O Liberalismo Teológico – Uma Nota

O Liberalismo Teológico não é um conjunto de doutrinas e crenças que todo adepto da Teologia Liberal precisa aceitar para ser considerado um liberal bona fide. Nele não existem credos e confissões que todo liberal precisa aceitar para poder se considerar um liberal. Não existe ortodoxia. Não existem Tribunais de Inquisição. Consequentemente, não existem heresias, nem tampouco hereges. Não existe perseguição nem, muito menos, expurgo dos que ousam pensar, ou conduzir sua vida, de forma diferente. E não existem fogueiras onde queimar os hereges, porque inexiste essa categoria de pessoas, porque também inexiste a categoria de liberais ortodoxos, uma verdadeira contradição de termos.

O Liberalismo Teológico é um jeito e uma forma de entender o Cristianismo, de relacionar o Cristianismo com o mundo em que ele está inserido, de ler e interpretar tanto a Bíblia como a Tradição, e de fazer Teologia. O Liberalismo Teológico procura identificar e preservar a essência da herança recebida, e está disposto a acomodar o restante às novas realidades em que o Cristianismo precisa se situar.

Quem não aceita esses postulados geralmente não vem para o Liberalismo Teológico. Mas se, por absurdo, quiser vir, virá, será bem-vindo, e ficará ali até quando quiser sair (se isso acontecer), porque ninguém ficará incomodado com ele, nem, muito menos, tentará impedi-lo de pensar como pensa, e agir como acredita que deve, e, muito menos, tentará puni-lo por pensar assim.

Na Igreja Presbiteriana Americana, quando os liberais teológicos, depois de sofrer perseguição e expurgos (felizmente não chegou a haver fogueiras na Inquisição de lá), alcançaram a maioria, eles não perseguiram nem colocaram para fora da igreja fundamentalistas e conservadores como J. Gresham Machen e John Gerstner. Estes ficaram lá até o momento em que eles próprios resolveram sair.

O movimento conhecido como “Liberalismo Teológico”, que existe desde os primórdios do Cristianismo, não tem esse nome por acaso. Seus adeptos prezam a liberdade de pensar e de agir, e, por conseguinte, de ser cristãos como acham que devem. E não negam esse direito para ninguém.

Se Paulo de Tarso houvesse sido obrigado a ser cristão judaizante, como Pedro e Tiago, não haveria Cristianismo, hoje. Ou o Cristianismo não seria nada mais do que uma variante do Judaísmo Ortodoxo, só que com Cristo. Paulo, se a gente descontar o próprio Jesus de Nazaré, foi o primeiro liberal teológico, à sua moda (como são todos os liberais teológicos, do seu jeito, “their way”). Ele acomodou o Cristianismo Judaizante de uma Palestina Judaica à realidade do mundo greco-romano pluralista, inclusive no tocante à religião, onde não havia nem judeu, nem grego, nem romano: havia apenas gente.

[Esta Nota representa a essência de um artigo que estou escrevendo sobre “A FATIPI e o Liberalismo Teológico”, a propósito de um podcast disponível no Youtube e no Spotify. Esperava publicar o artigo logo depois que o podcast foi divulgado, mas ele cresceu e está virando um ensaio, já com 60 páginas, sobre a Teologia Liberal. A divulgação desta “essência” do artigo tira um pouco da pressão que eu próprio coloquei sobre mim para publicar o ensaio, mesmo que meio inacabado…]

[Eduardo Chaves, 2.6.2023]

Hinos e Louvores: A Música na Igreja

[NOTA 1:

Artiguete que publiquei no Facebook em 13.4.23]

Eu basicamente nasci na Igreja. Meu pai era pastor presbiteriano, e, quando eu era pequeno, ele era um daqueles pastores missionários, desbravadores de campo, que sempre estava indo mais longe, para fundar / implantar / plantar (como se diz hoje) uma igreja presbiteriana onde não havia nenhuma. Fundou as igrejas de Lucélia, onde eu nasci, de Dracena, e várias outras no Oeste Paulista e no Norte do Paraná (Marialva, Maringá, Campo Mourão, etc.).

Meu pai tinha uma veia musical. Toda a família dele tinha. Tinha excelente ouvido, boa voz e tocava qualquer instrumento que pegasse, mas preferia o harmônio (órgão de fole), a sanfona (acordeão), o violão, a flauta transversal. E era um bom poeta. Em todo lugar por onde passava deixava uma igreja com um coral. Nessas igrejas fundadas por ele, ele era, além de pastor, organista e regente do coral (que ele criava assim que havia um número bom de membros com voz e afinação passáveis). Ele tinha um excelente ouvido. Todos esses instrumentos que mencionei ele tocava de ouvido. Mas lia música bem, quando necessário. Transpunha hinos de um tom para outro com naturalidade, quando o tom original lhe parecia muito alto ou muito baixo. Ele era um barítono, mas alcançava bem a melodia dos tenores. E adorava duetar. Nisso tudo puxei a ele.

Embora ele fosse muito preocupado com doutrina — a chamada recta doctrina — e tenha passado essa preocupação para mim e para os membros das igrejas que ele fundou, para mim igreja é algo que está intrinsecamente ligado com comunhão, com canto, e, portanto, com a música. Eu já fui organista, também toquei sanfona, violão, gaita, cantei em tudo que é tipo de coral e conjunto, e montei um octeto que, por um tempo, regi, e que cantou em vários lugares desse Brasil: Curitiba, Florianópolis, e até em Brasília (que, então, em 1963, tinha três anos de vida…)

Hoje não toco mais nenhum instrumento, mas ainda gosto de cantar — e, naturalmente, de ouvir música (boa música, que tem letra significativa e melodia agradável e envolvente, que fica na cabeça da gente horas e mesmo dias depois de ouvi-la).

Por que digo tudo isso?

Digo isso porque eu fiquei fora da igreja por uns quarenta anos (1970 a 2010), e, quando voltei, a música tinha mudado o seu papel na igreja. Hoje, na maioria das igrejas, o canto congregacional de hinos constantes de um hinário, com entremeios do canto coral, a quatro vozes, em ambos os casos com acompanhamento de harmônio, órgão ou (mais raramente) piano, cedeu lugar ao canto grupal e performático, chamado louvor, executado por pequeno grupo de cantores e tocadores de instrumentos (guitarra, baixo e bateria, às vezes com a ajuda de um teclado eletrônico) que se postam na frente da igreja, olhando para os congregantes.

Antes, o importante, era a música congregacional, focada nos hinos do hinário, que todo mundo cantava e, não raro, sabia de cor. É verdade que, quando a igreja tinha um coral, este cantava um ou dois hinos que o resto da congregação só ouvia. E, às vezes, havia também um dueto ou um solo. Mas o importante era o canto congregacional. E meu pai gostava de hinos animados, como ele dizia, cantados com vida e alegria. E, se ele não estava tocando o harmônio ou órgão, ele regia a congregação a partir do púlpito, e, como tinha uma voz muito boa e forte, “puxava” o canto congregacional, para que ficasse vivo e animado e não se tornasse mole, arrastado. E este canto congregacional era importante para os crentes, que, às vezes, pediam ao pastor que inserisse na liturgia algum hino favorito deles. O hinário sempre foi o Salmos e Hinos, na minha infância e juventude (embora, quando havia coral, este cantasse muitos hinos do Cantor Cristão também – meu pai tinha uma certa queda pelos hinos desse hinário). Embora as letras dos hinos de vez em quando beirassem o ininteligível (“Se da vida as vagas procelosas são”, por exemplo), a música em geral era boa e todo mundo tinha o seu hinário próprio (não existia projeção da letra em um telão na época) e, assim, aos poucos conseguia acompanhar o hino: na terceira ou quarta estrofe, mesmo de um hino meio desconhecido, todo mundo estava cantando junto em uníssono (com alguns mais ousados fazendo uma segunda, terceira ou quarta voz — contralto, baixo, ou tenor).

Hoje tudo isso está mudado nas igrejas presbiterianas, exceto em algumas igrejas mais tradicionais. Toda igreja, por menor que seja, tem o seu grupo de louvor, em que duas ou três pessoas cantam, alguém toca violão ou guitarra, outro toca baixo, mais um toca teclado, e ainda outro se ocupa da bateria.

Eu, confesso, não me acostumei isso. E não acho que essa mudança tenha sido para melhor. E por várias razões.

Primeiro, porque essa iniciativa fez com que o cantar na igreja fosse delegado (terceirizado) para o grupo de louvor. É este que canta. Os demais membros da igreja apenas ouvem. Quando acontece de haver um hino que eles conheçam, por ser mais da velha guarda, alguns na congregação tentam acompanhar — e, como a letra é projetada, às vezes conseguem. Ninguém mais carrega o hinário para a igreja (nem a Bíblia, pois os trechos bíblicos também são projetados ou, na pior das hipóteses, acompanhados no telefone, cada um lendo a sua tradução preferida da Bíblia). Mas, de resto, a congregação fica calada, mesmo quando — absurdo dos absurdos — se pede que a congregação se levante para ouvir os próximos dois hinos cantados pelo grupo de louvor… Levantar para cantar melhor, de modo mais vivo ou animado, um hino de ritmo rápido (como “Deus dos Antigos”, “Avante, Avante, ó Crentes”, por exemplo), até é compreensível, mas levantar para ouvir o conjunto cantar me parece sem sentido. Se o hino é meio animadinho, o chefe do grupo de louvor até pede que a congregação bata palmas no ritmo — e algumas pessoas mais ousadas, geralmente mulheres, gesticulam e dão uma gingadinha. (É raro ver um homem rebolando um pouco, mas, hoje, acontece). No todo, a participação da congregação na parte musical do culto foi reduzida a quase nada além de ver e ouvir (“participar passivamente” – algo que soa uma contradição de termos).

Segundo, porque o grupo de louvor depende da guitarra elétrica, do baixo, e da bateria, as músicas todas têm um ritmo parecido, meio roqueiro, com uma toada que favorece os músicos e dá um papel de destaque ao baterista e àqueles que, no conjunto, têm voz melhor e mais forte.

Terceiro, a letra dos hinos (não é costume mais designá-los assim: hoje se fala “dos louvores”), em geral, é sofrível — quando não horrível. Raramente os versos são bem construídos, com o mesmo número de sílabas, com rimas decentes, etc. Por vezes, a letra não passa de uma passagem bíblica, não versificada, sem rimas, e repetida ad nauseam (já contei doze repetições seguidas da mesma frase – DOZE!). Alguns trechos, que funcionam mais ou menos como refrão, às vezes chegam a ser repetidos mais de vinte vezes ao longo do louvor inteiro, uma vez depois da outra, cantando a mesma coisa, com um arremate de no mínimo seis vezes… Quando você pensa que está terminando, volta-se a cantar ainda uma vez. Qual o sentido dessa repetição toda??? E pelo menos nós, os mais velhos, temos, por vezes, de ficar em pé, com as pernas doendo, ouvindo a repetição infindável de um trecho da letra.

Quarto, há a bendita gesticulação — a mímica. Se se fala de Deus, levantam-se os braços (quem está com microfone de mão só levanta um braço); se de bênção, esticam-se as mãos, com as palmas viradas para cima; às vezes se bate no peito ou se bate palmas… É triste… Em todo lugar é a mesma coisa. 

Chegou a hora de ser mais criativo na música cantada na igreja. Não quero apenas voltar aos hinos tradicionais, que todos sabíamos de cor (embora goste muito deles até hoje). Mas gostaria de ver o envolvimento da congregação cantando animada, alegre, com o vigor de quem está vivo e bem vivo — um hino cuja letra possa ser ouvida e entendida a uma quadra de distância (a letra, não o repique do baixo e da bateria. O sermão, que ocupa de 20 a 30 minutos, já é unidirecional: a congregação fica passiva. As orações são feitas por quem está lá na frente: a congregação continua passiva. Não se usa mais pedir que um irmão ou uma irmã faça uma oração voluntária, de improviso… Nem se abre a possibilidade de que quem quiser orar em voz alta que o faça, fatalmente acompanhado de vários améns (algo que os pastores de hoje consideram arriscado). Nada disso acontece mais nas igrejas presbiterianas. Tirando a coleta, a música era a única hora em que a congregação participava, se envolvia no culto. O louvor era dela, da congregação, não do coral, nem de um grupo rotulado de louvor. (O coral da minha igreja em Santo André chegou a ter noventa vozes, nada que se compare com as três ou quatro vozes dos grupos de louvor de hoje). Agora, nem o papel de louvar a congregação tem mais. Daqui a pouco a Santa Ceia será um lanchinho que o pastor e os presbíteros tomam lá na frente enquanto a congregação assiste… (Na Igreja Católica o vinho já é só o padre oficiante que toma… Afinal de contas, lá é vinho mesmo, e vinho custa caro para oferecer a todo mundo…).

Na minha modestíssima opinião há que se fazer alguma coisa para voltar a envolver a congregação no culto, e a música congregacional, que todos, ou a maioria dos membros, conhecem bem e gosta de cantar é o jeito mais fácil de fazer isso. Uma iniciativa nesse sentido reduzirá, por certo, o papel dos grupos de louvor, que passará a funcionar apenas como um mini-coral, cantando um, no máximo dois hinos ao longo do culto — não sete ou oito, dos quais quatro ou cinco de enfiada, no início do culto, com a congregação em pé… – um martírio para nós ao redor dos oitenta.

Sei que vou ouvir críticas e elogios, as críticas vindo até mesmo aqui de dentro de minha própria casa, mas faz parte…

EC, 13.4.23

[NOTA 2:

O artiguete recebeu até hoje, 3.5.23, 43 comentários, a maioria favorável.

Vide:

https://web.facebook.com/eduardo.chaves/posts/pfbid0GZYkjeTH6tqyt91Lmdux1LN6fzwXQRgicF95fvWSLa6ZVRR1Bn3a9CYjBDgQqvaHl   ]

[NOTA 3:

A seguir, comentário que escrevi em 30.4.2023, em resposta a um comentário feito por uma amiga minha, colocado em uma foto que postei do Grupo de Louvor da igreja que frequento, a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, com minha mulher cantando no grupo. O material pode ser visto em minha conta “chaves” no FB, no seguinte endereço:
https://web.facebook.com/chaves/posts/pfbid0pKNnJQRGDXuhhifBqMJH4ma6krAesVJJVGWcWUCLJhhhFmQvxkp91m4Mbz1GQg4Nl  ]

Comentário:

“Na sua Igreja tem Grupo de Louvor? Um dia desses você fez uma crítica severa aos Grupos de Louvor das Igrejas.🤔🤔”

Minha Resposta

SIM. A Igreja que eu frequento (ela não é minha, em nenhum sentido em que essa expressão possa ser legitimamente usada — eu não faço parte nem do rol de membros dela, só a frequento regularmente) tem um Grupo de Louvor, do qual a Paloma Epprecht Machado Campos Chaves, minha mulher, faz parte, de um certo tempo para cá.

