A Bíblia e a Sabedoria de Eclesiastes: Lições de Vida em Meio a Vários Problemas

A Bíblia e a Sabedoria de Eclesiastes: 
Lições de Vida em Meio a Vários Problemas

A Bíblia é um livro surpreendente. A gente está sempre se deparando com coisas novas nela. Às vezes, com coisas não muito edificantes, mas sempre instrutivas.

Ainda ontem, lendo os livros de Samuel, Reis e Crônicas (é… alguém ainda lê esses livros, de vez em quando, ainda que seja por dever de ofício), descobri que Salomão, por um conluio entre o profeta Natã e Bate-Seba (sim, aquela, do banho pelado no meio da tarde – II Samuel 12), veio a ser rei, ainda muito novinho e aparentemente inexperiente (o conluio é narrado em I Reis 1:11-32). Com exceção da atitude de Bate-Seba, que, afinal de contas, era a mãe dele, havia uma oposição significativa a Salomão, no restante da família (um irmão mais velho, Adonias, estava em plena campanha para ser coroado rei), no exército (o Comandante do Exército, Joabe não queria Salomão como rei) e no segmento religioso (o Sumo-Sacerdote, Abiatar também se opunha a Salomão). Todos esses apoiavam as pretensões de Adonias (I Reis 1:5-10). Mas Davi, embora já velhinho, ainda era sensível aos encantos de Bate-Seba, mesmo que esta já tivesse uns vinte anos a mais (a idade provável de Salomão, seu filho com Davi), e fez coroar Salomão, não seu irmão mais velho (I Reis 1:33-53).

Em seguida, Davi deu alguns conselhos e recomendações a Salomão, e morreu (1 Reis 2:1-10). Entre as recomendações estava a de que Salomão “não [deixasse] que [Joabe] [viesse a ter] morte natural” (1 Reis 2:6). Sutil a recomendação. Em relação a Simei, um profeta, que se recusara a apoiar as pretensões de Adonias, mas que tinha contas antigas a acertar com Davi, o velho rei simplesmente disse ao filho, recém coroado: “Você é um sábio e não deve deixar que ele fique sem castigo. Você sabe o que deve fazer para que ele morra” (1 Reis 2:8-9). Simples, e, como veremos, eficiente e eficaz.

Assim que Davi morreu, o que fez Salomão? Basicamente duas coisas, ambas envolvendo o princípio: “Ordem dada é ordem cumprida”:

• Acabou com a oposição: mandou matar todos, um por um, com toda a frieza do mundo (1 Reis 2:13-46);

• Depois, só depois, pediu a Deus sabedoria (1 Reis 3:1-15).

Pelo jeito, sábio Salomão já era, tanto que fez as coisas na ordem certa… Só pediu sabedoria depois de limpar a área de seus principais inimigos.

Entre os que Salomão mandou matar estavam seu irmão (na verdade, meio-irmão), Adonias (1 Reis 2:13-25), Joabe (1 Reis 2:26-35), e Simei (1 Reis 2:36-46). Abiatar ele apenas substituiu por Zadoque (1 Reis 2:35).

Apesar da mortandade, Deus atendeu ao pedido de sabedoria que lhe fez Salomão: “Dá-me sabedoria para que eu possa governar o teu povo com justiça e saber a diferença entre o bem e o mal”. E Deus elogiou o jovem rei por ter pedido sabedoria e não a morte de seus inimigos (!), ou riquezas, ou vida longa… Por causa da sabedoria implícita no pedido de sabedoria de Salomão, Deus resolveu lhe dar todo o resto: conhecimento, entendimento, riquezas, honras, vida longa, muitas mulheres lindas – “como ninguém teve antes de você, nem terá depois”… Registre-se que toda essa conversa de Salomão com Deus aconteceu em um sonho de Salomão (1 Reis 3:1-15)… [De vez em quando fico pensando por que os meus sonhos são tão chinfrins, comparados com os sonhos dos personagens bíblicos. Em 80 anos de vida nunca sonhei que estava falando com Deus, nem mesmo para receber uma bronca, quanto mais para ser abençoado, receber promessas de sabedoria, conhecimento, riquezas, etc.]

