações mencionadas são reformadas no sentido mais amplo de que são frutos, direta ou indiretamente, da Reforma Protestante do século 16.

Quando a gente se refere a Luteranos, Presbiterianos, Pentecostais, etc., a gente em geral está falando em Tendências, ou seja, grupos de pessoas que compartilham determinadas crenças, valores (regras de conduta), liturgias (formas de cultuar), estruturas organizacionais (formas de se organizar em comunidades), etc.

Como já disse, essas Tendências em geral se organizam em Denominações.

Da mesma forma que dentro da tendência Presbiteriana há, no Brasil, várias denominações, mencionadas atrás, dentro da tendência Pentecostal também há várias denominações, que são igrejas juridicamente organizadas que adotam, no básico e essencial, os princípios Pentecostais: Igreja Assembleia de Deus, Igreja Congregação Cristã, Igreja do Evangelho Quadrangular, etc. A Assembleia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil, etc. são denominações consideradas clássicas dentro do Pentecostalismo Brasileiro (embora os Pentecostais tenham surgido, nos Estados Unidos, apenas no início do século 20 — têm um pouco mais de um século, portanto). As denominações chamadas Neo-Pentecostais aqui no Brasil são aquelas surgidas ainda mais recentemente, por volta de 1970, daí pra frente: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Renascer para Cristo, etc. e outras que tais, que cresceram vertiginosamente, com sua ênfase no chamado “Evangelho da Prosperidade” e uso intensivo de programas de televisão, deixando as outras denominações Protestantes, Pentecostais ou não, para trás.

Até aqui tudo parece muito bem organizado. Mas a realidade não é tão certinha.

Algumas denominações tradicionais, como várias das denominações Presbiterianas, por exemplo, para falar do que eu conheço melhor, ou algumas igrejas locais dentro dessas denominações, de vez em quando passam a adotar características que, deixando de lado sua posição tradicional, são geralmente usadas para identificar os Pentecostais: defender a cura divina, praticar o exorcismo, falar línguas estranhas, etc. Quando isso acontece, essas denominações ou igrejas locais são normalmente qualificadas ou chamadas de avivadas ou carismáticas (até dentro da Igreja Católica há grupos ou mesmo alas consideradas avivadas ou carismáticas). Quando isso acontece, muita gente diz que essas denominações, igrejas locais, ou grupos dentro de uma igreja local “se pentecostalizaram”, o que quer dizer que assumiram características geralmente identificadas com a tendência Pentecostal. Em geral elas continuam presbiterianas, mas se consideram “Presbiterianas Carismáticas”, ou “Presbiterianas Avivadas”, ou “Presbiterianas Renovadas”, etc. Pode ser até que se separem da igreja-mãe e formem outra denominação, que abra mão do rótulo “Presbiteriano”. E pode ser que optem por se chamar de “Igreja Presbiteriana Pentecostal”, criando confusão na cabeça das pessoas, mas isso não é comum. Pelo menos, não era.

Às vezes há denominações mais tradicionais que, diante da “Pentecostalização” de algumas de suas igrejas, ou de grupos dentro delas, botam os “hereges” pra fora, mesmo que eles queiram permanecer dentro… Sendo postos para fora, eles, daí, não têm outra saída a não ser formar uma outra denominação ou igreja.

A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil saiu da Igreja Presbiteriana do Brasil voluntariamente, em 1903. A Igreja Presbiteriana Unida foi formada por gente que, em sua maioria, foi colocada para fora da Igreja Presbiteriana do Brasil, a partir de 1966.

Em penúltimo lugar, há algumas Tendências religiosas que têm sua auto-identidade questionada. Vou dar alguns exemplos.

Primeiro: Existe uma Tendência que se denomina Unitária — ou Unitarista. Essa tendência acredita em Deus, mas não em um Deus Triúno, ou seja, não na Trindade. Jesus Cristo, para os Unitários, não é Deus, embora seja uma pessoa muito especial. Unitários seriam Cristãos, mesmo sem reconhecer a divindade de Cristo?

 Segundo: Existe uma Tendência que se denomina Mórmon — o nome oficial é “Igreja dos Santos dos Últimos Dias”. Os mórmons aceitam o Velho Testamento (a Bíblia dos Judeus) e o Novo Testamento (a Bíblia específica dos Cristãos). Mas eles aceitam também uma série de livros, como o Livro dos Mórmons, que são consideradas revelações divinas mais recentes, dadas no século 19 ao seu fundador e líder, Joseph Smith. Os Mórmons seriam cristãos? A maior parte deles assim se considera, porque aceita a Bíblia, e, consequentemente, aceita Jesus Cristo — embora aceite também outros escritos além da Bíblia como autoritativos (se é que essa palavra existe em Português). Seriam eles Cristãos+?

Algo parecido acontece com os chamados Moonies, seguidores do chamado Rev. Moon, um coreano que era pastor presbiteriano e resolveu criar sua própria igreja, hoje conhecida como Igreja da Unificação. Os Moonies aceitam um livro, chamado Princípio Divino, que teria sido revelado ao Rev. Moon. Mas aceitam também a Bíblia inteira. Seriam eles também Cristãos+?

E os Adventistas do Sétimo Dia, que também aceitam a Bíblia, mas consideram os escritos de Ellen White também como autoritativos? Também Cristãos+?

Evidentemente, Unitários, Mórmons, Unificacionistas e Adventistas não são nem Católicos nem Ortodoxos. Seriam eles Tendências Protestantes?

Eu assim os considero. Mas muita gente não os considera nem Protestantes, nem Cristãos.