Aproveito sua pergunta para esclarecer que meu artiguete, em estilo de comentário, não dirigiu suas críticas a “Grupos de Louvor”, em si, como categoria, nem a nenhum Grupo de Louvor específico, muito menos ainda ao Grupo de Louvor desta igreja que eu frequento, composto por pessoas, todas elas muito queridas, dedicadas, e esforçadas, que são respeitadas e admiradas por mim.

Minha crítica foi genérica e teve três pontos principais:

1. Por causa da disseminação generalizada dos Grupos de Louvor nas igrejas, que são grupos que cantam lá na frente da igreja, olhando para os congregantes, acompanhados por instrumentos especializados (guitarra, baixo, bateria, por vezes teclado eletrônico), e cujo repertório geralmente consiste de músicas de um gênero específico chamado louvor (distinto de hino de hinário) — por causa disso, repito, o canto congregacional, em que toda a igreja cantava hinos que quase todos os congregantes conheciam (às vezes até sabiam de cor), acompanhados geralmente de um órgão ou harmônio, ESTÁ DESAPARECENDO, SIMPLESMENTE DEIXANDO DE EXISTIR — o que eu acho uma lástima. Os congregantes, hoje, não cantam mais na igreja, em parte: (a) porque não conhecem os louvores; (b) porque não gostam do estilo das músicas; ou, (c) simplesmente, porque acham que cantar na igreja, como pregar do púlpito, é algo especializado, que é delegado (terceirizado) a um grupo específico que a gente assiste, às vezes, não sei por que, em pé. (Cantar em pé um hino animado eu até entendo, mas ouvir em pé, como se ouvindo o Hino Nacional sem cantar, eu acho que não faz muito sentido.

2. Embora goste de algumas músicas consideradas louvor, da maioria eu não gosto. Não gosto da melodia (música) porque ela em geral tem um ritmo predeterminado pelos instrumentos usados (em especial as guitarras, os baixos e a bateria). Há louvor em ritmo de valsa, balada, guarânia, mpb, etc., raramente no ritmo mais cadenciado que me acostumei a encontrar nos hinos. E não gosto da letra, porque é repetitiva em excesso, sem métrica cuidadosa, com pés quebrados, por assim dizer, sem rima bem feita, etc. Às vezes a letra é apenas um versículo bíblico (ou mais de um) cantado na forma bíblica original, sem tratamento melódico e/ou poético mais cuidadoso.

3. Não gosto, por fim, do ambiente que geralmente acompanha os louvores, com gestos, palmas e a inevitável gingadinha que o tipo de música, os instrumentos e as palmas induzem. Não acho que o culto deva ser um momento triste, de modo algum, mas acho que deva ter uma certa solenidade que parece incompatível com as características que descrevi acima.

REPITO: Minha crítica foi à substituição regular do canto congregacional convencional pelo louvor. Não sou contra os Grupos de Louvor, em si, nem ao seu uso, uma vez ou outra, muito menos aos que deles participam com muita dedicação e esforço. Mas não me sinto muito em casa em igrejas em que só há Grupos de Louvor, não havendo canto congregacional em que todos cantam hinos conhecidos de todos, e em que não há nem mesmo canto coral, com harmonia em quatro vozes, com acompanhamento por órgão, ou harmônio ou piano.

Sei que parte da minha crítica é resultante de minha idade. Farei 80 anos em 7 de Setembro. E às vezes me sinto, no culto, como se estivesse em festinha de adolescente, ou, pior, em concerto de rock (que só conheço por ver na TV).

É isso. Obrigado por provocar este meu esclarecimento. Um abraço para você e para a querida família de que você faz parte.

PS: Creio que sua sogra concorde comigo, pelo menos em parte… Diga-lhe que mando um beijo para ela, mesmo que ela não concorde comigo em nada… 🙂

Em Salto, 30.4.23

A Essência do Cristianismo?

Ontem à noite (2.10.2022), noite da apuração da eleição presidencial em seu primeiro turno, eu ouvi um sermão, proferido pelo Rev. Sérgio Oliveira, de Pilar do Sul. Ele trabalha na Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB), atualmente no Presbitério de Sorocaba, residindo em Pilar do Sul. Ele pregou na IPI de Salto porque o pastor havia sofrido uma cirurgia, dois dias antes, e estava acamado. O texto usado para o sermão foi pequeno: os quatro primeiros versículos do capítulo 2 do livro de Atos dos Apóstolos, que abre a narrativa sobre o Dia de Pentecostes. Dizem eles, na [NTLH]:

1. Quando chegou o dia de Pentecostes, todos os seguidores de Jesus estavam reunidos no mesmo lugar.

2. De repente, veio do céu um barulho que parecia o de um vento soprando muito forte e esse barulho encheu toda a casa onde estavam sentados.

3. Então todos viram umas coisas parecidas com chamas, que se espalharam como línguas de fogo; e cada pessoa foi tocada por uma dessas línguas. 

4. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa.

A ênfase do pastor foi no sentido de que discípulos de Jesus esperavam, enquanto ele estava vivo, que viesse a ser um Messias político, que libertasse o povo judeu da dominação exercida pelos romanos. Mas Jesus foi preso e crucificado. Com sua ressurreição, reanimaram-se suas esperanças, de que Jesus fosse permanecer entre eles e liderar uma revolta contra os romanos. Jesus, porém, foi levado para o céu e eles ficaram novamente perdidos. A Festa de Pentecostes foi a ocasião em que revelou a eles todos que a natureza da missão de Jesus era diferente do que eles esperavam – diferentes em três aspectos. 

O primeiro aspecto é ressaltado exatamente no quarto versículo. “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar, . . . de acordo com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. O poder do Espírito foi dado a todos, e todos começaram a falar “com o poder que o Espírito dava a cada pessoa”. O primeiro aspecto tem que ver com as distinções entre as pessoas, com a eliminação de preconceitos e a implantação da igualdade entre as pessoas. Fica evidente aqui que no Cristianismo Primitivo, todos tinham o poder do Espírito e todos podiam igualmente falar, não havendo distinção entre as pessoas, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre velhos e jovens, entre judeus e gentios, entre casados e solteiros ou viúvos, entre gente culta e estudada e gente simples e sem cultura. Consta que o judeu homem orava todo dia dando graças a Deus por ser homem, e não ser mulher, criança ou gentio. Essas distinções todas foram abolidas no Cristianismo de Jesus Cristo, revelado durante a Festa de Pentecostes. 

O segundo aspecto é ressaltado nos versículos 1 e 2. Ele tem que ver que ver com a distinção entre o Sagrado e o Secular. No Judaísmo, o templo era um lugar sagrado, e dentro do templo havia o lugar mais sagrado de todos, o santo dos santos, em que apenas o sumo sacerdote tinha o direito de penetrar. Diz o Novo Testamento que, quando Jesus morreu, o véu do templo que separava o Santo dos Santos, se rasgou de alto a baixo. A religião de Jesus Cristo eliminou essa distinção entre o espaço sagrado e o espaço secular. “Todos os seguidores de Jesus estavam reunidos em um mesmo lugar” – e o lugar não era uma sinagoga ou uma igreja: era a casa de uma das pessoas. Jesus Cristo rompeu de vez com a sacralidade de determinados espaços: todo espaço é local adequado para o culto a Deus e a comunhão dos crentes uns aos outros. Desnecessária se tornava a pessoa de um sumo sacerdote, e mesmo de um sacerdote, bem como a pessoa de um fariseu, um escriba, um levita, ou até mesmo um rabino. Cada um dos crentes recebeu o poder do Espírito Santo e passou a ter direito de falar, em louvor, pedido ou agradecimento a Deus. Todos, como definidos no primeiro aspecto, tinham direito de adorar e louvar a Deus em qualquer lugar, sem necessidade de um templo, de um altar, de um lugar para sacrifícios. É isso que Martinho Lutero chamou de “O Sacerdócio de Todos os Crentes”. 

O terceiro aspecto é ressaltado no versículo 1. O Espírito veio a todos no dia de Pentecostes, que acontecia cinquenta dias depois da Páscoa. A Páscoa acontecia numa sexta-feira à noite e no dia seguinte, período que veio a ser considerado sagrado na semana, o Sabbath, onde as pessoas não trabalhavam, e só adoravam a Deus. A Dia de Pentecostes, quando o Espírito foi dado a todos, fora de um lugar sagrado, acontecia num Domingo, o dia depois do Sábado sagrado (50 dias depois da Páscoa), e, portanto, em um dia útil, um dia de trabalho, não de adoração e culto, firmando o princípio que todo dia é dia de adoração, de louvor, de pregação, de ação de graças. 

Assim, se o primeiro aspecto aboliu distinções entre as pessoas, e o segundo aboliu distinções entre espaços sagrados e espaços seculares, o terceiro aboliu distinções entre tempos sagrados e tempos seculares, dias de trabalho e dias de descanso, adoração e louvor a Deus. 

Esse novo espírito introduzido pela religião de Jesus começou a se perder a partir do quarto século. A partir das ocasiões em que o Cristianismo se tornou religião lícita, em 313 AD, e quando se tornou religião oficial do Império Romano, em 381 AD, as distinções foram sendo reintroduzidas gradativamente. 

Em primeiro lugar, as distinções entre as pessoas foram sendo reintroduzidas: diáconos, presbíteros, bispos, arcebispos, patriarcas, metropolitanos, cardeais, papas… Algumas dessas funções eram privativas de homens, sendo vedadas às mulheres, ou às crianças; algumas dessas funções foram reservadas a homens celibatários, que foram proibidos de se casar; mulheres virgens começaram a ter um status especial no Cristianismo. Na Bíblia se diz apenas que o bispo seja marido de uma só mulher: mais tarde se decidiu que ele não podia ser marido de nenhuma mulher. 

Em segundo lugar, o Cristianismo pobre, que precisava se reunir na casa das pessoas, ou nas catacumbas, ganhou ricas igrejas dos Imperadores Romanos, e os lugares sagrados começaram a ser de novo demarcados dos lugares seculares, chamados de profanos. 

E, por fim, em terceiro lugar, reintroduziram-se os dias santos: primeiro, os domingos de todas as semanas, depois os dias de festas tradicionais do Cristianismo, como o Natal e a própria Páscoa, e assim por diante, até que cada dia do calendário tinha seu santo – e as comemorações do santo do dia, como no caso das Festas Juninas…

Assim os elementos essenciais da mensagem que o Espírito Santo trouxe no dia de Pentecostes acabaram por se perder – e o Cristianismo se tornou uma religião como o Judaísmo e as demais religiões. 

É preciso que tentemos recuperar a igualdade de todos os seres humanos, de todos os espaços, e de todos os tempos e momentos. Essa foi a mensagem do sermão. 

Também não devemos nos esquecer – e esta é uma contribuição minha, não do pastor – de que foi a partir do mesmo século quarto que se começou a definir um cânon – um conjunto especial – de livros a serem lidos pelos cristãos, deixando de fora do cânon um número enorme de livros que até ali eram lidos e discutidos com proveito. 

E também foi a partir do mesmo século quarto que começam a reunir, convocados pelos Imperadores Romanos, Concílios Ecumênicos, que definiram cânones, credos e confissões contendo aquilo que os cristãos podiam e deviam acreditar… Foi aí que começou a ideia de Recta Doctrina, Ortodoxia, e a consequente ideia, que tanto mal e sofrimento já causou dentro do Cristianismo, de Heresia – com a devida punição dos hereges. 

O sermão me fez lembrar de um artigo que publiquei aqui recentemente sobre a importância da desigrejação (ou do desigrejamento) do Cristianismo. Eu deveria ter enfatizado naquele artigo, também, aquilo que mencionei dos dois últimos parágrafos e o que discuti no restante do artigo: a igualdade entre as pessoas e o abraçamento de qualquer tipo de pessoa no Cristianismo, todos os já mencionados e mais os que ainda são discriminados hoje, os gays, os bissexuais, os multissexuais, os transsexuais, os que se preferem manter solteiros ou mesmo virgens, sem a constituição de uma família convencional, sem esquecer os supostamente hereges; também a dessacralização dos espaços, com o abraçamento dos espaços seculares, em especial os locais de serviço e de lazer e a rua; e também a dessacralização dos tempos, dos momentos de adoração, louvor, oração e ação de graças, com o abraçamento dos momentos até aqui considerados profanos.

O Cristianismo é algo que se vive e que se pratica na companhia de qualquer pessoa (anyone), em qualquer lugar (anywhere), em qualquer momento (anytime), quando estamos fazendo qualquer tipo de coisa (anything), não só lendo a Bíblia, orando, pregando, cantando, tomando uma ceia especial com pão e vinho. O balcão de um bar ou de uma padaria, em que se come um salgado, é, com a atitude apropriada, igual a uma cerimônia eucarística. 

É possível explorar qual é essa “atitude apropriada” – mas não é difícil encontra-la nas páginas do Novo Testamento. 

Em Salto, 3 de Outubro de 2022. 

NOTA: Embora as ideias aqui expressas tenham sido inspiradas pelo sermão do Rev. Sérgio Oliveira, elas são minhas e não devem, sem o eventual endosso e a devida aceitação dele, ser atribuídas a ele. Pessoas com ideias criativas e inovadoras sofrem dentro da igreja. Não desejo, de modo algum, que minhas ideias, aqui expressas, sejam consideradas como se deles fossem, embora haja paralelos e, de vez em quando, pontos de contato, que não podem ficar em linhas paralelas. Eu, que me considero cristão, protestante e presbiteriano, estou no momento “inalcançável” por Tribunais de Inquisição Presbiteriana, que ainda persistem. Essa é uma das vantagens de ser desigrejado: minhas “heresias” não podem ser punidas pela autonomeado “ortodoxia”. 

Como Identificar os Cristãos, os Protestantes, e os Diversos Ramos Protestantes?

Uma das minhas qualificações profissionais é ser Historiador da Igreja Cristã e do Pensamento Cristão. Preparei-me, depois que, em 1959, terminei o Ginásio (Educação Escolar de Nível Fundamental II), para ser isso. Mas há um ditado que diz que Deus, quando nos vê fazendo planos, dá risadas, pensando com seus botões: “Mal sabe ele que…”.