Para encurtar a história, Salomão reinou durante 40 anos (como seu pai Davi, antes dele, e como Saul, antes de Davi…) e nesse tempo construiu o Primeiro Templo de Jerusalém. [Esse negócio de 40 anos parece mandato de rei. Que os presidentes brasileiros (no sentido genérico, que inclui as presidentas, inclusive a presidanta que já tivemos, se é que um dia vai haver mais do que uma) não sigam a moda. Mas voltemos a Salomão…]. Mais para o fim de seu longo reinado e de sua vida (Salomão morreu em plena posse do poder), depois de se casar com 700 mulheres e arrumar 300 concubinas, muitas delas estrangeiras, Salomão deixou-se enredar por elas e abandonou os mandamentos de Jeová, que, por amor ao seu pai, não lhe tirou o trono imediatamente, mas fez com que 8/10 do reino fossem perdidos pelo seu descendente… Foi aí que surgiu a divisão entre o Reino de Israel, os 8/10 do Norte, que deixou de ficar com os descendentes de Salomão, e o Reino de Judá, os 2/10 Sul, que incluía Jerusalém e, naturalmente, Belém, de onde Davi era originário, que ficou com Reboão, filho de Salomão, tornando possível a genealogia de Jesus, como descendente de Davi, no Evangelho. [A morte de Salomão é relatada em 1 Reis 11:41-43; a revolta das tribos do Norte, lideradas por Jeroboão, e a divisão do reino em dois, Israel e Judá, em 1 Reis 12:1-20 e 2 Crônicas 10:1-19. A divisão dos dois reinos se deu assim que Reboão foi coroado, em 931 aC. O Reino do Norte durou cerca de 210 anos, até 721 aC, quando foi tomado pelos Assírios, o povo de Israel sendo levado cativo para a Assíria (2 Reis 17:5-40), e o Reino do Sul até 586, quando foi tomado pelos Babilônios, que conquistaram Jerusalém (2 Reis 25:1-7), destruíram o Tempo construído por Salomão (2 Reis 25:8-17) e levaram cativos o povo de Judá para a Babilônia (2 Reis 25:18-21). Nabucodonosor, rei da Babilônia, deixou um preposto, Gedaías, em Judá, para governar os judeus que não foram levados para a Babilônia, mas Gedaías foi assassinado e o povo de Judá que permanecia na Palestina fugiu para o Egito (2 Reis 25:22-26). Essa história do Cativeiro Babilônico é relatada ou mencionada em vários outros lugares na Bíblia. Oportunamente, a começar em 538 aC, os judeus do Sul começaram a voltar para a Judéia, onde reconstruíram o Templo, que durou cerca de seiscentos anos, até que foi destruído novamente, agora pelos Romanos, que, no ano 70 aD, já na nossa era, arrasaram Jerusalém, e, com a cidade, o Templo, expulsando os judeus para fora da Palestina – até, de certo modo, o século 19, quando começaram a voltar para a Palestina, em consequência do movimento sionista, para, no século 20, ganhar de novo uma pátria ali, que eu espero que eles defendam para nunca mais perder.]

o O o

Ao ler essa longa história lembrei-me de minha primeira infância. Para mim, quando era pequeno, a Bíblia era fonte de aprendizado e de entretenimento. Voltemos a ela. Ali há história, há narrativa, há poesia, há parábola (que é algo parecido com uma fábula), há provérbios, há cartas, há preceitos morais, religiosos, e de bom senso, há profetas dando sarrafadas morais e religiosas num povo meio relaxado, e há uma literatura meio fantástica como a do Apocalipse (à qual eu, confesso, nunca foi apegado)… A Bíblia é instrutiva, fonte de aprendizagem, e, para um menino, ansioso por descobrir o mundo através da literatura (visto que não tinha condições de sair de casa), divertido. Literalmente divertido.