Para os que relutam em aceitá-los como Cristãos e Protestantes, eu argumento: os Luteranos não aceitam, além da Bíblia, o Livro de Concórdia como autoritativo? Os Presbiterianos, além da Bíblia, não aceitam também a Confissão de Westminster, outras confissões, os escritos de Calvino como autoritativos?

Isso impede Luteranos e Presbiterianos de serem considerados Cristãos e Protestantes?

Em último lugar, há o problema do termo “Evangélico”. No Novo Testamento, Evangelho é um termo grego que quer dizer “boa nova” ou  “boas novas”. Todos os Cristãos (ou, pelo menos, a grande maioria deles) aceitam as boas novas da salvação contidas no Novo Testamento, e, portanto, deveriam, ou, pelo menos, poderiam ser chamados de Evangélicos. Mas não são. Tradicionalmente, o termo Evangélico era considerado quase sinônimo de Protestante: evangélico era alguém que seguia uma das Tendências Protestantes. A partir de meados do século 20, porém, surgiu uma “Micro-Tendência”, dentro de diversas Denominações Protestantes, que, para se diferenciar de Protestantes Conservadores / Fundamentalistas, de um lado, e de Protestantes Liberais / Modernistas, de outro, resolveram se rotular de Protestantes Evangélicos (ou Evangelicais, ou Evangelicalistas — termos que eu acho horrorosos). Assim, quando alguém se diz Evangélico, tout court, será ele evangélico no sentido convencional (Protestante) ou no sentido mais recente (Protestante que não é nem Conservador / Fundamentalista, nem Liberal / Modernista), independentemente de qual seja a sua Denominação?

Esse fato criou algo interessante. Um Presbiteriano Evangélico (no segundo sentido) se sente, muitas vezes, mais próximo de um Metodista Evangélico do que de um Presbiteriano Conservador / Fundamentalista ou de um Presbiteriano Liberal / Modernista.

E assim vai.

Uma última coisa. Dois dos cristãos mais conhecidos na segunda metade do século 20 foram C S Lewis e Billy Graham. Lewis era Anglicano e Graham, originalmente, Presbiteriano. Mas ambos alcançaram sucesso entre os Evangélicos (no segundo sentido) com uma proposta que transcende e, por isso ignora, limites denominacionais. Lewis propôs um Cristianismo Básico, Puro e Simples, que ignora as diferenças e foca num núcleo de doutrinas e condutas que todo cristão, na sua forma de entender, deve aceitar. Graham, na prática, fez mais ou menos o mesmo. Nenhum dos dois fundou uma nova denominação — mas os dois recomendaram que os cristãos focassem mais no que os une  do que naquilo que os separa. Até os Católicos seriam considerados como irmãos por esses Cristãos Protestantes “Essencialistas”.

É isso.

Em Salto, 14 de Julho de 2020 (Dia da Queda da Bastilha).

O “Crente Liberal”

[Transcrito do meu blog Chaves.Space]

Convenhamos: pouca gente recorre ao liberalismo teológico se não passa a enfrentar dificuldades para manter sua fé em Deus, ou para manter intatas suas outras crenças religiosas, se e quando essa fé e essas crenças forem interpretadas em um sentido literal (o sentido que parece evidente à primeira vista: se está escrito que a mula de Balaão falou, ou que Josué fez o Sol parar em sua trajetória, então a mula falou e o Sol parou, ora bolas).

Quem acredita que Deus é um ser pessoal, que conta os cabelinhos da cabeça de cada pessoa que existe (ou pelo menos daquelas que acreditam nele), e não deixa que nenhum dos fios caia sem que ele, não só saiba que o fio vai cair, mas queira, decida e determine que caia… – quem acredita nisso em um sentido literal dificilmente vira um crente liberal, pois não tem por que fazer isso.

Quem acredita que Deus, vivendo lá (lá onde?) antes do princípio dos tempos, em que não havia absolutamente nada, a não ser ele, que era eterno, resolveu criar o mundo, e foi criando as coisas, até finalmente criar o homem, a partir de um bonequinho de barro que ele próprio construiu, e, depois, a mulher, a partir de uma costela do homem, e colocou os dois num jardim… — quem acredita nisso em um sentido literal dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.

Quem acredita que o mundo que Deus criou tem, além de nós, humanos, descendentes de Adão e Eva, seres espirituais de vários matizes, anjos bons e anjos caídos (espíritos maus), estes capitaneados por um líder, que é o maior inimigo de Deus (e cujo nome eu nem ouso mencionar); e que esse mundo que nós e esses serem habitamos é composto de, digamos, três pavimentos: um pavimento intermediário, que é o nosso habitat, a Terra, planinha de tudo, um pavimento superior, em cima, o Céu, onde estão os anjos e os demais espíritos bons, e um pavimento inferior, cujo nome eu também nem menciono, onde estão os anjos caídos e os seus líderes; e que, quando a gente morre, a alma da gente, ou algo equivalente (espírito?), vai para o andar de cima ou para o andar de baixo, ou fica planando em algum outro lugar misterioso, um limbo ou um purgatório, esperando o fim do mundo, quando haverá a ressurreição dos corpos que já morreram, que serão reunidos com suas almas (ou espíritos) e serão julgados… —  quem acredita nisso tudo em um sentido literal dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.

Por outro lado, quem, por alguma razão qualquer, que não vem ao caso agora, não consegue acreditar nessas coisas, interpretadas assim literalmente, das duas uma: ou vira ateu de uma vez, ou vira um crente liberal — deixa de ser um crente do tipo conservador ou fundamentalista.