Comigo foi assim. No caminho, vários de meus planos, ou nem começaram, ou, se começaram, deram errado… Precisei fazer várias correções de rumo, dei várias guinadas, umas mais fortes, outras, nem tanto… Dei uma guinada, não muito forte, para trabalhar com a História da Filosofia Ocidental (que, no Ocidente, é algo próximo, da História do Pensamento Cristão Ocidental). Depois dei várias guinadinhas, dentro da Filosofia: trabalhar, não tanto com História da Filosofia (minha especialização era o século 18), mas com Epistemologia (Teoria do Conhecimento), depois com a Filosofia Política (Liberalismo e Libertarianismo), depois com a Filosofia da Educação…

Foi só em 2014, depois de aposentado da UNICAMP, que vim a trabalhar, profissionalmente, com História da Igreja Cristã e História do Pensamento Cristão, na Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI). Mesmo assim, por apenas três anos e meio. Daí aposentei-me de vez.

Mas creio que tenho condições de tentar esclarecer a questão que dá título a este artigo — embora, advirto os leitores, muita gente não vá concordar com a minha explicação. Dentro das religiões, em geral, e do Cristianismo, em particular, e, no Cristianismo, dentro do Protestantismo, de forma particularíssima, paixões afloram com facilidade e pessoas se ofendem, com razoável facilidade, com sua opinião. Mas hoje parece que o mundo inteiro é assim, tem casca meio fina, se escandaliza e se ofende com muita facilidade, e quando se escandaliza ou se ofende com algo que você diz quer proibir você de dizê-lo…

Deixo claro, portanto, de início, de onde venho. Nasci na Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB). Esse é o nome de uma denominação protestante brasileira que se orienta por princípios presbiterianos (que são princípios doutrinários calvinistas – originados com João Calvino – e organizacionais escoceses – originados com João Knox, que estudou em Genebra com Calvino). Meu pai era pastor dessa igreja — foi durante quase 50 anos, do fim de 1941, quando se formou, até Março de 1991, quando morreu. Nasci virtualmente dentro da Igreja Presbiteriana de Lucélia, SP, que foi fundada pelo meu pai em 1943, como uma igreja local, dentro da denominação IPB (fundada em 1859, por missionários americanos). Em Agosto de 1966 fui desligado, contra a minha vontade, do Seminário Presbiteriano do Sul (SPS), de Campinas, onde eu estudava, e que pertencia, como ainda pertence, à IPB.  “Ser desligado contra a vontade” é eufemismo para ser expulso. Depois de ser desligado do SPS, estudei por um semestre (o primeiro de 1967) em um Seminário, chamado de Faculdade de Teologia (FT), da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em São Leopoldo, RS. A IECLB é outra denominação protestante brasileira, mas ela se orienta por princípios luteranos, não presbiterianos. No segundo semestre de 1967 fui estudar nos Estados Unidos, no Pittsburgh Theological Seminary (PTS), em Pittsburgh, PA, que pertencia a uma denominação presbiteriana americana, que, naquela época, se chamava United Presbyterian Church in the USA (UPC-USA). Hoje, depois de juntar com outras denominações presbiterianas, ela tem outro nome (Presbyterian Church – US).

Os termos e as siglas às vezes deixam as pessoas com dificuldade para entender. Na verdade, ninguém deve ter vergonha de não entender essas coisas, porque elas são realmente complicadas. Por isso escrevo este artigo.

Vou definir, inicialmente, alguns termos:

Religião: um conceito amplo, que se aplica a macro conglomerados. Existem, por exemplo, e simplificando, as três grandes religiões monoteístas, isto é, que acreditam que existe um, e apenas um, Deus: o Judaísmo, o Cristianismo, e o Islamismo. Fora essas três, existem religiões politeístas, que admitem a existência de vários deuses, como o Hinduísmo, e religiões que parecem não acreditar em nenhum deus, como é o caso do Budismo. Aqui no Ocidente têm aparecido, em tempos recentes, religiões ateias — religiões de gente que não acredita em Deus mas gosta da vida de igreja, da comunhão, de hinos, até de sermões. Mas vamos deixá-las de lado.

Dentro do Cristianismo havia basicamente dois grandes ramos até o século 16: o Católico (Ocidental, que privilegiava a língua latina) e o Ortodoxo (Oriental, que privilegiava a língua grega). No século 16 houve a Reforma Protestante e, com ela, a divisão do Cristianismo Ocidental (não o Oriental), que passou a ter, além de um Ramo Católico, um Ramo Protestante (que, por sua vez, se dividiu em vários). Assim, é comum reconhecer que, hoje em dia, há três grandes ramos dentro do Cristianismo: o Católico e o Protestante, predominantes no Ocidente. e o Ortodoxo, que predomina, ou predominava, no Oriente (e que, em geral, se divide geograficamente: Grego, Russo, etc.).

Dentro do Protestantismo, que é considerado um ramo só, as divisões se dão por Tendências Teológicas-Éticas-Litúrgicas-Organizacionais. Há várias dessas Tendências: a original é a Luterana, dependente de Martinho Lutero, depois surgiu a Calvinista, dependente de João Calvino (tendência que é chamada, na Europa, de Reformada, como se as outras não fossem reformadas, e, nas Ilhas Britânicas, nos Estados Unidos, no Brasil, etc., de Presbiteriana), a Anglicana, dependente de Henrique VIII e seus sucessores, na Inglaterra (e predominante nas Ilhas Britânicas e nas ex-colônias britânicas), a Batista, a Metodista (surgida no século 18), etc., além de algumas menores: Menonitas, Quakers, Amish, etc. No século 20 surgiu a tendência Pentecostal, que, apesar de ser a mais recente, é hoje, das Tendências Protestantes, certamente a maior, numericamente falando.

Dentro de cada Tendência há o que se convencionou chamar de Denominações. Uma denominação é uma pessoa jurídica, dentro das regras de um determinado país ou região. Pode haver várias denominações de tendência Presbiteriana (ou Luterana, ou Batista, etc.) em um mesmo país ou uma mesma região. Ilustrando com a Tendência Presbiteriana, no Brasil, por exemplo, há pelo menos as seguintes denominações: a Igreja Presbiteriana do Brasil (a original, criada em 1859), a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (criada em 1903), a Igreja Presbiteriana Unida (criada em 1986, se não me engano), a Igreja Presbiteriana Conservadora, a Igreja Presbiteriana Fundamentalista, a Igreja Presbiteriana Renovada, etc., que foram criadas em datas de que não me lembro sem ir olhar. Todas essas denominações são presbiterianas, mas elas divergem em alguns aspectos, sejam doutrinários, sejam morais (regras de conduta), sejam formas de cultuar (mais sérias e formais, de um lado, mais descontraídas e espontâneas), sejam formas específicas de se organizar e se administrar.

Assim, temos, em princípio: Luteranos são Luteranos, Presbiterianos são Presbiterianos, Pentecostais são Pentecostais, Batistas são Batistas, Metodistas são Metodistas, etc. Alguns, como os Anglicanos, são chamados de Episcopais, fora da Inglaterra, mas fazem parte de uma tendência só. Os Presbiterianos, como já disse, assim chamados na Grã-Bretanha, nos EUA, no Brasil e em vários outros lugares, são chamados de Reformados, na Europa, principalmente. Mas Presbiterianos e Reformados são uma coisa só — “Reformados” com “R” maiúsculo. Todas as denominações mencionadas são reformadas no sentido mais amplo de que são frutos, direta ou indiretamente, da Reforma Protestante do século 16.

Quando a gente se refere a Luteranos, Presbiterianos, Pentecostais, etc., a gente em geral está falando em Tendências, ou seja, grupos de pessoas que compartilham determinadas crenças, valores (regras de conduta), liturgias (formas de cultuar), estruturas organizacionais (formas de se organizar em comunidades), etc.

Como já disse, essas Tendências em geral se organizam em Denominações.

Da mesma forma que dentro da tendência Presbiteriana há, no Brasil, várias denominações, mencionadas atrás, dentro da tendência Pentecostal também há várias denominações, que são igrejas juridicamente organizadas que adotam, no básico e essencial, os princípios Pentecostais: Igreja Assembleia de Deus, Igreja Congregação Cristã, Igreja do Evangelho Quadrangular, etc. A Assembleia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil, etc. são denominações consideradas clássicas dentro do Pentecostalismo Brasileiro (embora os Pentecostais tenham surgido, nos Estados Unidos, apenas no início do século 20 — têm um pouco mais de um século, portanto). As denominações chamadas Neo-Pentecostais aqui no Brasil são aquelas surgidas ainda mais recentemente, por volta de 1970, daí pra frente: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Igreja Renascer para Cristo, etc. e outras que tais, que cresceram vertiginosamente, com sua ênfase no chamado “Evangelho da Prosperidade” e uso intensivo de programas de televisão, deixando as outras denominações Protestantes, Pentecostais ou não, para trás.

Até aqui tudo parece muito bem organizado. Mas a realidade não é tão certinha.

Algumas denominações tradicionais, como várias das denominações Presbiterianas, por exemplo, para falar do que eu conheço melhor, ou algumas igrejas locais dentro dessas denominações, de vez em quando passam a adotar características que, deixando de lado sua posição tradicional, são geralmente usadas para identificar os Pentecostais: defender a cura divina, praticar o exorcismo, falar línguas estranhas, etc. Quando isso acontece, essas denominações ou igrejas locais são normalmente qualificadas ou chamadas de avivadas ou carismáticas (até dentro da Igreja Católica há grupos ou mesmo alas consideradas avivadas ou carismáticas). Quando isso acontece, muita gente diz que essas denominações, igrejas locais, ou grupos dentro de uma igreja local “se pentecostalizaram”, o que quer dizer que assumiram características geralmente identificadas com a tendência Pentecostal. Em geral elas continuam presbiterianas, mas se consideram “Presbiterianas Carismáticas”, ou “Presbiterianas Avivadas”, ou “Presbiterianas Renovadas”, etc. Pode ser até que se separem da igreja-mãe e formem outra denominação, que abra mão do rótulo “Presbiteriano”. E pode ser que optem por se chamar de “Igreja Presbiteriana Pentecostal”, criando confusão na cabeça das pessoas, mas isso não é comum. Pelo menos, não era.

Às vezes há denominações mais tradicionais que, diante da “Pentecostalização” de algumas de suas igrejas, ou de grupos dentro delas, botam os “hereges” pra fora, mesmo que eles queiram permanecer dentro… Sendo postos para fora, eles, daí, não têm outra saída a não ser formar uma outra denominação ou igreja.

A Igreja Presbiteriana Independente do Brasil saiu da Igreja Presbiteriana do Brasil voluntariamente, em 1903. A Igreja Presbiteriana Unida foi formada por gente que, em sua maioria, foi colocada para fora da Igreja Presbiteriana do Brasil, a partir de 1966.

Em penúltimo lugar, há algumas Tendências religiosas que têm sua auto-identidade questionada. Vou dar alguns exemplos.

Primeiro: Existe uma Tendência que se denomina Unitária — ou Unitarista. Essa tendência acredita em Deus, mas não em um Deus Triúno, ou seja, não na Trindade. Jesus Cristo, para os Unitários, não é Deus, embora seja uma pessoa muito especial. Unitários seriam Cristãos, mesmo sem reconhecer a divindade de Cristo?

 Segundo: Existe uma Tendência que se denomina Mórmon — o nome oficial é “Igreja dos Santos dos Últimos Dias”. Os mórmons aceitam o Velho Testamento (a Bíblia dos Judeus) e o Novo Testamento (a Bíblia específica dos Cristãos). Mas eles aceitam também uma série de livros, como o Livro dos Mórmons, que são consideradas revelações divinas mais recentes, dadas no século 19 ao seu fundador e líder, Joseph Smith. Os Mórmons seriam cristãos? A maior parte deles assim se considera, porque aceita a Bíblia, e, consequentemente, aceita Jesus Cristo — embora aceite também outros escritos além da Bíblia como autoritativos (se é que essa palavra existe em Português). Seriam eles Cristãos+?

Algo parecido acontece com os chamados Moonies, seguidores do chamado Rev. Moon, um coreano que era pastor presbiteriano e resolveu criar sua própria igreja, hoje conhecida como Igreja da Unificação. Os Moonies aceitam um livro, chamado Princípio Divino, que teria sido revelado ao Rev. Moon. Mas aceitam também a Bíblia inteira. Seriam eles também Cristãos+?

E os Adventistas do Sétimo Dia, que também aceitam a Bíblia, mas consideram os escritos de Ellen White também como autoritativos? Também Cristãos+?

Evidentemente, Unitários, Mórmons, Unificacionistas e Adventistas não são nem Católicos nem Ortodoxos. Seriam eles Tendências Protestantes?

Eu assim os considero. Mas muita gente não os considera nem Protestantes, nem Cristãos.

Para os que relutam em aceitá-los como Cristãos e Protestantes, eu argumento: os Luteranos não aceitam, além da Bíblia, o Livro de Concórdia como autoritativo? Os Presbiterianos, além da Bíblia, não aceitam também a Confissão de Westminster, outras confissões, os escritos de Calvino como autoritativos?

Isso impede Luteranos e Presbiterianos de serem considerados Cristãos e Protestantes?

Em último lugar, há o problema do termo “Evangélico”. No Novo Testamento, Evangelho é um termo grego que quer dizer “boa nova” ou  “boas novas”. Todos os Cristãos (ou, pelo menos, a grande maioria deles) aceitam as boas novas da salvação contidas no Novo Testamento, e, portanto, deveriam, ou, pelo menos, poderiam ser chamados de Evangélicos. Mas não são. Tradicionalmente, o termo Evangélico era considerado quase sinônimo de Protestante: evangélico era alguém que seguia uma das Tendências Protestantes. A partir de meados do século 20, porém, surgiu uma “Micro-Tendência”, dentro de diversas Denominações Protestantes, que, para se diferenciar de Protestantes Conservadores / Fundamentalistas, de um lado, e de Protestantes Liberais / Modernistas, de outro, resolveram se rotular de Protestantes Evangélicos (ou Evangelicais, ou Evangelicalistas — termos que eu acho horrorosos). Assim, quando alguém se diz Evangélico, tout court, será ele evangélico no sentido convencional (Protestante) ou no sentido mais recente (Protestante que não é nem Conservador / Fundamentalista, nem Liberal / Modernista), independentemente de qual seja a sua Denominação?

Esse fato criou algo interessante. Um Presbiteriano Evangélico (no segundo sentido) se sente, muitas vezes, mais próximo de um Metodista Evangélico do que de um Presbiteriano Conservador / Fundamentalista ou de um Presbiteriano Liberal / Modernista.

E assim vai.

