Ideias Políticas: Dos Gregos, dos Cristãos Primitivos, de Agostinho

Comecei a reler ontem à noite (27/5/1015) um livro que li pela primeira vez em 1968 e que comprei em 1973. O livro havia sido publicado dez anos antes pela Columbia University Press. Trata-se de The Political and Social Ideas de St. Augustine, de Herbert A. Deane.

Lembro-me de o livro ter-me impressionado quando o li pela primeira vez, como leitura para um Seminário sobre as Ideias Políticas, Sociais e Econômicas de Calvino, recomendada pelo meu querido mestre de História da Igreja na Idade Média e na Reforma, Ford Lewis Battles (o tradutor da edição mais conceituada das Institutas de Calvino, a publicada pela Library of Christian Classics, da Westminster Press). Na ocasião Battles observou que as ideias politicas de Calvino, em especial sua visão do papel do Estado, eram bastante realistas, muito longe do utópico ou mesmo do idealista. Disse Battles nessa ocasião que Calvino, nesse respeito, havia sido influenciado por Agostinho — e foi nesse contexto que recomendou a leitura do livro de Deane, que li em cópia encontrada na Biblioteca do Seminário. Battles salientou ainda que, talvez exagerando um pouco, Calvino, como  Agostinho, via o Estado de forma negativa, como um mal necessário. Foi nessa aula que ouvi pela primeira vez a afirmação de que Agostinho via o estado como nada mais do que um bando de ladrões. Battles observou por fim que Agostinho e Calvino, em termos de visão do Estado, estavam no grupo de filósofos políticos realistas, entre os quais se encontrava também Maquiavel.

Isso me ficou na cabeça e, cinco anos depois, quando trabalhava no Claremont College, em Claremont, CA, encontrei o livro numa livraria e o comprei e reli, por estar dando um curso de Filosofia Política na ocasião. Sei que o reli porque a cópia que comprei em Agosto de 1973, um mês antes de começar meu curso, está toda rabiscada e anotada por mim.

Voltemos ao presente, passados 42 anos da segunda leitura e 47 da primeira. Nesse ínterim aprendi bastante Filosofia Política, em especial em combate com a esquerda e em defesa do Liberalismo Clássico de feição Smithiana e Randiana. A leitura me surpreendeu já na Introdução. Ali Deane faz um breve apanhado da História do Pensamento Político dos gregos até o final do Império Romano no Ocidente, em 476, para se concentrar no pensamento de Agostinho (354-430).

Ressalta ele na Introdução a diferença básica que existia entre a forma positiva e otimista com que os gregos viam o Estado e seu papel na vida de uma nação e dos seus cidadãos e a forma razoavelmente blasé e indiferente com que Jesus e os cristãos primitivos o viam.

Para os gregos o Estado tem, entre suas funções, a de promover a boa vida de seus cidadãos, cuidando de educa-los e treina-los (paideia), bem como de promover o seu bem-estar (eudaimonia), para que ele se torne uma pessoa virtuosa e boa e se realize como pessoa enquanto cidadão do Estado, assim encontrando a sua felicidade.  Para os gregos o Estado é “o foco central dos interesses e das atividades do homem” e “a encarnação de seus mais elevados valores” (pp.7-8).

Deane observa que, depois dos gregos, só os regimes totalitários do Século 20 voltaram a ter uma visão tão exaltada do Estado — que estaria, entretanto, no Século 20, sob controle do partido totalitário (p.8).

Deane contrasta com essa visão utópico-idealista do Estado a visão de Jesus e dos cristãos primitivos. Eles encaravam o Estado de forma blasé e indiferente (quando não hostil), embora não negassem que lhe deviam lealdade, exceto quando o Estado interferia com seu dever cristão. Viam as funções do Estado, porém, de forma restritiva e negativa. O Estado existia, segundo eles, para manter a ordem, punir os malfeitores, e, assim, proteger os bons cidadãos. Melhor definição do Estado Mínimo Liberal é difícil de encontrar.