(Parêntese: um fundamentalista é um conservador mais radical, mais irredutível e dogmático em suas crenças; que tem certeza de que está com a verdade; que acha que quem discorda dele está simples e redondamente errado; que está convicto de que o erro não deve ser tolerado por quem não tem dúvida de que está de posse da verdade, como ele próprio; que está certo, portanto, de que quem está de posse da verdade, como ele próprio, não deve congregar na mesma igreja com quem está errado, ou nem mesmo deve conviver com ele fora da igreja, e que, portanto… – fim do parêntese.)

O crente liberal se dispõe de alguma forma a manter a sua fé e suas crenças religiosas, mas interpretá-las de alguma forma não literal, quem sabe em uma linha liberal, e ele faz isso, em geral, para não se sentir um ser dividido, meio esquizofrênico, que, de um lado, quando necessário, usa antibióticos e antidepressivos, se submete a exames de tomografia computadorizada e de ressonância magnética, faz terapia cognitiva, baseada em psicologia positiva, mas que, do outro lado, continua a acreditar, ao mesmo tempo, que está vivendo, aqui nesta Terra plana, uma batalha espiritual em que seres invisíveis batalham por sua alma (ou espírito) e tentam possuí-la(o) e habitar no seu corpo, que é preciso de alguma forma ficar do lado dos espíritos do bem e exorcizar, de alguma maneira, mais ou menos escandalosa, os maus espíritos, e… etc. – não é preciso completar.

A gênese do liberalismo teológico está aí nesse dilema. Quem não tem dúvidas, quem não tem dificuldades com sua fé e com suas crenças religiosas, não sente a mínima atração pelo liberalismo teológico – na verdade, nem compreende como alguém possa se sentir atraído por essa postura teológica que, no seu modo de ver as coisas, não leva a sério a Bíblia, a Palavra infalível e inerrante de Deus, não aceita a Confissão de Fé e os Catecismos de Westminster em sua interpretação “natural” (vale dizer, literal), etc.

Ninguém (ou assim me parecem as coisas) é liberal, ou mesmo ateu, porque é de coração ruim ou cabeça dura. A maioria de nós nasceu em lares de pessoas que creem (ou criam) em Deus e levam (ou levavam) sua religião a sério. Por que alguns continuam a crer sem dificuldade e outros passam a ter dúvidas e, em um dado momento, descobrem que estão tendo dificuldades com sua fé em Deus e suas demais crenças religiosas, enfrentando dúvidas, percebendo que não acreditam mais em coisas que, um tempo atrás, não tinham dificuldade para aceitar? Será predestinação? Será que Deus predestinou alguns de nós para crer e outros para ter dúvidas, para virar liberais, ou, até mesmo, para descrer de uma vez? Mas se é predestinação, e as decisões divinas são irresistíveis e inelutáveis, o que é que se pode fazer?

Acreditar em algo em geral não é algo sobre o que a gente tem total controle. Talvez tenhamos algum controle – o de não nos expormos a ambientes em que nossa fé e nossas crenças são questionadas e, assim, possam vir a correr risco.

Consta (li isso em uma biografia dele que tenho) que Billy Graham era, em seu tempo de juventude, muito amigo de um rapaz que foi estudar em um seminário bem mais liberal do que aquele em que Billy Graham estava estudando. Quando se encontravam, o seu amigo lhe contava o que havia lido, o que seus professores diziam em sala de aula, etc. Um dia seu amigo lhe confessou, em confiança, que estava perdendo a fé. Pelo relato, Billy Graham lhe disse algo assim: Então vamos fazer um trato. Se vamos continuar amigos, você não me conta mais nada sobre suas leituras, sobre suas aulas, sobre suas dúvidas, porque eu não quero perder a minha fé, como você está perdendo a sua. Só conversamos sobre outros assuntos. E, assim, Billy Graham não perdeu a sua fé. Mas há quem ache que isso parece ser uma fuga do livre exame, quiçá da verdade, e, talvez, implique até mesmo alguma desonestidade. Como a de Richard Nixon, que, como também consta, dizia a seus auxiliares para não lhe contar certas coisas porque ele queria poder dizer, sinceramente, que não sabia – queria ter condições de “negabilidade”…

É forçoso reconhecer que o crente liberal (teologicamente falando) também fica meio dividido. Ele não consegue acreditar em um monte de coisas que a maioria dos crentes que não se acha liberal acredita. Estes, os crentes não liberais, os conservadores e fundamentalistas, não raro acham que o crente liberal na realidade é um quinta-coluna, um agente do coisa ruim que só está ali na igreja para semear cizânia e subverter a fé dos demais… Assim, o crente liberal acaba ficando meio deslocado, quando não um pária, dentro da sua própria igreja. Alguns dentre os demais crentes têm até medo de ficarem muito amigos dele – pode pegar mal, os outros podem achar que também eles estão virando liberais… No fundo, para esses crentes não liberais, crente é crente, e “crente liberal” não existe – crente liberal é um descrente que perdeu o nervo e não quer admitir a sua descrença, porque, no fundo, gosta do mundinho da igreja, dos amigos que ali lhe restam, dos hinos que o acompanham desde a infância…

Isso pode levar o crente liberal à seguinte consideração: vale a pena, em um ambiente eclesial predominantemente conservador e mesmo fundamentalista, ser um crente liberal, um crente que se dispõe a encontrar novas interpretações, não literais, para as crenças tradicionais, interpretações que o tornem menos dividido e esquizofrênico, ou é melhor se declarar ateu de uma vez e tirar o time do campo religioso? Ou, pelo menos, procurar uma igreja de liberais, se é que existe uma fora dos limites da PC(USA)?