Uma última coisa. Dois dos cristãos mais conhecidos na segunda metade do século 20 foram C S Lewis e Billy Graham. Lewis era Anglicano e Graham, originalmente, Presbiteriano. Mas ambos alcançaram sucesso entre os Evangélicos (no segundo sentido) com uma proposta que transcende e, por isso ignora, limites denominacionais. Lewis propôs um Cristianismo Básico, Puro e Simples, que ignora as diferenças e foca num núcleo de doutrinas e condutas que todo cristão, na sua forma de entender, deve aceitar. Graham, na prática, fez mais ou menos o mesmo. Nenhum dos dois fundou uma nova denominação — mas os dois recomendaram que os cristãos focassem mais no que os une  do que naquilo que os separa. Até os Católicos seriam considerados como irmãos por esses Cristãos Protestantes “Essencialistas”.

É isso.

Em Salto, 14 de Julho de 2020 (Dia da Queda da Bastilha).

O “Crente Liberal”

[Transcrito do meu blog Chaves.Space]

Convenhamos: pouca gente recorre ao liberalismo teológico se não passa a enfrentar dificuldades para manter sua fé em Deus, ou para manter intatas suas outras crenças religiosas, se e quando essa fé e essas crenças forem interpretadas em um sentido literal (o sentido que parece evidente à primeira vista: se está escrito que a mula de Balaão falou, ou que Josué fez o Sol parar em sua trajetória, então a mula falou e o Sol parou, ora bolas).

Quem acredita que Deus é um ser pessoal, que conta os cabelinhos da cabeça de cada pessoa que existe (ou pelo menos daquelas que acreditam nele), e não deixa que nenhum dos fios caia sem que ele, não só saiba que o fio vai cair, mas queira, decida e determine que caia… – quem acredita nisso em um sentido literal dificilmente vira um crente liberal, pois não tem por que fazer isso.

Quem acredita que Deus, vivendo lá (lá onde?) antes do princípio dos tempos, em que não havia absolutamente nada, a não ser ele, que era eterno, resolveu criar o mundo, e foi criando as coisas, até finalmente criar o homem, a partir de um bonequinho de barro que ele próprio construiu, e, depois, a mulher, a partir de uma costela do homem, e colocou os dois num jardim… — quem acredita nisso em um sentido literal dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.

Quem acredita que o mundo que Deus criou tem, além de nós, humanos, descendentes de Adão e Eva, seres espirituais de vários matizes, anjos bons e anjos caídos (espíritos maus), estes capitaneados por um líder, que é o maior inimigo de Deus (e cujo nome eu nem ouso mencionar); e que esse mundo que nós e esses serem habitamos é composto de, digamos, três pavimentos: um pavimento intermediário, que é o nosso habitat, a Terra, planinha de tudo, um pavimento superior, em cima, o Céu, onde estão os anjos e os demais espíritos bons, e um pavimento inferior, cujo nome eu também nem menciono, onde estão os anjos caídos e os seus líderes; e que, quando a gente morre, a alma da gente, ou algo equivalente (espírito?), vai para o andar de cima ou para o andar de baixo, ou fica planando em algum outro lugar misterioso, um limbo ou um purgatório, esperando o fim do mundo, quando haverá a ressurreição dos corpos que já morreram, que serão reunidos com suas almas (ou espíritos) e serão julgados… —  quem acredita nisso tudo em um sentido literal dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.

Por outro lado, quem, por alguma razão qualquer, que não vem ao caso agora, não consegue acreditar nessas coisas, interpretadas assim literalmente, das duas uma: ou vira ateu de uma vez, ou vira um crente liberal — deixa de ser um crente do tipo conservador ou fundamentalista.

(Parêntese: um fundamentalista é um conservador mais radical, mais irredutível e dogmático em suas crenças; que tem certeza de que está com a verdade; que acha que quem discorda dele está simples e redondamente errado; que está convicto de que o erro não deve ser tolerado por quem não tem dúvida de que está de posse da verdade, como ele próprio; que está certo, portanto, de que quem está de posse da verdade, como ele próprio, não deve congregar na mesma igreja com quem está errado, ou nem mesmo deve conviver com ele fora da igreja, e que, portanto… – fim do parêntese.)

O crente liberal se dispõe de alguma forma a manter a sua fé e suas crenças religiosas, mas interpretá-las de alguma forma não literal, quem sabe em uma linha liberal, e ele faz isso, em geral, para não se sentir um ser dividido, meio esquizofrênico, que, de um lado, quando necessário, usa antibióticos e antidepressivos, se submete a exames de tomografia computadorizada e de ressonância magnética, faz terapia cognitiva, baseada em psicologia positiva, mas que, do outro lado, continua a acreditar, ao mesmo tempo, que está vivendo, aqui nesta Terra plana, uma batalha espiritual em que seres invisíveis batalham por sua alma (ou espírito) e tentam possuí-la(o) e habitar no seu corpo, que é preciso de alguma forma ficar do lado dos espíritos do bem e exorcizar, de alguma maneira, mais ou menos escandalosa, os maus espíritos, e… etc. – não é preciso completar.

A gênese do liberalismo teológico está aí nesse dilema. Quem não tem dúvidas, quem não tem dificuldades com sua fé e com suas crenças religiosas, não sente a mínima atração pelo liberalismo teológico – na verdade, nem compreende como alguém possa se sentir atraído por essa postura teológica que, no seu modo de ver as coisas, não leva a sério a Bíblia, a Palavra infalível e inerrante de Deus, não aceita a Confissão de Fé e os Catecismos de Westminster em sua interpretação “natural” (vale dizer, literal), etc.

Ninguém (ou assim me parecem as coisas) é liberal, ou mesmo ateu, porque é de coração ruim ou cabeça dura. A maioria de nós nasceu em lares de pessoas que creem (ou criam) em Deus e levam (ou levavam) sua religião a sério. Por que alguns continuam a crer sem dificuldade e outros passam a ter dúvidas e, em um dado momento, descobrem que estão tendo dificuldades com sua fé em Deus e suas demais crenças religiosas, enfrentando dúvidas, percebendo que não acreditam mais em coisas que, um tempo atrás, não tinham dificuldade para aceitar? Será predestinação? Será que Deus predestinou alguns de nós para crer e outros para ter dúvidas, para virar liberais, ou, até mesmo, para descrer de uma vez? Mas se é predestinação, e as decisões divinas são irresistíveis e inelutáveis, o que é que se pode fazer?

Acreditar em algo em geral não é algo sobre o que a gente tem total controle. Talvez tenhamos algum controle – o de não nos expormos a ambientes em que nossa fé e nossas crenças são questionadas e, assim, possam vir a correr risco.

Consta (li isso em uma biografia dele que tenho) que Billy Graham era, em seu tempo de juventude, muito amigo de um rapaz que foi estudar em um seminário bem mais liberal do que aquele em que Billy Graham estava estudando. Quando se encontravam, o seu amigo lhe contava o que havia lido, o que seus professores diziam em sala de aula, etc. Um dia seu amigo lhe confessou, em confiança, que estava perdendo a fé. Pelo relato, Billy Graham lhe disse algo assim: Então vamos fazer um trato. Se vamos continuar amigos, você não me conta mais nada sobre suas leituras, sobre suas aulas, sobre suas dúvidas, porque eu não quero perder a minha fé, como você está perdendo a sua. Só conversamos sobre outros assuntos. E, assim, Billy Graham não perdeu a sua fé. Mas há quem ache que isso parece ser uma fuga do livre exame, quiçá da verdade, e, talvez, implique até mesmo alguma desonestidade. Como a de Richard Nixon, que, como também consta, dizia a seus auxiliares para não lhe contar certas coisas porque ele queria poder dizer, sinceramente, que não sabia – queria ter condições de “negabilidade”…

É forçoso reconhecer que o crente liberal (teologicamente falando) também fica meio dividido. Ele não consegue acreditar em um monte de coisas que a maioria dos crentes que não se acha liberal acredita. Estes, os crentes não liberais, os conservadores e fundamentalistas, não raro acham que o crente liberal na realidade é um quinta-coluna, um agente do coisa ruim que só está ali na igreja para semear cizânia e subverter a fé dos demais… Assim, o crente liberal acaba ficando meio deslocado, quando não um pária, dentro da sua própria igreja. Alguns dentre os demais crentes têm até medo de ficarem muito amigos dele – pode pegar mal, os outros podem achar que também eles estão virando liberais… No fundo, para esses crentes não liberais, crente é crente, e “crente liberal” não existe – crente liberal é um descrente que perdeu o nervo e não quer admitir a sua descrença, porque, no fundo, gosta do mundinho da igreja, dos amigos que ali lhe restam, dos hinos que o acompanham desde a infância…

Isso pode levar o crente liberal à seguinte consideração: vale a pena, em um ambiente eclesial predominantemente conservador e mesmo fundamentalista, ser um crente liberal, um crente que se dispõe a encontrar novas interpretações, não literais, para as crenças tradicionais, interpretações que o tornem menos dividido e esquizofrênico, ou é melhor se declarar ateu de uma vez e tirar o time do campo religioso? Ou, pelo menos, procurar uma igreja de liberais, se é que existe uma fora dos limites da PC(USA)?

O crente liberal me faz lembrar de Rudolf Bultmann, na minha opinião o maior teólogo do século 20. Mas um liberal. Apesar de ser o maior teólogo do seu tempo, na igreja de que ele era membro (sem ser pastor) a única coisa que lhe sobrou fazer era tirar a coleta. E ele aceitou fazer isso – dizem que até com certo orgulho. Maior humildade eu nunca vi.

Em Salto, 25 de Janeiro de 2020 (Dia do Aniversário de São Paulo).

Dogma, Doutrina e Opinião na Área da Teologia

O que me motivou a escrever este artigo (na realidade, um artiguete) foi o livro The Genesis of Doctrine, de Alister E. McGrath (1990). Estou começando a escrever o artigo à meia-noite entre o dia 14 e o dia 15.1.2020. McGrath só me motivou. Não é culpado de qualquer besteira que eu possa perpetrar ao escrever o que me veio à teia.

O que eu sempre quis ser na vida, desde que comecei a estudar teologia (cristã, especialmente protestante, especialmente calvinista) em 1964, cinquenta e seis anos atrás, foi ser especialista na área de História da Doutrina. O fato de haver, dentro da igreja cristã, historiadores, como Adolf von Harnack, que denominam a área que me interessa como História do Dogma (Dogmengeschichte, History of Dogma), e historiadores, como Arthur Cushman McGiffert, que denominam a área que me interessa como História do Pensamento Cristão (History of Christian Thought), que é equivalente a História da Opinião Cristã, prova que há necessidade de definir os termos com maior precisão e clareza. Indo do que me parece mais amplo para o que me parece mais estreito, o que me interessa é a História do Pensamento (Opinião), a História da Doutrina ou a História do Dogma dentro do Cristianismo? E no que exatamente consiste a Teologia Cristã, que, por vezes, é classificada em Teologia Histórica (que parece ser a mesma coisa que História da Teologia), Teologia Sistemática (que parece ser a Teologia propriamente dita, sistematizada em um determinado momento da História da Igreja), e Teologia Prática (que parece ser a aplicação da Teologia – Sistemática e Histórica? – a problemas de ordem mais prática relacionados à vida cristã)?

Como afirmei atrás, parece que a expressão História do Pensamento Cristão é a mais ampla das três. Ela inclui a história de tudo que é pensado, dito e registrado no âmbito da História da Igreja Cristã, desde que ela foi fundada – inclusive a discussão sobre quando é, exatamente, que ela, a igreja, e o pensamento que lhe é afeto, tiveram início – como algo claramente diferenciado, digamos, do Judaísmo e do pensamento judaico. Inclui também a questão de quem foi que a fundou, se Jesus, se Pedro ou se Paulo – uma questão que tem sido mais importante para os católicos do que para os ortodoxos e protestantes. De qualquer forma, a expressão História do Pensamento Cristão parece claramente incluir cartas de apóstolos e bispos à suas igrejas, como, no caso de bispos, a Epístola de Clemente de Roma, livros escritos (canônicos, apócrifos e outros), decisões conclaves de bispos e congressos ecumênicos, bulas e encíclicas papais, credos, confissões, etc. Tudo isso me parece ser parte do pensamento cristão – até mesmo aquelas ideias consideradas divergentes (as heresias) das visões predominantes (a ortodoxia).

(Uma curiosidade: verdade, sobre um determinado assunto ou fato, parece poder haver apenas uma, aquela versão que corresponde com a realidade. Mas falsidades ou mentiras parece pode haver em número ilimitado. Da mesma forma, ortodoxia, o ponto de vista correto, parece poder haver apenas uma, enquanto heresias parece poder haver em número ilimitado. Mas provavelmente os relativistas  e os que se dizem pós-modernos, que me parecem ser relativistas, vão discordar de mim, pelo menos quanto ao caráter único da verdade e da ortodoxia.)

 Se a expressão História do Pensamento Cristã é a mais ampla, qual é a expressão menos ampla ou mais restrita? Tudo parece indicar que seja a História do Dogma. No entanto, aqui aparece uma dificuldade: o que é um dogma? Uma resposta simples, que se apresenta de pronto, é que um dogma é uma doutrina que foi oficialmente declarada verdadeira e mandatória por quem de direito dentro da Igreja Cristã. E isso torna difícil discutir os dogmas antes de discutir as doutrinas.

Doutrinas parecem ser parte do pensamento cristão que alcançaram, com base em alguma razão ou consideração, um status especial – embora esse status não seja não fundamental quanto aquele dos dogmas. A questão é qual seria o status especial da doutrina, que um mero pensamento cristão (a opinião de um teólogo, digamos) não tem e que um dogma parece ter em maior grau?

Minha primeira sugestão é que uma doutrina é uma categoria que contém pensamentos, pontos de vista, opiniões acerca de um tema ou tópico que foi considerado suficientemente importante para ser, digamos, individuado, isto é, separado de outros temas ou tópicos de grau de importância equivalente. Assim há a doutrina de Deus (Pai), que pode incluir as doutrinas de menor escopo da natureza de Deus, do conhecimento de Deus (revelação, razão, etc.), da criação, da providência, etc.; há a doutrina do Homem (Antropologia), que pode incluir as doutrinas de menor escopo da origem do homem, do livre arbítrio, da queda, do pecado, do plano redentor de Deus, etc.; há a doutrina de Deus (Filho), que pode incluir as doutrinas de menor escopo da natureza Jesus Cristo, de sua obra redentora, de sua morte, ressurreição e ascensão aos céus, de sua segunda vinda, da regeneração, da graça, da fé e das obras, etc.; há a doutrina de Deus (Espírito), que pode incluir as doutrinas de menor escopo dos dons do Espírito, da santificação, etc.; há a doutrina da igreja; há a doutrina do fim dos tempos; etc.