E, além dessa série de gêneros literários que foi citada, há o livro de Eclesiastes. É meio difícil classificar Eclesiastes. Talvez a melhor classificação do livro é como “Filosofia de Vida”. É uma filosofia de vida meio instigante, que faz a gente pensar. Há momentos em que o autor soa meio cínico, um tanto pessimista, como quem está “desencantado da vida” (ou pelo menos da maior parte dela…). Há momentos em que ele parece ainda encontrar algum prazer em atividades simples, despretensiosas, como tomar vinho e curtir a mulher que a gente ama…

Só isso já mostra que o autor é homem. Se fosse mulher, falaria em tomar talvez um Campari com o homem amado…

Há quem conclua que Salomão foi o autor de Eclesiastes, com base em 1:1 e 1:12, especialmente. O livro tem um narrador que, depois de um curto versículo introdutório (1:1), passa a palavra àquele que seria o autor, propriamente dito, para retomá-la só ao final. O narrador diz que o autor é um “Sábio”, e que “era filho de Davi e Rei em Jerusalém” (1:1). Certamente o narrador pretende nos fazer crer que se trata de Salomão, o único filho de Davi que foi rei de Israel. Mas há vários indícios linguísticos e históricos de que o autor não foi Salomão. No versículo 1:12 o autor, diz: “Eu, o Sábio, fui rei de Israel, em Jerusalém”. Como “fui rei de Israel”, posto que Salomão morreu como rei!!! Nunca poderia ter dito “eu fui rei de Israel” porque nunca houve época em que ele, tendo sido, não tivesse sido mais. Se fosse verdade que o autor de Eclesiastes era Salomão, e Salomão o tivesse escrito em sua velhice, arrependido das besteiras que fez na mocidade e na adultice, apesar de sábio, mas, na realidade, “desencantado da vida” (como diz o Professor Paulo Vanzolini em “Ronda”), ele teria dito “eu sou rei de Israel”… Enfim, até a Bíblia de Estudo da Nova Tradução em Linguagem de Hoje admite que o livro não foi escrito por Salomão, tendo sido escrito entre 450 e 200 aC, ou seja, cerca de 500 anos ou mais depois da morte de Salomão (vide a Introdução ao livro de Eclesiastes, p.751 na minha edição).

Além disso, acrescento aqui minhas considerações. Se foi Salomão o autor de Cantares, é quase impossível crer que a mesma pessoa tivesse escrito também Eclesiastes… A visão de mundo, a filosofia de vida, e o estilo literário claramente não batem. Nem mesmo que se afirme, como pretendem alguns comentaristas conservadores, que Cantares revela o Salomão jovem, quase adolescente ainda, entusiasmado com os seios de suas amadas, e Eclesiastes o Salomão mais velho, mais cansado da vida, depois do desencantamento da vida que lhe proporcionaram algumas de suas mil mulheres… Nem todas, é verdade. O autor de Eclesiastes ainda revela que curte tomar uma taça de vinho na companhia da mulher que ele ama… Se é verdade o que diz a Bíblia, que ele teve mil mulheres (não sei se em paralelo ou em série), isso talvez fosse suficiente para deixar qualquer homem meio cínico e pessimista ao final da vida… Mas consideremos a questão da autoria resolvida (não foi Salomão) e deixêmo-la de lado.

o O o

Em um artigo em um blog meu, que virou postagem no Facebook, selecionei várias passagens de Eclesiastes às quais dei o nome de “Pérolas Esparsas”. Meu pai tinha um livro com esse título de que eu sempre gostei. Ao ler um livro não é preciso que a gente encontre “pérolas” a cada linha. Basta que encontre algumas, espargidas ao longo do texto. Transcrevo-as aqui, para servir de base para minha conclusão na seção seguinte.

“Tudo neste mundo tem o seu tempo;
cada coisa tem a sua ocasião.

Há tempo de nascer e tempo de morrer;
tempo de plantar e tempo de arrancar;
tempo de matar e tempo de curar;
tempo de derrubar e tempo de construir.

Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar;
tempo de chorar e tempo de dançar;
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las;
tempo de abraçar e tempo de afastar.

Há tempo de procurar e tempo de perder;
tempo de economizar e tempo de desperdiçar;
tempo de rasgar e tempo de remendar;
tempo de ficar calado e tempo de falar.

Há tempo de amar e tempo de odiar;
tempo de guerra e tempo de paz.”

(Eclesiastes, 3:1-8)

“Procurei descobrir qual a melhor maneira de viver e então resolvi me alegrar com vinho e me divertir. Pensei que talvez fosse essa a melhor coisa que uma pessoa pode fazer durante a sua curta vida aqui na terra.” (Eclesiastes 2:3).