O crente liberal me faz lembrar de Rudolf Bultmann, na minha opinião o maior teólogo do século 20. Mas um liberal. Apesar de ser o maior teólogo do seu tempo, na igreja de que ele era membro (sem ser pastor) a única coisa que lhe sobrou fazer era tirar a coleta. E ele aceitou fazer isso – dizem que até com certo orgulho. Maior humildade eu nunca vi.

Em Salto, 25 de Janeiro de 2020 (Dia do Aniversário de São Paulo).

Dogma, Doutrina e Opinião na Área da Teologia

O que me motivou a escrever este artigo (na realidade, um artiguete) foi o livro The Genesis of Doctrine, de Alister E. McGrath (1990). Estou começando a escrever o artigo à meia-noite entre o dia 14 e o dia 15.1.2020. McGrath só me motivou. Não é culpado de qualquer besteira que eu possa perpetrar ao escrever o que me veio à teia.

O que eu sempre quis ser na vida, desde que comecei a estudar teologia (cristã, especialmente protestante, especialmente calvinista) em 1964, cinquenta e seis anos atrás, foi ser especialista na área de História da Doutrina. O fato de haver, dentro da igreja cristã, historiadores, como Adolf von Harnack, que denominam a área que me interessa como História do Dogma (Dogmengeschichte, History of Dogma), e historiadores, como Arthur Cushman McGiffert, que denominam a área que me interessa como História do Pensamento Cristão (History of Christian Thought), que é equivalente a História da Opinião Cristã, prova que há necessidade de definir os termos com maior precisão e clareza. Indo do que me parece mais amplo para o que me parece mais estreito, o que me interessa é a História do Pensamento (Opinião), a História da Doutrina ou a História do Dogma dentro do Cristianismo? E no que exatamente consiste a Teologia Cristã, que, por vezes, é classificada em Teologia Histórica (que parece ser a mesma coisa que História da Teologia), Teologia Sistemática (que parece ser a Teologia propriamente dita, sistematizada em um determinado momento da História da Igreja), e Teologia Prática (que parece ser a aplicação da Teologia – Sistemática e Histórica? – a problemas de ordem mais prática relacionados à vida cristã)?

Como afirmei atrás, parece que a expressão História do Pensamento Cristão é a mais ampla das três. Ela inclui a história de tudo que é pensado, dito e registrado no âmbito da História da Igreja Cristã, desde que ela foi fundada – inclusive a discussão sobre quando é, exatamente, que ela, a igreja, e o pensamento que lhe é afeto, tiveram início – como algo claramente diferenciado, digamos, do Judaísmo e do pensamento judaico. Inclui também a questão de quem foi que a fundou, se Jesus, se Pedro ou se Paulo – uma questão que tem sido mais importante para os católicos do que para os ortodoxos e protestantes. De qualquer forma, a expressão História do Pensamento Cristão parece claramente incluir cartas de apóstolos e bispos à suas igrejas, como, no caso de bispos, a Epístola de Clemente de Roma, livros escritos (canônicos, apócrifos e outros), decisões conclaves de bispos e congressos ecumênicos, bulas e encíclicas papais, credos, confissões, etc. Tudo isso me parece ser parte do pensamento cristão – até mesmo aquelas ideias consideradas divergentes (as heresias) das visões predominantes (a ortodoxia).

(Uma curiosidade: verdade, sobre um determinado assunto ou fato, parece poder haver apenas uma, aquela versão que corresponde com a realidade. Mas falsidades ou mentiras parece pode haver em número ilimitado. Da mesma forma, ortodoxia, o ponto de vista correto, parece poder haver apenas uma, enquanto heresias parece poder haver em número ilimitado. Mas provavelmente os relativistas  e os que se dizem pós-modernos, que me parecem ser relativistas, vão discordar de mim, pelo menos quanto ao caráter único da verdade e da ortodoxia.)

 Se a expressão História do Pensamento Cristã é a mais ampla, qual é a expressão menos ampla ou mais restrita? Tudo parece indicar que seja a História do Dogma. No entanto, aqui aparece uma dificuldade: o que é um dogma? Uma resposta simples, que se apresenta de pronto, é que um dogma é uma doutrina que foi oficialmente declarada verdadeira e mandatória por quem de direito dentro da Igreja Cristã. E isso torna difícil discutir os dogmas antes de discutir as doutrinas.

Doutrinas parecem ser parte do pensamento cristão que alcançaram, com base em alguma razão ou consideração, um status especial – embora esse status não seja não fundamental quanto aquele dos dogmas. A questão é qual seria o status especial da doutrina, que um mero pensamento cristão (a opinião de um teólogo, digamos) não tem e que um dogma parece ter em maior grau?

Minha primeira sugestão é que uma doutrina é uma categoria que contém pensamentos, pontos de vista, opiniões acerca de um tema ou tópico que foi considerado suficientemente importante para ser, digamos, individuado, isto é, separado de outros temas ou tópicos de grau de importância equivalente. Assim há a doutrina de Deus (Pai), que pode incluir as doutrinas de menor escopo da natureza de Deus, do conhecimento de Deus (revelação, razão, etc.), da criação, da providência, etc.; há a doutrina do Homem (Antropologia), que pode incluir as doutrinas de menor escopo da origem do homem, do livre arbítrio, da queda, do pecado, do plano redentor de Deus, etc.; há a doutrina de Deus (Filho), que pode incluir as doutrinas de menor escopo da natureza Jesus Cristo, de sua obra redentora, de sua morte, ressurreição e ascensão aos céus, de sua segunda vinda, da regeneração, da graça, da fé e das obras, etc.; há a doutrina de Deus (Espírito), que pode incluir as doutrinas de menor escopo dos dons do Espírito, da santificação, etc.; há a doutrina da igreja; há a doutrina do fim dos tempos; etc.