Parece necessário que uma Teologia Sistemática digna do nome aborde pelo menos essas doutrinas. Algumas Teologias Sistemáticas o fazem, como a de Charles Hodge. Outras vão bem além, como o conjunto das duas Summae de Tomás de Aquino e a Dogmática de Karl Barth. Ainda outras ficam aquém.

O que é importante aqui é o seguinte. Tomemos a doutrina do Conhecimento de Deus. Como é que o ser humano adquire conhecimento acerca da existência de Deus, de sua natureza, de sua vontade, de seus planos e ações, etc? Tudo isso faz parte da doutrina de Deus (Pai), e, dentro dela, da (sub-)doutrina do Conhecimento de Deus. Até aqui estamos falando de categorias. Mas e o conteúdo dessa doutrina? A doutrina de Barth e a de (até certo ponto seu amigo) Emil Brunner diferiram seriamente em relação à questão da chamada Teologia Natural. Se Barth discordava de Brunner, quanto mais não discordaria de Aquino, que escreveu toda uma Summa de teologia natural, a  Summa Contra Gentiles? Diante dessas discordâncias entre teólogos de primeira linha – e nem estou incluindo Friedrich Schleiermacher aqui – qual é a doutrina cristã, ou protestante, ou calvinista do conhecimento de Deus? Se ficarmos no nível dos pontos de vista dos diferentes autores, não temos uma doutrina do conhecimento de Deus: temos várias, e conflitantes entre si.

A solução seria deixar os teólogos isolados de lado e concentrar nas diversas confissões: Westminster, por exemplo. Mas há diversas confissões – e elas não concordam totalmente. Afinal das contas, parece difícil dizer que haja uma doutrina cristã, ou protestante, ou reformada do conhecimento de Deus, mesmo se focarmos as confissões e não os teólogos de per si.

Se é difícil definir a doutrina cristã do conhecimento de Deus (querem algo mais básico do que isso?), mais difícil ainda é falar em dogma cristão do conhecimento de Deus – a menos que se afirme que, para os católicos mais tradicionais, o conhecimento mais do que em duas vias, na verdade em três, defendido por Tomás de Aquino, que fala em conhecimento natural, revelado e místico, seja um dogma.

Em relação a outras doutrinas, há dogmas inquestionáveis (mesmo que não aceitos universalmente). Que Jesus Cristo tenha duas naturezas, uma humana e outra divina, sendo plenamente homem e plenamente Deus, mas que, apesar disso, é uma só pessoa (que é a segunda pessoa da Trindade), e que suas duas naturezas, embora integradas numa só pessoa, não se confundem nem se misturam, parece-me ser o dogma por excelência legado pelo Cristianismo antigo (através dos Concílios de Nicea, em 325, e de Calcedônia, em 451), que nem os reformadores protestantes ousaram questionar. (Na verdade, Michel Serveto foi queimado em Genebra por não aceitar esse dogma que, então, quando ele foi morto, em 27.10.1553, tinha mais de mil anos).

Pelágio foi perseguido por Agostinho, condenado em concílios aconchavados para votar contra ele, teve de fugir para não perder a vida. Na reforma alemã, os luteranos acham que Lutero ganhou o debate com Erasmo. Os calvinistas acham que Armínio também perdeu na Holanda. E, no entanto, hoje, a maior parte dos cristãos está do lado dos supostos perdedores… Qual é a doutrina cristã nessa questão? Faz sentido cogitar de um dogma, apesar do fato de que alguns concílios antigos condenaram Pelágio e aprovaram o ponto de vista de Agostinho?

Toda essa situação recomenda cautela e tolerância. Para os mais arrojados, essa situação aponta para um futuro desconfessionalizado, desortodoxizado, em que há inúmeros pontos de vista e versões ou propostas de doutrina mas nenhuma dela é capaz de heretizar algum, quanto mais cortar a sua cabeça ou queimá-lo na fogueira.

Em Salto, 16 de Janeiro de 2020.

Seminários e Faculdades de Teologia

[Transcrevo esta discussão do meu perfil no Facebook, onde ela teve lugar, envolvendo diversas pessoas, que são mencionadas, principalmente em 19.03.2019, no endereço: https://www.facebook.com/eduardo.chaves/posts/10156973514907141. Achei que há elementos suficientemente interessantes para justificar sua preservação neste espaço. Transcrevi apenas alguns comentários. Ao transcrever, fiz pequenos ajustes linguísticos nos textos dos quais eu era o autor, não, naturalmente, nos textos que transcrevo, onde mantive as ipsissima verba originais.]

Abaixo, transcrevo, o artigo “Uma Geração Perdida”, de Luiz Felipe Pondé, que apareceu em vários jornais de ontem, 18.3.2019 (a Folha de S. Paulo, a Gazeta do Povo, O Popular, etc.), por indicação de Volney Faustini e com ajuda de Júlio César Silveira. O primeiro livro mencionado no artigo do Pondé (The Coddling of the American Mind [A Mimação da Mente Americana]) está à venda na Amazon Books (em forma impressa e em e-book). Ele tem um subtítulo que Pondé não registra: How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure [Como Boas Intenções e Más Ideias Estão Preparando uma Geração para o Fracasso].

o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o

Como preâmbulo meu (não do Pondé), quero chamar a atenção de pessoas envolvidas com Seminários e Faculdades de Teologia. O texto (do livro e do Pondé) é relevante a esse respeito.

SEMINÁRIOS, na minha forma de entender, deveriam ser instituições educacionais / doutrinacionais (na prática, mais do segundo do que do primeiro tipo) primariamente destinadas a preparar pessoas para assimilar as ideias e o “ethos” de uma determinada igreja ou denominação, com o fito de disseminá-los ou transmiti-los a quem quer que seja que possa ter interesse no assunto. Como diz o Pondé, apud os autores do livro, “ao invés de [pretender] formar [mentes] livres . . . [Seminários deveriam assumir as doutrinas e o ‘ethos’ de] sua denominação religiosa [e admitir que querem incuti-los nos alunos]”.

FACULDADES DE TEOLOGIA, por sua vez, e ainda na minha forma de entender, se quiserem ser reconhecidas como instituições de ensino superior a par com as não confessionais, deveriam não objetivar “fazer a cabeça” e a “dirigir a conduta” dos seus alunos, podendo até apresentar os credos e as confissões de uma determinada igreja, bem como o pensamento de alguns autores, mas sempre comparando-os com os das demais credos, confissões e autores, mas sem esperar, e muito menos exigir, de seus alunos, e menos ainda de seus professores, que aceitem e adotem esses credos e essas confissões e concordem com o pensamento dos fundadores do ideário da igreja ou da denominação (Lutero, Calvino ou quem quer que seja).

Terminando meu preâmbulo, e defendendo uma posição que pode parecer estranha aos meus amigos da IPIB [Igreja Presbiteriana Independente do Brasil], acho que a IPB [Igreja Presbiteriana do Brasil] é mais coerente do que a IPIB nesse aspecto…

[Em parêntese, esclareço que nasci e cresci na IPB, mas há dez anos, mais ou menos, sou membro da IPIB, depois de um período de quase quarenta anos em que não fui membro de nenhuma igreja. Estudei em Seminário da IPB e da Presbyterian Church (US), bem como em Faculdade de Teologia da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil). Trabalhar em instituições do tipo mencionado só o fiz, durante três anos (2014-2017) na Faculdade de Teologia de São Paulo da IPIB, conhecida como FATIPI, da qual pedi demissão por me sentir constrangido a não abordar determinadas questões da forma que me pareceu correta necessária. Além disso, trabalhei durante cerca de 45 anos (1972 a 2016) em Instituições de Ensino Superior, públicas e confessionais, nos Estados Unidos, primeiro, depois aqui no Brasil. Aqui fiquei por 32 anos e meio na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Nessas instituições educacionais nunca me senti constrangido, nem a dizer ou a não dizer determinadas coisas nem a abordar ou a não abordar determinados assuntos — algo que, no meu entender, é o que deve se esperar em instituições educacionais, embora o Politicamente Correto venha fazendo estragos consideráveis nessa visão, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, e em outros países também.]

A IPB não pretende transformar os seus Seminários em Faculdade de Teologia, nem aspira à chancela do MEC (Ministério da Educação) e da CAPES (Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal do Ensino Superior), esta vinculada ao MEC, para esses Seminários, porque admitidamente quer usar os Seminários para formar a cabeça e dirigir a conduta dos seus alunos. Simplesmente isso. Age de acordo com isso e nisso, a meu ver, é coerente.

A IPIB, no entanto, transformou os diversos Seminários que tinha em uma Faculdade de Teologia, a FATIPI, tendo para tanto obtido a chancela do MEC e da CAPES, dispondo-se, para tanto, a aceitar alunos de  fora da denominação (de outras denominações ou mesmo de outras religiões e, parece-me, até ateus), mas não reconhece, nem para seus alunos, nem para seus professores, a plena liberdade de adotar pontos de vista e defender condutas que consideram mais bem fundamentados do que os pontos de vista e as condutas “oficiais” (reafirmados no Modelo de Estatuto para as Igrejas Locais que está sendo votado nestes dias pela Catedral Evangélica de São Paulo, que é a igreja original, e a principal igreja, da denominação). Assim, a IPIB acaba fazendo de sua Faculdade de Teologia uma mistura híbrida e incoerente de Seminário e Instituição Acadêmica livre. (Digo isso com intenção construtiva: acho que a instituição deve ser uma coisa ou outra, não tentar ser as duas. Acaba não dando certo, pois cria expectativas que não tem condições de manter.)

Dirijo esses comentários aos meus amigos Elizeu R. Cremm, Reginaldo von Zuben, Clayton Leal e Volney Faustini (este tendo sido quem chamou minha atenção para o artigo do Pondé, transcrito na sequência). O livro The Coddling of the American Mind eu comprei assim que ele foi publicado e li em seguida à compra.

Dirijo os comentários também aos meus amigos estudantes de teologia, em especial a Carlos Eduardo Martins, e ao meu sobrinho, professor de Teologia, Vitor Chaves de Souza. E faço um tag para minha mulher, Paloma Epprecht Machado Campos Chaves, também interessada no assunto.

E espero que o novo Estatuto da Catedral como igreja local não me constranja a sair da igreja da mesma forma que me vi constrangido a sair da FATIPI. Gosto de dizer as coisas claramente, porque não vejo nenhum mérito em manter as coisas sob uma cortina de fumaça.

É isso. Ao Pondé.

o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o

“Uma Geração Perdida”

O mercado de trabalho que se prepare porque as universidades estão gestando uma geração mimimi raivosa, que não vai prestar para muita coisa. Esse diagnóstico é feito por especialistas americanos sobre universidades americanas. Mas, como toda moda americana pega, ela já chegou aqui.

O fetiche com relação aos jovens serem “mais evoluídos” continua em ação. Um pouco pela vaidade dos pais, um pouco pelo marketing das escolas e universidades, um pouco porque pessoas mais velhas querem fazer sexo com esses jovens, e o blábláblá de que são legais funciona melhor quando você quer levar um deles ou uma delas para a cama.

Greg Lukianoff, psicólogo cognitivista, e Jonathan Haidt, psicólogo social, escreveram um livro em 2018 que está impactando não só o mundo acadêmico como o mundo corporativo. “The Coddling of the American Mind” (Mimando a mente americana, Penguin Press) é de urgente leitura para quem trabalha com jovens. Mas, se fôssemos medir o nível de leitura de quem trabalha em escolas e universidades, provavelmente não passariam de 10% aqueles que ainda têm tesão pelo estudo.

“Coddling” significa mimar. A realidade desse processo já foi apontada, de formas diversas, por especialistas como Jean Twenge e Frank Furedi em livros recentes. Ela com o “iGen”(traduzido no Brasil) em 2017, ele com “What’s Happened to the University?” (sem tradução por aqui) em 2018.

A obra descreve casos recentes e escandalosos de universidades americanas que mergulharam no caos e na violência estudantil de esquerda a partir de emails nada especiais, enviados por seus professores, alunos ou por membros da administração.

A pesquisa também relata provocações de membros da direita agressiva off-campus e o comportamento canalha de colegas professores que, apesar de no particular se solidarizarem com os colegas levados à fogueira por esse alunos furiosos, no público juram pureza ideológica a favor dessas mesmas fogueiras (universidades são um dos espaços onde canalhas crescem aos montes). Os autores se referem a esse fenômeno como “caça às bruxas” — quem já viu ou viveu esse tipo de ataque por parte de alunos e redes sociais sabe o que é.

As universidades americanas estão se transformando em tribunais da inquisição, muitas vezes liderados por professores e justificados por uma teoria conhecida como “interseccionalidade”. Segundo esta teoria, existem dois grupos básicos no mundo, os opressores e os oprimidos. Mas o gradiente é móvel: ele vai do mais opressor ao mais oprimido.

Na ponta do opressor, homens brancos, heterossexuais, bem-sucedidos. Na ponta do mais oprimido, encontramos um “mau infinito”: talvez uma mulher, negra, lésbica, pobre. Bruce Bawer, crítico literário americano, já havia apontado esse “mau infinito” na sua obra “Victims’ Revolution”, em 2012.

Um traço dessa tese é que, mesmo que o “agressor” não tenha tido a intenção de cometer a “agressão” de que o acusam, se a “vítima” se sente agredida, ele [o “agressor”] deve ser demitido, execrado em praça pública,
condenado ao ostracismo. A tendência a desconvidar pessoas para conferências em universidades nasce dessa tese.

Um dos riscos desse fenômeno é que os alunos são estimulados a recusar o contato com questões das quais eles podem discordar, mas que deveriam ser estimulados a refletir e debater. As universidades mimam esses alunos, criando pequenos Torquemadas ofendidos.

Na parte dedicada a investigar as causas que nos levaram a essa situação, os autores elencam: polarização política, pais paranoicos superprotetores, obsessão por um mundo mais justo, ansiedade, suicídio e depressão em crescimento, o declínio do brincar em espaços abertos, mídias sociais e a burocracia para construção de um mundo cada vez mais “seguro psiquicamente” nas escolas e universidades. Você reconhece algumas dessas causas perto de você?

Segundo os autores, a única solução será as universidades que quiserem apoiar um viés político claro se tornarem instituições como as religiosas, que pregam ao invés de formar adultos livres, assim como faculdades de teologia que assumem sua denominação religiosa. E aquelas que quiserem formar jovens que pensem o mundo livremente devem abandonar o projeto de confundir filosofia e ciências humanas com uma igreja a favor dos oprimidos.

