Teologia Liberal: Uma Tentativa de Entendê-la – 1

Em seu brilhante livro, The Journey of Modern Theology: From Reconstruction to Deconstruction (InterVarsity Press, 2013 [1]), Roger E. Olson caracteriza a Teologia Moderna (nem toda ela liberal) da seguinte forma na sua Introdução:

“A teologia moderna pode ser caracterizada como pensar acerca de Deus no contexto da modernidade – isto é, no contexto do ethos cultural resultante do Iluminismo. O Iluminismo foi uma revolução intelectual que afetou toda a Europa, e, posteriormente, também as sociedades da América do Norte, que começou com o surgimento de um novo racionalismo na filosofia e na ciência do século 17. Os pensadores do Iluminismo ‘pensavam que estavam de posse não só de novos conhecimentos, mas, também, de uma nova forma de conhecer que os colocou na posição privilegiada de julgar os erros do passado e dar forma às realizações do futuro’. O Iluminismo, e sua descendente, a modernidade, serão o assunto dos capítulos iniciais desta obra [e, de forma resumida, desta Introdução]” [2].

De uma forma ou outra, o Iluminismo veio a questionar as seguintes seis teses básicas do Cristianismo tradicional:

  • A tese da existência de um Deus pessoal que, na qualidade de seu criador, transcende a natureza e providencialmente governa, tanto a natureza como a história;
  • A tese de que Deus é constituído por uma só natureza divina que, contudo, existe na forma de três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo;
  • A tese de que esse Deus se revelou na pessoa de seu filho Jesus Cristo, que deve ser visto como a encarnação de Deus, sendo plenamente Deus e Homem, que nasceu na terra, aqui exerceu seu ministério, realizou vários milagres (que transcendem a capacidade humana), morreu crucificado, ressuscitou e ascendeu aos céus, de onde voltará para julgar vivos e mortos;
  • A tese de que a morte de Jesus Cristo na cruz é suficiente para a expiação dos pecados da humanidade;
  • A tese de que a Bíblia, corretamente definida e compreendida, constitui o relato escrito dessa revelação de Deus;
  • A tese de que a fé é necessária para conhecer a Deus como ele deseja ser conhecido, para viver a vida que Deus quer que os homens vivam na terra, e, para obter a remissão de pecados e a salvação [3].

A Teologia Liberal que, como observei, é uma das manifestações da Teologia Moderna, questiona, de uma forma ou outra, ou radicalmente redefine, todas essas teses básicas do Cristianismo tradicional. Isso pode parecer um exagero, porque a Teologia Moderna, que começou como uma tendência, no início do século 18, tornou-se um movimento, ao longo do século 19 e parte do século 20, e, de certo modo, ainda continua viva, envolve um número elevado de teólogos que nem sempre concordam um com o outro. Mas, de certo modo, há um substrato de consenso que permeia os pontos de vista divergentes da maioria dos teólogos liberais, a saber:

  • A tese de que Deus, ao criar a natureza e, como parte dela, os seres humanos dotou-os de mecanismos (leis naturais, leis que regem o comportamento humano, e livre arbítrio, por exemplo) que permitem que eles (a natureza e a história humana) operem e evoluam independentemente de sua vontade ou supervisão;
  • A tese de que Deus é basicamente uno, não triúno, tese que imprime um caráter basicamente unitário à teologia liberal;
  • A tese de que Jesus Cristo foi uma pessoa que, através de seus ensinamentos e de sua vida, revelou, de forma inédita e quiçá única, como devemos viver neste mundo, tese que imprime um caráter cristológico à teologia liberal, sem postular a divindade de Jesus Cristo;
  • A tese de que as várias teorias da expiação são moralmente repugnantes por postular um Deus que exige alguma forma de compensação pelo pecado humano, na forma da morte de um justo em substituição à morte daqueles que poderiam merecer essa penalidade;
  • A tese de que a Bíblia é um livro escrito por homens, e, por conseguinte, de origem humana, que como tal, contém erros e incongruências, mas que relata a busca do homem por Deus e por uma vida, no plano individual e social, que lhe seria aceitável;
  • A tese de que a fé, em si, não é uma forma de conhecimento, sendo a experiência humana, iluminada e instruída pela razão, também humana, as duas únicas maneiras confiáveis de obter conhecimentos, sobre a natureza, sobre o ser humano, e sobre quaisquer outras realidades, rejeitando-se, portanto, a chamada “revelação” [a Bíblia] e o chamado “magistério” da igreja [a Tradição] como autoridades externas ao ser humano, que só são aceitáveis se e quando suas manifestações se coadunarem com os ditames da experiência humana iluminada e instruída pela razão [4].