Parece necessário que uma Teologia Sistemática digna do nome aborde pelo menos essas doutrinas. Algumas Teologias Sistemáticas o fazem, como a de Charles Hodge. Outras vão bem além, como o conjunto das duas Summae de Tomás de Aquino e a Dogmática de Karl Barth. Ainda outras ficam aquém.

O que é importante aqui é o seguinte. Tomemos a doutrina do Conhecimento de Deus. Como é que o ser humano adquire conhecimento acerca da existência de Deus, de sua natureza, de sua vontade, de seus planos e ações, etc? Tudo isso faz parte da doutrina de Deus (Pai), e, dentro dela, da (sub-)doutrina do Conhecimento de Deus. Até aqui estamos falando de categorias. Mas e o conteúdo dessa doutrina? A doutrina de Barth e a de (até certo ponto seu amigo) Emil Brunner diferiram seriamente em relação à questão da chamada Teologia Natural. Se Barth discordava de Brunner, quanto mais não discordaria de Aquino, que escreveu toda uma Summa de teologia natural, a  Summa Contra Gentiles? Diante dessas discordâncias entre teólogos de primeira linha – e nem estou incluindo Friedrich Schleiermacher aqui – qual é a doutrina cristã, ou protestante, ou calvinista do conhecimento de Deus? Se ficarmos no nível dos pontos de vista dos diferentes autores, não temos uma doutrina do conhecimento de Deus: temos várias, e conflitantes entre si.

A solução seria deixar os teólogos isolados de lado e concentrar nas diversas confissões: Westminster, por exemplo. Mas há diversas confissões – e elas não concordam totalmente. Afinal das contas, parece difícil dizer que haja uma doutrina cristã, ou protestante, ou reformada do conhecimento de Deus, mesmo se focarmos as confissões e não os teólogos de per si.

Se é difícil definir a doutrina cristã do conhecimento de Deus (querem algo mais básico do que isso?), mais difícil ainda é falar em dogma cristão do conhecimento de Deus – a menos que se afirme que, para os católicos mais tradicionais, o conhecimento mais do que em duas vias, na verdade em três, defendido por Tomás de Aquino, que fala em conhecimento natural, revelado e místico, seja um dogma.

Em relação a outras doutrinas, há dogmas inquestionáveis (mesmo que não aceitos universalmente). Que Jesus Cristo tenha duas naturezas, uma humana e outra divina, sendo plenamente homem e plenamente Deus, mas que, apesar disso, é uma só pessoa (que é a segunda pessoa da Trindade), e que suas duas naturezas, embora integradas numa só pessoa, não se confundem nem se misturam, parece-me ser o dogma por excelência legado pelo Cristianismo antigo (através dos Concílios de Nicea, em 325, e de Calcedônia, em 451), que nem os reformadores protestantes ousaram questionar. (Na verdade, Michel Serveto foi queimado em Genebra por não aceitar esse dogma que, então, quando ele foi morto, em 27.10.1553, tinha mais de mil anos).

Pelágio foi perseguido por Agostinho, condenado em concílios aconchavados para votar contra ele, teve de fugir para não perder a vida. Na reforma alemã, os luteranos acham que Lutero ganhou o debate com Erasmo. Os calvinistas acham que Armínio também perdeu na Holanda. E, no entanto, hoje, a maior parte dos cristãos está do lado dos supostos perdedores… Qual é a doutrina cristã nessa questão? Faz sentido cogitar de um dogma, apesar do fato de que alguns concílios antigos condenaram Pelágio e aprovaram o ponto de vista de Agostinho?

Toda essa situação recomenda cautela e tolerância. Para os mais arrojados, essa situação aponta para um futuro desconfessionalizado, desortodoxizado, em que há inúmeros pontos de vista e versões ou propostas de doutrina mas nenhuma dela é capaz de heretizar algum, quanto mais cortar a sua cabeça ou queimá-lo na fogueira.

Em Salto, 16 de Janeiro de 2020.

Seminários e Faculdades de Teologia

[Transcrevo esta discussão do meu perfil no Facebook, onde ela teve lugar, envolvendo diversas pessoas, que são mencionadas, principalmente em 19.03.2019, no endereço: https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10156973514907141. Achei que há elementos suficientemente interessantes para justificar sua preservação neste espaço. Transcrevi apenas alguns comentários. Ao transcrever, fiz pequenos ajustes linguísticos nos textos dos quais eu era o autor, não, naturalmente, nos textos que transcrevo, onde mantive as ipsissima verba originais.]

Abaixo, transcrevo, o artigo “Uma Geração Perdida”, de Luiz Felipe Pondé, que apareceu em vários jornais de ontem, 18.3.2019 (a Folha de S. Paulo, a Gazeta do Povo, O Popular, etc.), por indicação de Volney Faustini e com ajuda de Júlio César Silveira. O primeiro livro mencionado no artigo do Pondé (The Coddling of the American Mind [A Mimação da Mente Americana]) está à venda na Amazon Books (em forma impressa e em e-book). Ele tem um subtítulo que Pondé não registra: How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure [Como Boas Intenções e Más Ideias Estão Preparando uma Geração para o Fracasso].

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Como preâmbulo meu (não do Pondé), quero chamar a atenção de pessoas envolvidas com Seminários e Faculdades de Teologia. O texto (do livro e do Pondé) é relevante a esse respeito.