“Então eu me arrependi de ter trabalhado tanto e fiquei desesperado por causa disso. A gente trabalha com toda a sabedoria, conhecimento e inteligência para conseguir alguma coisa e depois tem de deixar tudo para alguém que não fez nada para merecer aquilo. Isso também é ilusão e não está certo!” (Eclesiastes 2:20-22).

“A melhor coisa que alguém pode fazer é comer e beber e se divertir com o dinheiro que ganhou. (…) Mesmo essas coisas vêm de Deus. Sem Deu, como teríamos o que comer ou com que nos divertir?” (Eclesiastes 2:24-25)

“Então entendi que nesta vida tudo o que a pessoa pode fazer é procurar ser feliz e viver o melhor que puder. Todos nós devemos comer e beber e aproveitar bem aquilo que ganhamos com o nosso trabalho. Isso é um presente de Deus.”  (Eclesiastes 3:12-13).

“Cheguei à conclusão de que Deus está pondo as pessoas à prova para que elas vejam que não são melhores do que os animais. No fim das contas, o mesmo que acontece com as pessoas acontece com os animais. Tanto as pessoas como os animais morrem. O ser humano não leva nenhuma vantagem sobre o animal, pois os dois têm de respirar para viver. Como se vê, tudo é ilusão, pois tanto um [o ser humano] como o outro [o animal] irão para o mesmo lugar, isto é, o pó da terra. Tanto um como o outro vieram de lá e voltarão para lá. Como é que alguém pode ter a certeza de que o sopro de vida do ser humano vai para cima e que o sopro de vida do animal desce para a terra? Assim, eu compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer no trabalho. Esta é a nossa recompensa. Pois como é que podemos saber o que vai acontecer depois da nossa morte?” (Eclesiastes 3:18-22)

“Também descobri por que as pessoas se esforçam tanto para ter sucesso no seu trabalho: é porque elas querem ser mais do que os outros. Mas tudo é ilusão. É tudo como correr atrás do vento. Dizem que só mesmo um louco chegaria ao ponto de cruzar os braços e passar fome até morrer. Pode ser. Mas é melhor ter pouco numa das mãos, com paz de espírito, do que estar com as duas mãos sempre cheias de trabalho, tentando pegar o vento.” (Eclesiastes 4:4-6)

“Descobri que na vida existe mais uma coisa que não vale a pena: é o homem viver sozinho, sem amigos, sem filhos, sem irmãos, sempre trabalhando e nunca satisfeito com a riqueza que tem. Para que é que ele trabalha tanto, deixando de aproveitar as coisas boas da vida? Isso também é ilusão, é uma triste maneira de viver. É melhor haver dois do que um, porque duas pessoas trabalhando juntas podem ganhar muito mais. Se uma delas cai, a outra a ajuda a se levantar. Mas se alguém está sozinho e cai, fica em má situação, porque não tem ninguém que o ajude a se levantar. Se faz frio, dois podem dormir juntos e se esquentar; mas um sozinho, como é que vai se esquentar?” (Eclesiastes 4:7-11)

“Tenha cuidado quando for ao Templo.  (…) Vá pronto para ouvir e obedecer a Deus. Pense bem antes de falar e não faça a Deus nenhuma promessa apressada. (…) Fale pouco. Quanto mais você se preocupar, mais pesadelos terá; e quanto mais você falar, mais tolices dirá. (…) É melhor não prometer nada do que fazer uma promessa e não cumprir.” (Eclesiastes 5:1-5).

“Então cheguei a esta conclusão: a melhor coisa que uma pessoa pode fazer durante a curta vida que Deus lhe deu é comer e beber e aproveitar bem o que ganhou com o seu trabalho. Essa é a parte que cabe a cada um.” (Eclesiastes 5:18.

“Se Deus der a você riquezas e propriedades e deixar que as aproveite, fique contente com o que recebeu e com o seu trabalho. Isso é um presente de Deus. E você não sentirá o tempo passar, pois Deus encherá o seu coração de alegria.” (Eclesiastes 5:19-20).