Ressalte-se que Jesus e os cristãos primitivos acreditavam que o mundo iria terminar em breve — quiçá durante a vida deles. Isso explica, talvez, pelo menos em parte, o fato de que o Novo Testamento não presta muita atenção ao Estado e suas funções.

Jesus enfatizou que o seu reino não era deste mundo — isto é, não era um reino terreno que pudesse vir a conflitar com o Estado Romano promovendo subversão e revolta. Ele insistiu que seus seguidores não deviam ter interesses políticos (poder) e econômicos (riqueza) — nem mesmo no plano mais mundano do que iriam comer e vestir no dia seguinte. A ideia é que seus seguidores deviam ficar indiferentes a esses ideais que movem tanta gente em outros círculos. E Jesus deixou claro que seus seguidores não deveriam promover anarquismo e rebelião ou demonstrar hostilidade para com o Estado. Deviam pagar seus impostos, dando ao Estado o que a ele pertence. Jesus não questionou a autoridade pela qual Pilatos o julgou e se irritou quando Pedro cortou a orelha do soldado — colando-a de volta de lugar (segundo o relato do Evangelho).

A ideia por detrás dessa postura dos cristãos primitivos é que não é o Estado que cuida da vida dos seus cidadãos (além de protege-los contra violência de terceiros), não é o Estado que os educa e promove o seu bem estar moral, cultural e em outras esferas, e não é o Estado que os torna virtuosos e felizes. O Estado cuida da ordem pública e protege seus cidadãos apenas contra a violência de terceiros. Em função disso, porém, merece o respeito dos cidadãos e tem direito de cobrar impostos — exceto, naturalmente, quando extrapola seus limites. É tudo.

Essa foi a visão cristã do Estado até que, numa reviravolta inesperada, o Imperador Constantino se converteu ao Cristianismo e, dentro de setenta anos, a partir dessa data (312), todo mundo no Império Romano se tornou cristão automaticamente — sem escolha. A partir dessa data o Cristianismo começou a mudar — porque os servidores do Estado, e até mesmo sua força militar (o Exército), eram todos cristãos. Difícil pretender, nesse contexto, que o dever do cristão em relação ao Estado é apenas respeita-lo e pagar-lhe impostos que sejam justos. Nesse momento o dinheiro dos impostos estava sendo usado, entre outras coisas, para construir grandes igrejas e magníficas basílicas e catedrais para o Cristianismo, tornado religião estatal. Difícil ser contra imposto numa situação dessas, mesmo que o imposto chegasse aos níveis que alcança hoje no Brasil — em que o Estado, em vez de construir Igrejas, constrói estádios de futebol para manter o povo entretido e feliz.

Mas voltemos ao que importa. Agostinho desenvolveu sua filosofia política neste contexto de uma “Igreja Imperial” — e, segundo Deane, tentou unir o ideal de Estado dos gregos e o ideal de Estado dos cristãos. A solução salomônica de Agostinho foi manter os dois ideais — mas jogando o ideal do Estado dos gregos para a vida futura, para a Cidade de Deus, e mantendo o ideal do Estado dos cristãos primitivos, e radicalizando-o a ponto de se tornar uma hostilidade indiscutível, para esta vida, para a Cidade dos Homens. Aqui, nesta vida, o Estado não passa de um bando de ladrões (algo que não é nenhuma novidade para os brasileiros não-ingênuos).

A visão idealista do Estado que faz o bem, educa, promove o bem-estar e a virtude, é, neste mundo, utópica — quimérica mesmo. É isto que nos ensina Agostinho. Quem está mais interessado nesta vida do que na outra faria bem em adotar o seu realismo político.

Em São Paulo (Bela Vista, Rua Genebra, em homenagem a Calvino), 28 de Maio de 2015

Transcrito aqui neste blog Theological Space em 13 de Setembro de 2015

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