Se os teólogos liberais foram acusados de aceitar, sem explicitar, a tese de que “o homem a medida de todas as coisas”, frase célebre do sofista Protágoras (490-415 AC), provavelmente eles não deixariam de reconhecer a validade da crítica, apontando ao fato de que não temos outro critério além da experiência e da razão para aferir a verdade de enunciados e a validade de argumentos que têm esses enunciados como premissas.

No fundo, podemos dizer que a essência da Teologia Liberal está nestas duas teses:

  • O ser humano, dada a sua natureza de ser que tem experiências e tem capacidade de refletir sobre ela através de sua razão, e que não possui outra forma de acesso ao conhecimento, tem a responsabilidade de avaliar criticamente as várias visões de mundo que lhe são apresentadas ou que ele mesmo constrói;
  • O cristão não é liberado dessa responsabilidade e, portanto, deve constantemente avaliar criticamente as ideias e as práticas que lhe são legadas diante daquilo que sua experiência, iluminada e instruída por sua razão, lhe mostra ser razoável aceitar, acomodando (adaptando, assim, o legado recebido de sua religião à visão de mundo que sua experiência, racionalmente interpretada, que lhe propõe no espaço e tempo em que vive, isto é, em sua contemporaneidade [5].

No meu artigo “’I Call Myself a Liberal’” eu estendo e esmiúço um pouco essa essência nos seguintes termos:

“O Liberalismo Teológico se caracteriza, a meu ver, por uma série de teses, a saber:

  • O Cristianismo não é uma religião única e totalmente diferente de outras: na verdade, ele é uma religião histórica, como todas as outras;
  • A evolução histórica do Cristianismo se deu em contato com o seu ambiente, contato através do qual ele deu e recebeu, influenciou e foi influenciado, numa dialética de acomodação;
  • O Cristianismo, como religião, não se baseia numa revelação de Deus para o homem, mas, sim, na busca do homem pelo infinito;
  • Conhecer a Deus é, na realidade, conhecer os sentimentos que levam o homem a tentar transcender sua limitação, sua dependência, sua finitude;
  • O núcleo essencial do Cristianismo está localizado na mensagem ética de Jesus que afirma que o amor a Deus se expressa no amor ao próximo;
  • A ética cristã não consiste de uma série de princípios ascéticos que determinam o afastamento do mundo, mas, sim, numa disposição e intenção pura voltada para implantar a unidade espiritual entre os homens e para criar uma rede básica de serviço ao próximo;
  • No Evangelho simples de Jesus (em contraposição à ortodoxia complexa do Catolicismo) dogmas e doutrinas não têm lugar, sendo substituídos pelo amor a Deus que se expressa no serviço ao próximo” [6] .

É isso.

No próximo post transcreverei duas páginas de um dos livros de Roger E. Olson para deixar mais claro o que é a Teologia Liberal. Até lá.

NOTAS

[1] Esse livro é uma revisão tão completa de um livro anterior, escrito por Roger E. Olson e Stanley J. Krenz (este prematuramente falecido em 2005), que justificou a remoção do nome do segundo autor da edição revista. O título do livro anterior era Twentieth-Century Theology: God and  the World in a Transitional Age (InterVarsity Press, 1992). Esse livro anterior está traduzido para o Português com o título A Teologia do Século 20 e os Anos Críticos do Século 21 (2a edição revisada, Editora Cultura Cristã, 2003). Comparando-se os índices dos dois livros, vê-se que o livro de 2013 é totalmente diferente do de 1992, embora alguns trechos do livro anterior tenham sido incorporados ao novo. Vide o Prefácio de Roger E. Olson ao novo livro, pp.11-14. (Tentei, há cerca de um ano e meio, convencer o Editor da Editora Cultura Cristã (antiga Casa Editora Presbiteriana), Rev. Cláudio Antônio Batista Marra, a traduzir também a versão mais recente do livro. Ele “refugou” afirmando que o agora único autor do livro, Roger E. Olson, é arminiano, e não calvinista ortodoxo.