Pensando nas universidades que conheço aqui no Brasil, só nos restarão as que optam por ser igrejas que se acham salvadoras do mundo.

o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o O o

Comentários:

Volney Faustini
The Coddling está na minha lista de leitura – mas acompanho o autor e suas falas. Tem uma que recomendo em especial (link abaixo) que, apesar de longa, desnuda um problema que é gravíssimo: o índice de ferimentos auto-afligidos em crescimento entre as meninas. Atenção esse trecho do vídeo já está engatilhado no 1:10 mais ou menos. Mas quem quiser assistir de cabo a rabo basta ir para a introdução.

Eduardo Chaves
O link que vc dá já começa em 1:10… Como eu vou para a Introdução?

Volney Faustini
Eduardo Chaves leve a barrinha para o início da apresentação, ou clicando na marcação zero da própria barra.

Eduardo Chaves
Achei: https://www.youtube.com/watch?v=FG6HbWw2RF4

Eduardo Chaves
Volney Faustini: Sou fã do Jonathan Haidt, que está ligado à Psicologia Positiva de Martin Seligman. Tenho inúmeros livros de Haidt e quase tudo que Seligman publicou em livro.

Volney Faustini
Ele – junto com Jordan Peterson (como autores) – fazem um grupo ser extremamente ativo nas provocações pela internet. Esse grupo participa do que é apelidado de Intellectual Dark Web.

Eduardo Chaves
Gosto de seu livro (de Haidt) The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion. A Amazon publicou um pedaço desse livro (por 0,99 US Cents) com o título Can’t We All Disagree More Constructively?

Eduardo Chaves
Há também um Resumo e Análise do Coddling, de 53 páginas, por 2.99 USD, com o título de Summary & Analysis of The Coddling of the American Mind: How Good Intentions and Bad Ideas Are Setting Up a Generation for Failure: A Guide to the Book, by Greg Lukianoff and Jonathan Haidt. É útil.

Carlos Eduardo Martins
Carlos Eduardo Martins Vou acrescentar o The Coddling of the American Mind à minha lista de leitura. Muito obrigado por ter me marcado nesse post, mestre!

Paulo Amorim
Ontem, no Pânico da Jovem Pan, Pondé disse algo que corresponde ao pensamento cristão milenar da maldade humana. Ele entende que ao limitar e proibir as pessoas, principalmente os jovens e crianças, de expor suas maldades e seus vícios, criamos uma geração doente e desconectada da realidade. Achei bem interessante ele apontar para esse caminho. Pena que os presentes no programa não fizeram desse tópico, um assunto mais aprofundado e preferiram falar do medo que os homens hoje possui das mulheres.

Volney Faustini
Eu ouvi um trecho do Pondé falando e gostei muito. Acima mencionei a Intellectual Dark Web nos Estados Unidos (devo falar sobre ela num de meus próximos videos) – mas são intelectuais de diferentes linhas de fé e crença, pegos pela realidade da maldade humana. Isso os tem feito questionar a cultura, a tendência dominante e reinante, principalmente nos círculos acadêmicos onde impera o pensamento pós moderno e de esquerda.

Eduardo Chaves
Mudando um pouquinho de assunto… O livro do Alain de Botton que o Rev. Valdinei Ferreira [pastor titular da Catedral] citou ontem no sermão é, em Inglês, Religion for Atheists: A Non-believer’s Guide to the Uses of Religion. Pelo jeito traduziram para o Português como Ateísmo 2.0.

Eduardo Chaves
Corrijo-me. O título em Português não é Ateísmo 2.0, mas Religião para Ateus.

Vitor Chaves de Souza
Antes tarde do que nunca. Comprei o livro do Botton indicado acima neste fim de semana e iniciei a leitura 🙂

Elizeu R. Cremm
Meu amigo e “ovelha” Eduardo Chaves! Concordo com o que você registrou sobre a FATIPI e IPB. Espero não ser a partir dessa minha concordância com você, discriminado na igreja (Catedral) nem na denominação. Li também as ponderações do Pondé (sem trocadilho) kkkk…

Eduardo Chaves
Espero que não, mesmo… 🙂

Transcrito aqui neste blog em São Paulo, 9 de Setembro de 2019 — cerca de seis meses depois da publicação do artigo do Pondé e da discussão no Facebook.

De Fins e Origens

[Este artigo foi publicado primeiro (em 23/08/2019) em meu blog Chaves Space, no endereço https://chaves.space/2019/08/23/de-fins-e-origens/. Republico-o aqui pelas implicações que tem para a discussão de questões teológicas.]

Parece que, à medida que a vida avança, e o que resta dela se reduz, a gente começa a se importar mais com questões perenes e essenciais, e menos com as coisas fugidias, acessórias, do dia-a-dia.

Mais e mais tenho concentrado minhas leituras e reflexões em quatro autores que foram importantes em minha vida em diferentes momentos: David Hume, Bertrand Russell, Karl Popper e Ayn Rand.

Neste artiguete quero me referir a dois desses autores: Russell e Popper. O que vou fizer eu encontrei em livros deles pelos quais passei os olhos hoje.

Primeiro, Russell.

Numa passagem do seu livro The Scientific Outlook, Russell afirma que há uma diferença importante entre sabedoria e conhecimento — em especial o chamado “conhecimento científico”. A sabedoria tem que ver com possuir uma concepção clara e defensável dos fins da vida, de para onde devemos caminhar. A ciência não nos ajuda a conquistar essa sabedoria. Ela, quando muito, pode nos ajudar a chegar lá, uma vez que tenhamos definido para onde devemos ir. A ciência lida com meios, não com fins, com fatos, não com valores. Assim, ela pode nos ajudar a “vencer as urzes da jornada”, para usar a bela expressão de Mário Pederneiras (no soneto “Suave Caminho”) — mas ela não consegue nos fixar fins, objetivos, metas.

A filosofia e a literatura, por outro lado, transitam bem melhor no reino dos fins, em que o que impera é a sabedoria, não o conhecimento.

Segundo, Popper.

Num artigo sobre a liberdade humana, ao qual ele deu o título de “Indeterminism is not Enough”, ele afirma que nem a ciência, nem a filosofia, nem nenhuma outra disciplina racional, vão conseguir dar respostas convincentes ao que ele chama de alguns “milagres” (quatro) em meio aos quais vivemos.

  • O primeiro é o de como surgiu o universo físico ou material.
  • O segundo é o de como surgiu a vida nesse universo.
  • O terceiro é o de como surgiu a autoconsciência em alguns seres viventes.
  • O quarto é o de como surgiram, entre os seres autoconscientes, a razão e a linguagem que tornaram possível o aparecimento da espécie homo sapiens.

Provavelmente teremos de reivindicar total agnosticismo em relação a essas questões, que nem a filosofia, nem muito menos a ciência, pode responder.

Por fim, concluo eu, teremos de tentar, modesta e humildemente, definir fins para a nossa vida, sem termos conhecimento das origens – do mundo, da vida, da mente, da mente especificamente humana e da linguagem conceitual da qual ela, segundo tudo indica, é inseparável.

Kant uma vez disse que as grandes questões que devem preocupar o ser humano são:

  • Quem sou?
  • De onde vim?
  • Para onde vou?
  • Como é que eu sei?

A resposta a última pergunta é: “Não sabemos” — e ela implica a mesma resposta às demais perguntas — exceto à terceira, se esta for formulada em uma dimensão estritamente humana, em que cada um de nós define os seus próprios fins na vida, à luz dos valores que lhe dão algum sentido.

Em Salto, 23 de Agosto de 2019 (3 horas da manhã), republicado neste blog em São Paulo, 9 de Setembro de 2019

A Ciência e o Sagrado: O Alargamento do Natural e o Encolhimento de Deus

Ou vejamos.

A religião (em que Deus geralmente figura proeminentemente) teve início, segundo tudo indica, diante da necessidade de o ser humano tentar entender – e explicar para os outros – fenômenos que, à primeira vista, pareciam ininteligíveis – e, portanto, inexplicáveis.

Por que é que o meu filho morreu logo depois de nascer e o do vizinho não? Por que é que a minha colheita foi boa e a do vizinho ruim, quando aparentemente fizemos, no plantio, no cultivo e na colheita, as mesmas coisas? Por que é que, de vez em quando, há enchentes que arrasam tudo o que existe – mas algumas pessoas, de forma aparentemente inexplicável, são salvas? Por que é que o enfarte de um permite que ele se restabeleça e o de outro é fulminante e o mata no ato? Por que é que existem raios que matam pessoas e animais e destroem propriedades? Porque há pessoas de diferentes cores? Por que é que algumas pessoas parecem acumular em si mesmas tudo o que é característica positiva e talento, e outras parecem não ter nenhuma dessas características positivas e aparentemente não têm talento algum? Por que os seres humanos falam línguas diferentes?

Para os povos primitivos a maneira mais fácil de explicar esses fenômenos era atribuindo-lhes causas pessoais, não causas puramente naturais. Os povos primitivos eram politeístas, e acreditavam na existência de inúmeros deuses – segundo eles, havia deus para tudo o que é coisa: um deus para a trovão, outro para o raio, outro para as tempestades, outro para as colheitas, outro para a fecundidade, outro para o amor, etc. Daí para o surgimento de práticas religiosas a distância é pequena: se eu agradar este ou aquele deus, através de oferendas e sacrifícios, através de louvor e adoração, ele deverá “abençoar-me e guardar-me, velar sobre o meu levantar e o meu deitar, erguer para mim o seu rosto e me dar paz” (mistura de orações judaicas antigas).

No mundo antigo, tudo era religião, deuses explicavam tudo, a esfera do sagrado era ampla – e a esfera do natural, e, consequentemente da razão e da ciência (esta explicando o universo natural) estreita.

Com o surgimento da ciência, a esfera do natural foi sendo gradualmente alargada e a esfera do sagrado foi sendo gradativamente reduzida – Deus foi se encolhendo. Por quê? Porque a ciência começou a ser capaz de explicar eventos naturais através de causas naturais, não de causas sobrenaturais (ação de deuses pessoais). Marés? Explicam-nas as fases da lua? Boa ou má colheita? Explicam-nas técnicas agrícolas, época de plantio, técnicas de cultivo, como tratamento da terra, fertilizantes, etc., a forma da colheita… Doença e saúde não eram mais atribuíveis a espíritos maus, causadores de doenças, nem sucesso à ação de poderosos anjos da guarda, protetores da saúde…

É verdade que, no surgimento da ciência moderna, alguns filósofos e teólogos acreditavam que sempre haveria eventos que a ciência nunca conseguiria explicar. [Vide, acerca dessa questão, meu artigo “Milagres, a História e a Ciência: Uma Análise do Argumento de Hume”, na revista Manuscrito, de 1978). Esses filósofos e teólogos acreditavam ser capazes de dizer, a priori, o que a ciência poderia ou não poderia explicar, porque (a) aristotelicamente, acreditavam que cada ser tem uma natureza ou essência inteligível, e (b) também acreditavam que é possível descobrir a natureza de qualquer ser, e, por conseguinte, determinar o que esse ser é capaz ou não é capaz de realizar, por suas próprias forças. Se um ser (animado ou inanimado) realiza algo que jaz além de sua capacidade, não pode ter sido a causa eficiente do que se produziu, que deve ser atribuída a um agente sobrenatural (qualificando-se o fato como um milagre, portanto).

Gradativamente, porém, a ciência opôs a essa fé uma crença metafísica oposta: a de que, mesmo que a ciência atual não explique um determinado fenômeno, ele poderá ser explicado cientificamente (i.e., natural e não sobrenaturalmente) pela ciência do futuro. Essa crença metafísica pressupõe (a) o abandono da ideia aristotélica de que é possível conhecer a priori a natureza ou essência das coisas, e (b) a adoção da ideia de que as coisas não têm natureza ou essência cognoscível a priori, e que a única forma de saber o que uma coisa é ou não capaz de fazer é através da experiência – ou seja, a posteriori. Assim, admite-se a possibilidade de que eventos anteriormente considerados miraculosos aconteçam (curas, por exemplo), mas apenas porque se retira deles o caráter miraculoso, sendo eles transformados em eventos puramente naturais, explicáveis por causas não sobrenaturais (como a sugestão, no caso de curas).

Isso posto, não é difícil entender porque, à medida que o conhecimento do universo se alargava, o espaço reservado a Deus encolhia, à medida que a ciência avançava o sagrado recuava.

Note-se que a ciência, além de remeter para o futuro a explicação de alguns acontecimentos que não consegue explicar hoje, também admite a possibilidade de que, na vida das pessoas, possa haver, em alguma medida, sorte e azar. Os antigos tendiam a acreditar num universo talvez mais determinista do que a ciência – só que o determinismo dos antigos era de caráter pessoal, e, por isso, frequentemente caprichoso, suscetível a preces, orações, oferendas, sacrifícios, etc., enquanto o determinismo da ciência é natural – uma sequência de eventos determina a seguinte. Neste caso, é uma questão de sorte ou azar em que sequência de eventos uma pessoa em particular pode se encontrar. Se está numa sequência de eventos que lhe trará infortúnio, nenhuma prece, oração, oferenda ou sacrifício mudará o resultado. [Vide a esse respeito um breve artigo que escrevi, faz tempo, sobre “Sorte e Azar”, e uma série de pequenos artigos meus sobre a providência e as coincidências – aquilo que chamo de “provincidência”… Eles estão todos em meus blogs.]

Note-se também que a ação humana só foi ganhando espaço dentro do universo determinista da ciência aos poucos e com dificuldade – e não sem enfrentar grande oposição.

Os deterministas mais rígidos acreditavam que mesmo a ação humana é plenamente determinada por causas anteriores, e que, portanto, não é possível imputar responsabilidade a um ser humano, da mesma forma que não é impossível imputá-la a um rio que destrói e mata.

Os defensores do livre arbítrio, no que diz respeito à ação humana (ainda que plenamente deterministas em relação a eventos naturais), acreditavam que a ação humana é explicável em termos de razões, de objetivos a serem alcançados, não de causas puramente naturais. Assim, postulavam que uma ação humana pode iniciar uma nova sequência causal, que não tem causas antecedentes e que só pode ser explicável pela decisão livre de um ser humano de alcançar algum objetivo através da realização de uma sequência de ações.

Esse desacordo tem levado a uma grande disputa acerca da explicação da ação humana. Uma ação humana, segundo os defensores do livre arbítrio, inicia uma sequência causal totalmente nova, quebrando a cadeia determinista dos eventos naturais.

Mas, se é possível que uma ação humana quebre uma cadeia causal natural, por que não admitir ação sobrenatural – genuínos milagres, enfim, atos de Deus? A unidade dificuldade está em estabelecer a existência de Deus, ou do sobrenatural, independentemente dos fatos que supostamente justificariam a crença na sua existência. Se fosse possível estabelecer que Deus existe através de um argumento a priori (como Anselmo e Descartes tentaram fazer), daí sim seria possível invocar a ação divina para explicar sequências causais doutra forma inexplicáveis. Mas usar sequências causais inexplicáveis como justificar a crença na existência de um Deus não doutra forma demonstrada e, depois, usar a existência de Deus para explicar as sequências causais em pauta, parece envolver a falácia do argumento em círculo, do petitio principii.