SEMINÁRIOS, na minha forma de entender, deveriam ser instituições educacionais / doutrinacionais (na prática, mais do segundo do que do primeiro tipo) primariamente destinadas a preparar pessoas para assimilar as ideias e o “ethos” de uma determinada igreja ou denominação, com o fito de disseminá-los ou transmiti-los a quem quer que seja que possa ter interesse no assunto. Como diz o Pondé, apud os autores do livro, “ao invés de [pretender] formar [mentes] livres . . . [Seminários deveriam assumir as doutrinas e o ‘ethos’ de] sua denominação religiosa [e admitir que querem incuti-los nos alunos]”.

FACULDADES DE TEOLOGIA, por sua vez, e ainda na minha forma de entender, se quiserem ser reconhecidas como instituições de ensino superior a par com as não confessionais, deveriam não objetivar “fazer a cabeça” e a “dirigir a conduta” dos seus alunos, podendo até apresentar os credos e as confissões de uma determinada igreja, bem como o pensamento de alguns autores, mas sempre comparando-os com os das demais credos, confissões e autores, mas sem esperar, e muito menos exigir, de seus alunos, e menos ainda de seus professores, que aceitem e adotem esses credos e essas confissões e concordem com o pensamento dos fundadores do ideário da igreja ou da denominação (Lutero, Calvino ou quem quer que seja).

Terminando meu preâmbulo, e defendendo uma posição que pode parecer estranha aos meus amigos da IPIB [Igreja Presbiteriana Independente do Brasil], acho que a IPB [Igreja Presbiteriana do Brasil] é mais coerente do que a IPIB nesse aspecto…

[Em parêntese, esclareço que nasci e cresci na IPB, mas há dez anos, mais ou menos, sou membro da IPIB, depois de um período de quase quarenta anos em que não fui membro de nenhuma igreja. Estudei em Seminário da IPB e da Presbyterian Church (US), bem como em Faculdade de Teologia da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil). Trabalhar em instituições do tipo mencionado só o fiz, durante três anos (2014-2017) na Faculdade de Teologia de São Paulo da IPIB, conhecida como FATIPI, da qual pedi demissão por me sentir constrangido a não abordar determinadas questões da forma que me pareceu correta necessária. Além disso, trabalhei durante cerca de 45 anos (1972 a 2016) em Instituições de Ensino Superior, públicas e confessionais, nos Estados Unidos, primeiro, depois aqui no Brasil. Aqui fiquei por 32 anos e meio na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Nessas instituições educacionais nunca me senti constrangido, nem a dizer ou a não dizer determinadas coisas nem a abordar ou a não abordar determinados assuntos — algo que, no meu entender, é o que deve se esperar em instituições educacionais, embora o Politicamente Correto venha fazendo estragos consideráveis nessa visão, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, e em outros países também.]

A IPB não pretende transformar os seus Seminários em Faculdade de Teologia, nem aspira à chancela do MEC (Ministério da Educação) e da CAPES (Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior), esta vinculada ao MEC, para esses Seminários, porque admitidamente quer usar os Seminários para formar a cabeça e dirigir a conduta dos seus alunos. Simplesmente isso. Age de acordo com isso e nisso, a meu ver, é coerente.

A IPIB, no entanto, transformou os diversos Seminários que tinha em uma Faculdade de Teologia, a FATIPI, tendo para tanto obtido a chancela do MEC e da CAPES, dispondo-se, para tanto, a aceitar alunos de  fora da denominação (de outras denominações ou mesmo de outras religiões e, parece-me, até ateus), mas não reconhece, nem para seus alunos, nem para seus professores, a plena liberdade de adotar pontos de vista e defender condutas que consideram mais bem fundamentados do que os pontos de vista e as condutas “oficiais” (reafirmados no Modelo de Estatuto para as Igrejas Locais que está sendo votado nestes dias pela Catedral Evangélica de São Paulo, que é a igreja original, e a principal igreja, da denominação). Assim, a IPIB acaba fazendo de sua Faculdade de Teologia uma mistura híbrida e incoerente de Seminário e Instituição Acadêmica livre. (Digo isso com intenção construtiva: acho que a instituição deve ser uma coisa ou outra, não tentar ser as duas. Acaba não dando certo, pois cria expectativas que não tem condições de manter.)

Dirijo esses comentários aos meus amigos Elizeu R. Cremm, Reginaldo von Zuben, Clayton Leal e Volney Faustini (este tendo sido quem chamou minha atenção para o artigo do Pondé, transcrito na sequência). O livro The Coddling of the American Mind eu comprei assim que ele foi publicado e li em seguida à compra.

Dirijo os comentários também aos meus amigos estudantes de teologia, em especial a Carlos Eduardo Martins, e ao meu sobrinho, professor de Teologia, Vitor Chaves de Souza. E faço um tag para minha mulher, Paloma Epprecht Machado Campos Chaves, também interessada no assunto.

E espero que o novo Estatuto da Catedral como igreja local não me constranja a sair da igreja da mesma forma que me vi constrangido a sair da FATIPI. Gosto de dizer as coisas claramente, porque não vejo nenhum mérito em manter as coisas sob uma cortina de fumaça.

É isso. Ao Pondé.

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“Uma Geração Perdida”

O mercado de trabalho que se prepare porque as universidades estão gestando uma geração mimimi raivosa, que não vai prestar para muita coisa. Esse diagnóstico é feito por especialistas americanos sobre universidades americanas. Mas, como toda moda americana pega, ela já chegou aqui.

O fetiche com relação aos jovens serem “mais evoluídos” continua em ação. Um pouco pela vaidade dos pais, um pouco pelo marketing das escolas e universidades, um pouco porque pessoas mais velhas querem fazer sexo com esses jovens, e o blábláblá de que são legais funciona melhor quando você quer levar um deles ou uma delas para a cama.