[2] Op.cit., p.16. A passagem que Olson cita vem de James M. Byrne, Religion and the Enlightenment: From Descartes to Kant (Westminster John Knox, 1996), p.ix.

[3] Op.cit., pp.20-21. Reorganizei e reordenei algumas teses para tornar o resumo mais coerente e fácil de entender.

[4] Esse resumo é meu e não se encontra, nessa forma, no livro de Olson, embora tenha sido elaborado como o “negativo” dos seis pontos com que ele define a teologia cristão tradicional e faça uso de observações espalhadas ao longo do todo o livro.

[5] Novamente, essa formulação é minha, mas aproveita insights oriundos de várias fontes, não só de Olson. Vide, por exemplo, Gary Dorrien, The Making of American Liberal Theology: Imagining Progressive Religion – 1805-1900 (Westminster John Knox Press, 2001), p.xiii: “A ideia da teologia liberal tem aproximadamente três séculos. Em essência, ela é a ideia de que a teologia cristã pode ser genuinamente cristã sem se basear em autoridade externa. Desde o século 18, pensadores cristãos liberais vêm argumentando que a religião deve ser moderna e progressista e que o sentido do Cristianismo deve ser interpretado a partir do ponto de vista propiciado pelo conhecimento e a experiência fornecido pela modernidade”. Assim sendo, a Teologia Liberal pretende ser, em certo sentido, uma teologia mediadora, que se coloca entre, de um lado, um racionalismo moderno, totalmente cético e mesmo ateu, e, de outro lado, o Cristianismo tradicional; pp.xiii e xxiii. O livro de Dorrien tem dois outros volumes: The Making of American Liberal Theology: Idealism, Realism & Modernity – 1900-1950 (Westminster John Knox Press, 2003) e The Making of American Liberal Theology: Crisis, Irony & Postmodernity – 1950-2005 (Westminster John Knox Press, 2006). Compare-se seu entendimento da Teologia Liberal na p.1 do primeiro desses dois volumes. Registre-se que os três volumes, em seu conjunto, constituem uma história da Teologia Liberal americana, fazendo apenas breves menções a teólogos e pensadores europeus, sejam eles continentais, sejam eles britânicos. Para um relato que inclui a Europa Continental e as Ilhas Britânicas, mas basicamente omite pensadores não-protestantes, vide Claude Welch, Protestant Thought in the Nineteenth Century – 1799-1870 (reimpressão feita por Wipf & Stock Publishers do original impresso por Yale University Press, 1972) e Protestant Thought in the Nineteenth Century – 1870-1914 (reimpressão feita por Wipf & Stock Publishers do original impresso por Yale University Press, 1985). A propósito, vide meu artigo “A Teologia Liberal do Século 19: Tentativa de Periodização”, em meu blog Theological Spacehttps://theological.space/2016/02/20/a-teologia-liberal-do-seculo-19-tentativa-de-periodizacao/, que se baseia no livro de Welch. Vide, neste contexto, um outro livro de Roger E. Olson, em que ele afirma: “Uma definição simples e útil . . . da ‘teologia liberal Cristã’ é ‘reconhecimento máximo das reivindicações da modernidade’ na construção e reconstrução das crenças Cristãs. A razão . . . moderna – incluindo as ciências, exatas e humanas, e a filosofia – desempenha um papel determinativo na . . . teologia liberal. Ela [a razão moderna] não é apenas sugestiva, ela é regulativa”; Roger E. Olson, The Mosaic of Christian Belief: Twenty Centuries of Unity & Diversity (IVP Academic, 2002, p.63). Outro livro de Olson é recomendado aqui: The Story od Christian Theology: Twenty Centuries of Tradition & Reform (IVP Academic, 1999).

[6] Publicado em meu blog Theological Space, no seguinte endereço: https://theological.space/2015/12/05/i-call-myself-a-liberal/.

Em Salto, 28 de Fevereiro de 2016.

Uma resposta

  1. Pingback: O Liberalismo Teológico: A Questão do Conceito « Theological Space

  2. Pingback: Rudolf Bultmann e a Questão da Ortodoxia e da Heresia – Eduardo Chaves' Space

Deixe um comentário