Enfim…

Fazer o quê? Apelar para a fé? Mas por que para alguns ter fé, crer em entidades ou eventos sem que haja, para essas entidades e para esses eventos, evidência ou justificativa bastantes, parece tão fácil e, para outros, tão difícil que beira o impossível?

Fazer o quê? Apelar para a predestinação? Mas a predestinação pressupõe a existência de um Deus que predestina – e é a existência desse Deus que se tornou problemática… Como os seus milagres, a própria existência de um Deus milagreiro e predestinador parece ter sido expulsa do universo – que deixou de conter uma dimensão sobrenatural e passou a ser visto como apenas natural – se bem que, em alguns aspectos, profundamente misterioso – na verdade, agora, tão misterioso e incrível que agora é o própria positivismo da ciência que é questionado…

Em Tempo: Você tendo tempo e achando este artigo interessante, procure ler o livrinho de David Hume, The Natural History of Religion.

Iniciado em Campinas, 1997 (26 de Outubro); terminado (?) em Salto, 2019 (7 de Janeiro).

A Providência e o Acaso (Versão Revista)

[Este artigo é uma versão revista de um artigo publicado neste mesmo blog neste URL]

https://theological.space/2017/09/28/a-providencia-e-o-acaso/

o O o

1. Preâmbulo Histórico

Hoje, quando reviso este artigo, é 24 de Agosto de 2018. Daqui a dez dias (Agosto tem 31 dias), no dia 3 de Setembro, fará 50 anos que comprei, em 1968, orgulhosamente, minha primeira cópia (de meia dúzia que tenho hoje, contando as publicadas como e-book) das Institutas de Calvino. A primeira cópia que comprei foi aquela brilhantemente traduzida para o Inglês por meu querido professor Ford Lewis Battles, e publicada por The Westminster Press, em dois volumes, com edição de John T. McNeill. Foi Battles que fez com que eu me apaixonasse pela História da Igreja (e foi Dietrich Ritschl, também meu professor, que fez com que eu me apaixonasse pela História do Pensamento Cristão (e pela História das Ideias do Pensamento Ocidental).

Comprei minha primeira cópia das Institutas, em 3/9/1968, porque havia decidido fazer um seminário avançado, com um ano de duração, no Mestrado em Teologia (Divinity) que eu fazia no Pittsburgh Theological Seminary, em Pittsburgh. O curso valia também para o Doutorado, que vim a fazer depois. O professor que conduziria o seminário era o próprio Battles, tradutor da obra e grande autoridade em Calvino, que eu já conhecera no ano letivo anterior (Set-1967/Mai-1968) quando ministrou dois semestres de História da Igreja, cobrindo História da Igreja Antiga e História da Igreja Medieval. Como disse, fiquei apaixonado pela área. O Seminário sobre as Institutas teria início naquela semana de 2 de Setembro, mas, infelizmente, não me lembro o dia da semana em que nos encontraríamos com Battles — creio que seria nas quintas-feiras à tarde. Os americanos comemoram na primeira segunda-feira de Setembro o Dia do Trabalho (Labor Day), logo não houve aulas no dia 2 de Setembro, pois foi feriado.

No seu Prefácio ao livro Analysis of the Institutes of the Christian Religion of John Calvin, preparado pelo mesmo Ford Lewis Battles, com a assistência de meu caro colega, John Walchenbach, colega no mestrado e, depois, também no doutorado, em Pittsburgh), afirma Walchenbach, acerca do seminário avançado de Battles:

“Quando os alunos eram informados, na primeira aula do seminário, que uma das exigências do curso era ler, de capa a capa, a edição de 1559 das Institutas [que passa das 1.700 páginas na edição traduzida por Battles], muitos alunos concluíam que não havia sido uma boa decisão se matricular nessa disciplina eletiva de dois semestres e desistiam dela, cancelando sua matrícula. Como seria possível tratar todos os loci teológicos contidos na obra definitiva de Calvino? No entanto, aqueles que não desistiam, e que resolviam combater o bom combate e acabar a carreira, saíam do curso, ao final do ano letivo, com uma importante visão geral do pensamento de Calvino que é essencial para a compreensão de qualquer doutrina em particular” (p. 5).

Avidamente comecei a ler as Institutas, bem adiante do ritmo da classe. Sempre fiz isso. Queria chegar rapidamente aos capítulos em que Calvino discutia as doutrinas da providência e da predestinação, as mais controvertidas, no meu entender. A discussão de cada uma dessas duas doutrinas não fica próxima uma da outra. A providência é discutida nos Capítulos XVI a XVIII do Livro Primeiro, que discute a doutrina do “Conhecimento de Deus, o Criador”. A doutrina da providência é, portanto, discutida no contexto da doutrina da criação. A sequência é lógica, pois a doutrina da providência procura explicar como Deus sustenta e governa toda a sua criação: o mundo natural (que inclui as coisas vivas não-humanas), o mundo propriamente inteligente (que para Calvino inclui o mundo humano e o mundo angélico), e, de forma especialíssima, uma parte especial desse mundo, que envolve a vida dos eleitos (entre os quais não estão incluídos todos os anjos). A predestinação é discutida nos Capítulos XXI a XXIV do Livro Terceiro, que trata da salvação, em especial da “Justificação pela Fé”. A discussão procura explicar porque apenas alguns são justificados, os eleitos, não outros (os rejeitados, para falar claramente).

No final de Setembro de 1968 – faz quase cinquenta anos no momento em que estou escrevendo a revisão deste artigo – escrevi uma notinha para mim mesmo, numa folha de um bloquinho de notas chamado “Just Remember”, distribuído gratuita e generosamente aos seminaristas pelo Presbyterian Ministers’ Fund (um Fundo de Pensão para Pastores que nos queria como clientes já desde o tempo do seminário, antes mesmo de nos tornarmos pastores – algo que eu nunca vim a ser). Inseri a notinha entre a página 210, em que começa o Capítulo XVII, e a página 211 do primeiro volume das Institutas. Está lá até hoje, junto com várias outras em outros lugares.

A notinha em questão dizia (em Inglês, em letra miudinha, escrita com lápis número 3 bem apontado, difícil, mas não impossível de ler hoje):

“Especialmente no Capítulo XVII, e, parcialmente, nos Capítulos XVI e XVII, Calvino tenta fazer basicamente o seguinte:

a. Evitar que Satanás seja visto como onipotente, por ter conseguido atrapalhar aquilo que Deus criou com tanto cuidado (algo que limitaria a liberdade de Deus);

b. Mostrar que o ser humano é, sem dúvida, responsável pelas suas ações, e, por conseguinte, responsável pela sua queda (o pecado original);

c. Mostrar que, apesar da liberdade humana, a providência divina abrange até mesmo as coisas mais insignificantes, de modo que nada, absolutamente nada, acontece sem que Deus permita, queira e determine (nem mesmo a queda de nossos primeiros pais).

Parece-me que é impossível, diante do que consta no item ‘c’, compatibilizar esses três objetivos, o que me leva a concluir que, por conseguinte, Calvino falhou em seu empreendimento, em especial nos seguintes quesitos:

* Mostrar que o ser humano é livre – algo que parece impossível, diante do entendimento da providência divina constante do item ‘c’;

* Livrar Deus da responsabilidade pelo mal, isto é, pela introdução do pecado no mundo que ele criou – algo que igualmente parece impossível, também diante do que o item ‘c’ diz acerca da providência divina.

É isso.”

Em outras palavras: se a providência divina é entendida como Calvino a entende, é impossível que o ser humano tenha real livre arbítrio e, portanto, diante da não-onipotência de Satanás, a responsabilidade pela introdução do pecado no mundo recai sobre Deus. Lógica é lógica. Percebi já em 1968 que esse era o maior problema a desafiar a teologia calvinista. E ele se desdobra, logicamente, no chamado “problema do mal”, como David Hume, filósofo escocês do século 18 (1711-1776), considerado por muitos o maior filósofo do mundo a escrever em língua inglesa, claramente percebeu, construindo em cima desse problema sua mais potente crítica ao cristianismo calvinista que predominava em seu país naquela época (e ainda predomina). Esse desafio mexeu seriamente comigo a ponto de me levar a escrever minha tese de doutorado, em 1971-1972, sobre a crítica filosófica que David Hume fez do cristianismo e o seu significado para a história do pensamento cristão (em sua versão protestante calvinista). O título de minha tese foi David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought (aprovada em 8/8/1972; 615 páginas). O orientador foi William Warren Bartley III, falecido no início de 1990 (5 de Fevereiro), que foi orientando, “discípulo amado” e testamenteiro intelectual de Karl R. Popper. Assim, Popper acabou sendo meu “avô” no plano de orientação intelectual. (Vide https://en.wikipedia.org/wiki/W._W._Bartley_III).

Admito que eu era meio arrogante naquela época. Talvez ainda seja um pouco. Em Setembro de 1968 eu havia feito 25 anos. Neste Setembro (daqui a treze ou quatorze dias) farei 75 (Deo volente – mesmo nos meus tempos de maior ceticismo, nunca deixei de acrescentar essa cláusula, em geral assim em Latim, sinal de que nossa vida é frágil e precária e não temos controle total sobre ela). Eu me achava em condição de dizer então que Calvino falhou em algo que tentou, porque tentou fazer algo impossível: compatibilizar enunciados que eram logicamente contraditórios. Não conseguir fazer o impossível não me parecia, então, nem me parece agora, algo muito sério. Logo, minha admiração por Calvino não diminuiu por esse fato (embora minha admiração por Hume tenha aumentado por ter mostrado a contradição de forma tão clara). Mas a minha arrogância de criticar frontalmente a Calvino revelava um destemor fantástico de que alguém, mais velho e experiente, pudesse apontar falhas em minha leitura de Calvino ou em meu raciocínio. Ninguém o fez, em Pittsburgh. Nem depois. No entanto, em 1976, oito anos depois, quando eu já estava na UNICAMP, e estava para completar 33 anos, fiz o mesmo tipo de crítica a Kant, provocando o prof. Gerard Lebrun, francês, então meu colega na USP, mas bem mais velho e experiente do que eu, a me admoestar: “Você ainda vai descobrir que é sempre temerário fazer críticas assim abertas e frontais aos grandes pensadores”. Bem, quarenta e um anos depois, não descobri ainda – não sei se digo feliz ou lamentavelmente. Mas a lembrança de minha arrogância aos 25 anos me faz ser tolerante com arrogâncias semelhantes ou parecidas que vejo em seminaristas de hoje com mais ou menos a mesma idade que eu tinha em 1968. Nunca sucumbi à tentação de dizer-lhes: “Escutem, meninos, ouçam o que eu lhes digo: eu tenho quase 50 anos a mais do que vocês nesse jogo…”. Nunca disse, mas confesso que às vezes tive vontade!

2. Providência: A Doutrina e a Crítica Básica

A. A Doutrina em Calvino

Uma coisa que admiro em Calvino é a franqueza absolutamente clara e transparente que ele demonstra ao dizer coisas que ele sabe que vão deixar os outros, não tão corajosos como ele, arrepiados… Na maior parte dos capítulos em que trata da providência, ele a contrasta com o acaso ou a fortuna (o termo ‘fortuna’ sendo neutro: pode significar sorte ou azar). Ele faz o contraste entre a visão bíblica, que ele considera verdadeira e corretamente resumida por ele, e a versão filosófica (que ele chama de “carnal”), como a que viria a ser defendida por Hume no século 18. A opinião que defende o acaso Calvino chama de “opinião depravada” (Livro Primeiro, Capítulo XVI, Seção 2). Para Calvino, não há acaso no mundo.

Nessa seção (Livro Primeiro, Capítulo XVI, Seção 2) Calvino supõe dois conjuntos de situações e apresenta, no terceiro parágrafo citado, a sua conclusão:

“Imaginem, de um lado, um homem que cai nas mãos de ladrões, ou que é cercado por bestas selvagens; ou um homem que naufraga em alto mar por causa de uma tempestade; ou um homem que morre ao ser atingido por uma casa que desaba, ou uma árvore, que cai.

Imaginem, por outro lado, um homem que, perdido no deserto, consegue achar o seu caminho; ou que, tendo naufragado, é levado à praia pelas ondas; ou que, por um triz, escapa da morte em um incidente qualquer.

A razão carnal atribui todos esses acontecimentos, tanto os adversos como os favoráveis, ao acaso ou à fortuna. Mas ninguém que tenha aprendido com Cristo que todos os fios de cabelo de sua cabeça estão contados [Mat. 10:30] terá necessidade de ficar procurando o que causou esses acontecimentos imaginados. Quem aprendeu com Cristo sabe que todos os eventos são, em última instância, causados e governados pelo plano secreto de Deus.” [Ênfase acrescentada.]

Calvino continua: “Nada acontece sem a deliberação divina” (Seção 3 do mesmo capítulo). “Para os crentes é um grande conforto, especialmente em tempos de adversidade, saber que nada acontece para eles que não seja pela ordem e pelo comando de Deus, pois eles estão debaixo de sua mão” (Idem; ênfase acrescentada).

Calvino não hesita (e aqui está sua coragem) em dizer até aquilo que pode chocar alguns…

“Davi proclama que os bebês que ainda mamam nos seios de suas mães celebram a glória de Deus [Sal. 8:2], pois imediatamente depois que saem da barriga de suas mães eles encontram alimento pronto, nos seios das mães, que foi preparado para eles pelo cuidado celeste [pela providência divina]. Essa afirmação, geralmente verdadeira, não escapa à experiência dos nossos sentidos, que também constata que algumas mães têm seios grandes e abundantes de leite, enquanto outras são quase secas. A razão disso é que Deus quis alimentar um bebê de forma mais liberal, e o outro de forma mais escassa.  . . .   As criaturas são governadas pelo plano secreto de Deus de tal forma que nada acontece, exceto aquilo que foi consciente e deliberadamente decretado por ele” (Idem). [Ênfase acrescentada.]