Greg Lukianoff, psicólogo cognitivista, e Jonathan Haidt, psicólogo social, escreveram um livro em 2018 que está impactando não só o mundo acadêmico como o mundo corporativo. “The Coddling of the American Mind” (Mimando a mente americana, Penguin Press) é de urgente leitura para quem trabalha com jovens. Mas, se fôssemos medir o nível de leitura de quem trabalha em escolas e universidades, provavelmente não passariam de 10% aqueles que ainda têm tesão pelo estudo.

“Coddling” significa mimar. A realidade desse processo já foi apontada, de formas diversas, por especialistas como Jean Twenge e Frank Furedi em livros recentes. Ela com o “iGen”(traduzido no Brasil) em 2017, ele com “What’s Happened to the University?” (sem tradução por aqui) em 2018.

A obra descreve casos recentes e escandalosos de universidades americanas que mergulharam no caos e na violência estudantil de esquerda a partir de emails nada especiais, enviados por seus professores, alunos ou por membros da administração.

A pesquisa também relata provocações de membros da direita agressiva off-campus e o comportamento canalha de colegas professores que, apesar de no particular se solidarizarem com os colegas levados à fogueira por esse alunos furiosos, no público juram pureza ideológica a favor dessas mesmas fogueiras (universidades são um dos espaços onde canalhas crescem aos montes). Os autores se referem a esse fenômeno como “caça às bruxas” — quem já viu ou viveu esse tipo de ataque por parte de alunos e redes sociais sabe o que é.

As universidades americanas estão se transformando em tribunais da inquisição, muitas vezes liderados por professores e justificados por uma teoria conhecida como “interseccionalidade”. Segundo esta teoria, existem dois grupos básicos no mundo, os opressores e os oprimidos. Mas o gradiente é móvel: ele vai do mais opressor ao mais oprimido.

Na ponta do opressor, homens brancos, heterossexuais, bem-sucedidos. Na ponta do mais oprimido, encontramos um “mau infinito”: talvez uma mulher, negra, lésbica, pobre. Bruce Bawer, crítico literário americano, já havia apontado esse “mau infinito” na sua obra “Victims’ Revolution”, em 2012.

Um traço dessa tese é que, mesmo que o “agressor” não tenha tido a intenção de cometer a “agressão” de que o acusam, se a “vítima” se sente agredida, ele [o “agressor”] deve ser demitido, execrado em praça pública,
condenado ao ostracismo. A tendência a desconvidar pessoas para conferências em universidades nasce dessa tese.

Um dos riscos desse fenômeno é que os alunos são estimulados a recusar o contato com questões das quais eles podem discordar, mas que deveriam ser estimulados a refletir e debater. As universidades mimam esses alunos, criando pequenos Torquemadas ofendidos.

Na parte dedicada a investigar as causas que nos levaram a essa situação, os autores elencam: polarização política, pais paranoicos superprotetores, obsessão por um mundo mais justo, ansiedade, suicídio e depressão em crescimento, o declínio do brincar em espaços abertos, mídias sociais e a burocracia para construção de um mundo cada vez mais “seguro psiquicamente” nas escolas e universidades. Você reconhece algumas dessas causas perto de você?

Segundo os autores, a única solução será as universidades que quiserem apoiar um viés político claro se tornarem instituições como as religiosas, que pregam ao invés de formar adultos livres, assim como faculdades de teologia que assumem sua denominação religiosa. E aquelas que quiserem formar jovens que pensem o mundo livremente devem abandonar o projeto de confundir filosofia e ciências humanas com uma igreja a favor dos oprimidos.

Pensando nas universidades que conheço aqui no Brasil, só nos restarão as que optam por ser igrejas que se acham salvadoras do mundo.

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Comentários:

Volney Faustini
The Coddling está na minha lista de leitura – mas acompanho o autor e suas falas. Tem uma que recomendo em especial (link abaixo) que, apesar de longa, desnuda um problema que é gravíssimo: o índice de ferimentos auto-afligidos em crescimento entre as meninas. Atenção esse trecho do vídeo já está engatilhado no 1:10 mais ou menos. Mas quem quiser assistir de cabo a rabo basta ir para a introdução.

Eduardo Chaves
O link que vc dá já começa em 1:10… Como eu vou para a Introdução?

Volney Faustini
Eduardo Chaves leve a barrinha para o início da apresentação, ou clicando na marcação zero da própria barra.

Eduardo Chaves
Achei: https://www.youtube.com/watch?v=FG6HbWw2RF4

Eduardo Chaves
Volney Faustini: Sou fã do Jonathan Haidt, que está ligado à Psicologia Positiva de Martin Seligman. Tenho inúmeros livros de Haidt e quase tudo que Seligman publicou em livro.

Volney Faustini
Ele – junto com Jordan Peterson (como autores) – fazem um grupo ser extremamente ativo nas provocações pela internet. Esse grupo participa do que é apelidado de Intellectual Dark Web.

Eduardo Chaves
Gosto de seu livro (de Haidt) The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion. A Amazon publicou um pedaço desse livro (por 0,99 US Cents) com o título Can’t We All Disagree More Constructively?

Eduardo Chaves
Há também um Resumo e Análise do Coddling, de 53 páginas, por 2.99 USD, com o título de Summary & Analysis of The Coddling of the American Mind: How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure: A Guide to the Book, by Greg Lukianoff and Jonathan Haidt. É útil.

Carlos Eduardo Martins
Carlos Eduardo Martins Vou acrescentar o The Coddling of the American Mind à minha lista de leitura. Muito obrigado por ter me marcado nesse post, mestre!