Até os peitões e os peitinhos são obra da Providência Divina…

Nas seções seguintes Calvino distingue entre providência geral e providência especial. Se deixarmos Calvino de lado aqui, que trata da questão de forma sucinta, e nos basearmos em seus intérpretes, encontraremos diferenciadas três formas da providência:

  1. A providentia generalis, através da qual Deus sustenta (mantém em existência e funcionamento) e governa (determina o que nele acontece) o mundo natural (incluindo os seres biológicos não-racionais – “até o menor pardal [cp. Mat. 10:29])” [Livro Primeiro, Capítulo XVI, Seção 1];
  2. A providentia specialis, através da qual Deus rege as ações dos seres racionais (isto é, dos seres humanos e dos anjos);
  3. A providentia specialissima, através da qual Deus conduz as ações dos seus eleitos, em particular (que são um segmento dos seres racionais).

Especialmente os teólogos reformados alemães gostam muito dessa distinção tripartite. Uma busca no Google por “providentia generalis, providentia specialis, et providentia specialissima” fornecerá quase que só referências a autores que escrevem em Alemão – ou em Latim. Uma benvinda exceção é o artigo em .pdf no seguinte endereço: http://theschoenstattcloud.com/spirituality/divine-providence?download=20:divine-providence-part-1. Esse artigo, porém, é escrito por um frade — católico, portanto — que acha que o principal critério que demonstra se (ou que) somos eleitos é um profundo e eterno amor pela mãe de Deus (theotokos)…

B. A Crítica Básica

A doutrina cristã da providência divina é uma doutrina epistemicamente vazia segundo os filósofos da religião de tendência analítica, entre os quais me sinto mais à vontade. A razão para essa afirmação não é difícil de entender: é impossível aplicar a doutrina da providência divina a priori, antes de uma determinada coisa acontecer. Cito um exemplo comum nas hostes protestantes. Um consagrado cristão fica doente e morre bem antes daquela que os não-cristãos diriam que seria a sua hora. Os cristãos, porém, consideram que Deus decidiu leva-lo, em sua inescrutável sabedoria e total soberania, e que, portanto, aquela era de fato a sua hora. Nós, reles mortais, infinitamente distantes da onisciência divina, podemos até achar que, se o dito cujo (o de cujus) vivesse mais tempo, poderia fazer muita coisa boa ainda pela causa cristã, pelos seus semelhantes, pelo mundo como um todo, etc. Mas com a providência divina não se discute. É essa a doutrina.

No entanto, se, quando esse indivíduo adoeceu, mas ainda não dava mostras de que pudesse vir a morrer em decorrência de sua doença, a gente perguntasse a um grupo de cristãos, “O que será que a providência divina fará: será que ele vai sarar ou será que ele vai morrer?”, nenhum deles se arriscaria a prever. Mesmo nas orações que os cristãos fazem à beira do leito de um enfermo, eles dizem apenas: “Se for da tua vontade, ó Pai, cura este teu servo…”. Os mais ousados e corajosos acrescentam: “Mas se for da tua vontade levar este teu servo…”. [Consta, numa piada evangélica, que um enfermo, ao ouvir essa cláusula explicitada, teria dito “Epa!!!”].

Logo, se a doutrina da providência divina é incapaz de ser aplicada na previsão do que vai ou não vai acontecer, ela é epistemicamente vácua — não tem conteúdo cognitivo. Assim, não pode ser testada (verificada ou falsificada) e, por conseguinte, não pode nem ser considerada falsa (nem, muito menos, verdadeira: ela é vazia, epistemologicamente falando. No entender dos filósofos analíticos da religião, ela não serve para nada. Se o doente se restabelece, ótimo: foi da vontade de Deus. Se o doente morre, lamenta-se, mas também foi da vontade de Deus (e Deus, mais do que ninguém, sabe o que faz). Em outras palavras: qualquer coisa que de fato ou possivelmente aconteça é compatível com a doutrina da providência divina. Nenhum fato, real ou possível, é capaz de refuta-la, falsifica-la, ou desmenti-la. Ela não contém ou implica, portanto, nenhum conteúdo empírico: não determina nem proíbe nada (do nosso ângulo de visão ou da nossa perspectiva, por assim dizer). Ex ante (antes do fato), do nosso ângulo de visão, por mais que acreditemos na providência, não é possível “pré-ver” nada – logo, de que serve a doutrina? Ex post (depois do fato), qualquer um (até eu) é capaz de “pós-ver” o que aconteceu. Logo, de que serve a doutrina?

Apesar dessa crítica instigante, milhões de pessoas acreditam piamente na doutrina da providência divina. Uma leitura, ainda que rápida, do Facebook prova que os cristãos, em geral, não abrem mão dela. Se acontece algo que eles acham certo e justo, dizem: “Deus é fiel”; se acontece algo que eles não acham certo e justo, mesmo assim se curvam ao que consideram a vontade de Deus e dizem: “Deus sabe o que faz”. Antes de acontecer a coisa, dizem: “Deus está sempre em controle” – o que quer dizer: qualquer coisa que vier a acontecer foi porque Deus quis.

Os céticos (ou os ateus) acreditam que uma doutrina assim não serve para nada (do ponto de vista epistêmico, isto é, do ponto de vista do conhecimento): ela não nos permite prever o que vai acontecer e o que vai deixar de acontecer.

C. Uma Resposta a Essa Crítica

Mas quer isso dizer que a doutrina da providência divina é totalmente inútil? Talvez não. Ela pode ter grande utilidade não-epistêmica. Ela permite que o cristão, não importa o que aconteça, bom ou ruim, se sinta confortado, fique com a sensação de que há alguém em controle, dirigindo o barco, por assim dizer. “O barco é pequeno e grande é o mar – mas Jesus [vale dizer, Deus] é o piloto, e tudo vai bem”. Isso se canta antes. Se tudo não for bem, o barco naufragar, e todos morrerem, os que não estavam no barco vão dizer, depois: “Deus sabe o que faz; se o barco naufragou é porque ele tinha uma razão para permitir que isso acontecesse, razão que a gente desconhece mas sabe que é para o bem daqueles que o amam…” E isso conforta. Outras doutrinas cristãs acrescentam conforto: o cristão que morre não terminou sua vida: ele “dormiu no Senhor” e está em um lugar muito melhor do que o lugar em que nós, que ainda não morremos, estamos… “Ele (o que morreu) passou desta (vida) para (algo) melhor”. William James escreveu um belo artigo (se bem que muito criticado) sobre isso, sob o título “The Will to Believe” (A Vontade de Crer).

As religiões fazem sucesso, entre elas a cristã, porque essas doutrinas de fato confortam, independentemente de suas qualificações epistêmicas, isto é, independentemente de nos permitirem prever, ex ante, o que vai acontecer.

Outras religiões têm mecanismos de conforto semelhantes? Certamente, quase todas. Se não possuem uma doutrina da providência divina, enquanto tal, têm doutrinas de destino, karma, etc. que desempenham basicamente o mesmo papel. Mesmo religiões meio ateias, como o Budismo, acreditam em coisas assim (destino, karma, etc.) – que não expressam, necessariamente, a vontade de um ser pessoal, Deus, mas expressam algo parecido como uma lei determinista do universo: o que tem de acontecer vai acontecer e na hora que tiver de acontecer – nem um segundo antes, nem um segundo depois. “A hora dele chegou”, dizem os crentes de quase todas as religiões, cristãs ou não, quando alguém morre.

3. O Acaso (ou a Fortuna)

E os céticos (ou os ateus) têm algum mecanismo de conforto equivalente?

Na qualidade de quem já foi cético por muito tempo e, em muitos aspectos, ainda é, estou convicto de que a resposta é sim – embora não seja um mecanismo tão seguro (“tão tiro e queda” – para quem não conhece a expressão, uma coisa é “tiro e queda” quando é certo que vai, ou era certo que ia, acontecer) nem tão confortante como a doutrina da providência divina.

Os céticos (e os ateus) acreditam no acaso ou na fortuna (que são conceitos, para todos os fins deste artigo, equivalentes – vou usar apenas o primeiro deles daqui para frente).

O acaso é o oposto do determinismo, seja esse determinismo causado pela providência divina, pelo destino, pelo karma ou por qualquer outra causa. Quem acredita no acaso sabe que, em regra, as coisas podem acontecer de um jeito ou de outro, o doente pode sarar ou morrer, a criança que nasceu pode dar certo e se tornar um sucesso, ou dar errado e se tornar um fracasso completo. Nada disso é possível prever. É o acaso que permite que a gente, diante de algo que está para acontecer, tanto possa vir a ter sorte (sair-se bem) como possa vir a ter azar (sair-se mal). Em princípio, pode acontecer, em cada caso, tanto uma coisa como outra.

Mas o que os céticos (ou os ateus) acreditam para cada caso também vale para a somatória ou o cumulativo do que acontece para uma pessoa ao longo de um determinado tempo ou mesmo ao longo de toda uma vida. Também isso é “governado” (i.e., permitido, por assim dizer) pelo acaso. Algumas pessoas têm mais sorte, ou mais azar, do que outras, levada em conta uma série prolongada de acontecimentos. A chamada lei da probabilidade parece não se aplicar aqui. A lei da probabilidade diria que, numa sequência longa de casos regidos pelo acaso, o número de “sortes” e de “azares” tenderia a se igualar. Mas isso não acontece, necessariamente, no caso em discussão. Uns têm muito mais sorte do que azar, o que faz com que, num quadro comparativo, uns tenham muito mais sorte do que outros e uns muito mais azar do que outros. Se me permitem exemplificar com o caso de uma pessoa que tem tido muito mais sorte do que azar, que, na verdade, tem tido muito mais sorte do que merece, “esse cara sou eu”. Mesmo as coisas que, assim que aconteceram, me pareciam péssimas, me pareciam representar um azar danado, um desastre total, algo como “game over”, acabaram se convertendo em coisas mais do que boas, excelentes, representando uma sorte grande, o melhor que poderia ter-me acontecido… Não vou detalhar porque parecerá que dou valor exagerado à minha experiência.

Ilustro com outro caso, portanto: o de José, filho de Jacó, o chamado “José do Egito”. Uma série enorme de coisas ruins aconteceram para ele – na verdade, foram feitas para ele por terceiros, entre os quais especialmente os seus irmãos mais velhos. Mas, “no frigir dos ovos”, tudo o que lhe aconteceu ou que lhe foi feito acabou operando para o seu bem – mais do que isso: foi o melhor que poderia lhe ter acontecido. Quem não conhece a história, que leia os capítulos 37 a 50 do livro de Gênesis. É interessante. No capítulo 50, há um verso, o 20, que resume a sua história (e, de certo modo, mutatis mutandis, a minha), só que atribuindo a Deus o que um cético (ou um ateu) atribuiria à sorte. Diz José, dirigindo-se aos seus irmãos, no final da história: “Vós, na verdade, intentastes muito mal contra mim; mas Deus transformou o mal em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida”. [Na ocasião José estava dando alimento para seus irmãos levarem à sua família, que estava em perigo de morrer de fome.] A lição é: para quem é eleito, ou para quem tem muita sorte, até o que lhe é feito com má intenção, para causar-lhe o mal, se converte em bem…

Muito bem… Caminho para o fim. Mas será que, para o cético (ou ateu) isso é feito pelo acaso assim às cegas?

Os cristãos, que não acreditam no acaso, mas, sim, na providência divina, acham que o curso da nossa vida não pode ser algo que acontece às cegas. Herdaram sua crença, nesse aspecto, dos judeus. Eles acreditam que há um Deus pessoal e preocupadíssimo até com detalhes e minúcias, que gerencia – na verdade, micro-gerencia — o mundo, transformando o resultado das ações para que até o que é mal se torne bem. Para quem? Para todos? Certamente não. Apenas para aqueles que Deus escolheu e elegeu como seu povo (judeus) ou seus filhos (cristãos) – uma minoria. A esses ele trata bem, “dá sorte”, como se fosse (para os judeus e cristãos, evidentemente, não se trata de sorte), mesmo que eles não a mereçam. Os demais ele trata como eles merecem — culpados inegáveis que são (presume-se).

Os céticos (e ateus) acham por demais fantasiosa essa história de haver um Deus que criou a humanidade através de um casal, que deixou (ou determinou, segundo algumas interpretações) que nossos primeiros pais, Adão e Eva, o desobedecessem, e assim pecassem, que considerou toda a sua descendência pecadora, por causa do pecado dos primeiros pais, punindo os filhos pelo pecado remotíssimo dos pais, e, depois, aparentemente, resolveu não punir todos, escolhendo e elegendo, dentre todos os povos, um para ser o seu povo, em cuja descendência estava incluído Jesus, considerado seu filho, que morreu na cruz, etc…. Como disse, os céticos (e ateus) acham essa história um tanto fantasiosa “demais da conta”, como diriam os mineiros. Preferem achar que uns poucos são privilegiados pelo cego acaso com muita sorte – sorte “demais da conta”. Outros, com azar exagerado. Mas como o acaso não é um ser, muito menos um ser pessoal, que toma decisões, escolhe e elege, não há como responsabiliza-lo e culpa-lo. Os cristãos, como eu já antevi quase cinquenta anos atrás, aí têm um problema sério: explicar como a total soberania de um Deus que tomou suas decisões antes da criação do mundo pode eximi-lo de responsabilidade e de culpa pelo pecado e pela decisão, aparentemente arbitrária, de salvar a uns, os que escolheu e elegeu, e condenar o resto a um sofrimento indescritível por toda a eternidade (as chamadas “penas eternas”).

Para o cético (ou o ateu), o “sortudo” e o “eleito” se equiparam. O primeiro é favorecido por um processo cego; o segundo por um ser onisciente, onipotente e, por cima todo-benevolente. Para o eleito Deus pode até parecer ser tudo isso. Mas o não-eleito, que passará toda a eternidade sofrendo no fogo do inferno, provavelmente tem outra opinião sobre o assunto.

Para mim, que sou “sortudo”, não há nenhum problema em me considerar “eleito” também. O cético (ou o ateu), quando se despede de alguém, deseja-lhe boa sorte. O eleito deseja que o outro possa também considerar-se um dos eleitos.

É tudo uma questão de visão de mundo, de cosmovisão, de world view, de Weltanschauung. Ou será que não?

Que visão de mundo adotar? Aqui concordo com Pascal na aposta que ele recomendou.

Se o cético aposta que é acaso, e é acaso, ele não ganha nem perde nada; se ele aposta que é acaso, e não é acaso (é Deus), ele perde tudo e fica muito mal…

Se eu aposto que é Deus, e não é Deus, eu nada ganho, nem perco; se eu aposto que é Deus, e é Deus, eu ganho o jackpot.

Logo, uma pessoa razoável faz o quê?

Por fim, mais uma dúvida cética: será que no final das contas é realmente apenas de uma aposta que se trata?

Em Salto, 28 de Setembro de 2017 (parcialmente revisado no dia seguinte e mais bem revisado hoje, em 24 de Agosto de 2018, menos de um ano depois — e duas semanas antes de eu fazer 75 anos).