Paulo Amorim
Ontem, no Pânico da Jovem Pan, Pondé disse algo que corresponde ao pensamento cristão milenar da maldade humana. Ele entende que ao limitar e proibir as pessoas, principalmente os jovens e crianças, de expor suas maldades e seus vícios, criamos uma geração doente e desconectada da realidade. Achei bem interessante ele apontar para esse caminho. Pena que os presentes no programa não fizeram desse tópico, um assunto mais aprofundado e preferiram falar do medo que os homens hoje possui das mulheres.

Volney Faustini
Eu ouvi um trecho do Pondé falando e gostei muito. Acima mencionei a Intellectual Dark Web nos Estados Unidos (devo falar sobre ela num de meus próximos videos) – mas são intelectuais de diferentes linhas de fé e crença, pegos pela realidade da maldade humana. Isso os tem feito questionar a cultura, a tendência dominante e reinante, principalmente nos círculos acadêmicos onde impera o pensamento pós moderno e de esquerda.

Eduardo Chaves
Mudando um pouquinho de assunto… O livro do Alain de Botton que o Rev. Valdinei Ferreira [pastor titular da Catedral] citou ontem no sermão é, em Inglês, Religion for Atheists: A Non-believer’s Guide to the Uses of Religion. Pelo jeito traduziram para o Português como Ateísmo 2.0.

Eduardo Chaves
Corrijo-me. O título em Português não é Ateísmo 2.0, mas Religião para Ateus.

Vitor Chaves de Souza
Antes tarde do que nunca. Comprei o livro do Botton indicado acima neste fim de semana e iniciei a leitura 🙂

Elizeu R. Cremm
Meu amigo e “ovelha” Eduardo Chaves! Concordo com o que você registrou sobre a FATIPI e IPB. Espero não ser a partir dessa minha concordância com você, discriminado na igreja (Catedral) nem na denominação. Li também as ponderações do Pondé (sem trocadilho) kkkk…

Eduardo Chaves
Espero que não, mesmo… 🙂

Transcrito aqui neste blog em São Paulo, 9 de Setembro de 2019 — cerca de seis meses depois da publicação do artigo do Pondé e da discussão no Facebook.

De Fins e Origens

[Este artigo foi publicado primeiro (em 23/08/2019) em meu blog Chaves Space, no endereço https://chaves.space/2019/08/23/de-fins-e-origens/. Republico-o aqui pelas implicações que tem para a discussão de questões teológicas.]

Parece que, à medida que a vida avança, e o que resta dela se reduz, a gente começa a se importar mais com questões perenes e essenciais, e menos com as coisas fugidias, acessórias, do dia-a-dia.

Mais e mais tenho concentrado minhas leituras e reflexões em quatro autores que foram importantes em minha vida em diferentes momentos: David Hume, Bertrand Russell, Karl Popper e Ayn Rand.

Neste artiguete quero me referir a dois desses autores: Russell e Popper. O que vou fizer eu encontrei em livros deles pelos quais passei os olhos hoje.

Primeiro, Russell.

Numa passagem do seu livro The Scientific Outlook, Russell afirma que há uma diferença importante entre sabedoria e conhecimento — em especial o chamado “conhecimento científico”. A sabedoria tem que ver com possuir uma concepção clara e defensável dos fins da vida, de para onde devemos caminhar. A ciência não nos ajuda a conquistar essa sabedoria. Ela, quando muito, pode nos ajudar a chegar lá, uma vez que tenhamos definido para onde devemos ir. A ciência lida com meios, não com fins, com fatos, não com valores. Assim, ela pode nos ajudar a “vencer as urzes da jornada”, para usar a bela expressão de Mário Pederneiras (no soneto “Suave Caminho”) — mas ela não consegue nos fixar fins, objetivos, metas.

A filosofia e a literatura, por outro lado, transitam bem melhor no reino dos fins, em que o que impera é a sabedoria, não o conhecimento.

Segundo, Popper.

Num artigo sobre a liberdade humana, ao qual ele deu o título de “Indeterminism is not Enough”, ele afirma que nem a ciência, nem a filosofia, nem nenhuma outra disciplina racional, vão conseguir dar respostas convincentes ao que ele chama de alguns “milagres” (quatro) em meio aos quais vivemos.

  • O primeiro é o de como surgiu o universo físico ou material.
  • O segundo é o de como surgiu a vida nesse universo.
  • O terceiro é o de como surgiu a autoconsciência em alguns seres viventes.
  • O quarto é o de como surgiram, entre os seres autoconscientes, a razão e a linguagem que tornaram possível o aparecimento da espécie homo sapiens.

Provavelmente teremos de reivindicar total agnosticismo em relação a essas questões, que nem a filosofia, nem muito menos a ciência, pode responder.

Por fim, concluo eu, teremos de tentar, modesta e humildemente, definir fins para a nossa vida, sem termos conhecimento das origens – do mundo, da vida, da mente, da mente especificamente humana e da linguagem conceitual da qual ela, segundo tudo indica, é inseparável.

Kant uma vez disse que as grandes questões que devem preocupar o ser humano são:

  • Quem sou?
  • De onde vim?
  • Para onde vou?
  • Como é que eu sei?

A resposta a última pergunta é: “Não sabemos” — e ela implica a mesma resposta às demais perguntas — exceto à terceira, se esta for formulada em uma dimensão estritamente humana, em que cada um de nós define os seus próprios fins na vida, à luz dos valores que lhe dão algum sentido.

Em Salto, 23 de Agosto de 2019 (3 horas da manhã), republicado neste blog em São Paulo, 9 de Setembro de 2019