“Uma coisa é certa: quanto mais falamos, mais tolices dizemos; e não ganhamos nada com isso” (Eclesiastes 6:11).

“Quem só pensa em se divertir é tolo; quem é sábio pensa também na morte. . . . É melhor ir a uma casa onde há luto do que ir a uma casa onde há festa, pois onde há luto lembramos que um dia também vamos morrer. E os vivos nunca devem esquecer isso.” (Eclesiastes 7:4,2).

“Há pessoas boas que morrem, e há pessoas más que continuam a viver a sua vida errada. Por isso, não seja bom demais, nem sábio demais; por que você iria se destruir? Mas também não seja mau demais, nem tolo demais; por que você iria morrer antes do seu tempo? Por isso, evite tanto uma coisa como a outra.” (Eclesiastes 7:15-18)

“Não existe no mundo ninguém que faça sempre o que é direito e que nunca erre. . . . É melhor ouvir a repreensão de um sábio do que escutar elogios de um tolo.” (Eclesiastes 7:20, 5).

“Estou convencido de que devemos nos divertir porque o único prazer que temos nesta vida é comer, beber e nos divertir. Podemos fazer pelo menos isso enquanto trabalhamos durante a vida que Deus nos deu neste mundo.” (Eclesiastes 8:15).

“Ninguém sabe nada do que vai acontecer no futuro, mas isso não faz diferença. Pois a mesma coisa acontece com os honestos e os desonestos, os bons e os maus, os religiosos e os não religiosos, os que adoram a Deus e os que não adoram. A mesma coisa acontece com quem é bom e com quem é pecador. (…) A mesma coisa acontece com todos; e isso é o pior de tudo o que acontece neste mundo.” (Eclesiastes 9:1-3).

“Só os vivos têm esperança. É melhor ser um cachorro vivo do que um leão morto!” (Eclesiastes, 9:4; tradução A Bíblia Viva.)

“Enquanto você viver neste mundo de ilusões, aproveite a vida com a mulher que você ama. Pois isso é tudo que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que Deus lhe deu.” (Eclesiastes 9:9).

“Eu descobri mais outra coisa neste mundo: nem sempre são os corredores mais velozes que ganham as corridas; nem sempre são os soldados mais valentes que ganham as batalhas. Notei ainda que as pessoas mais sábias nem sempre têm o que comer e que as mais inteligentes nem sempre ficam ricas. Notei também que as pessoas mais capazes nem sempre alcançam altas posições. Tudo depende da sorte e da ocasião.” (Eclesiastes 9:11).

“Se alguém colocar moscas mortas num vídeo de perfume, ele acabará cheirando mal! Assim, um pequeno erro pode destruir muita sabedoria e honra.” (Eclesiastes, 10:1; tradução A Bíblia Viva).

“As festas ajudam a gente a se divertir, e o vinho ajuda a gente a se alegrar; mas sem dinheiro não se pode ter nem uma coisa nem outra. Não critique o governo nem mesmo em pensamento e não critique o homem rico nem mesmo dentro do seu próprio quarto, pois um passarinho poderia ir contar a eles o que você disse.” (Eclesiastes 10:19-20).

“Quem fica esperando que o tempo mude e que o tempo fique bom, nunca plantará, nem colherá nada.” (Eclesiastes 11:4).

“Se você esperar que tudo fique normal, jamais fará qualquer coisa.” (Eclesiastes 11:4; tradução A Bíblia Viva.)

“É maravilhoso viver! Ver a luz, o sol! Se uma pessoa chegar à velhice, deve se alegrar em todos os dias de sua vida. Mas se deve lembrar também que a eternidade é muito mais comprida; quando se compara a vida com a eternidade, o que fazemos aqui não vale nada!” (Eclesiastes, 11:7-8; tradução A Bíblia Viva.)

[Exceto onde indicado (quatro citações), no restante foi usada a Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), que, de resto, foi usada na primeira parte do texto também. As quatro exceções foram tiradas da tradução A Bíblia Viva (ABV), que é uma tradução quase parafraseada que vale a pena conferir. Exceto no caso da primeira citação, o restante vem na ordem dos capítulos do livro, embora, dentro dos capítulos, eu tenha feito uma ou outra inversão na ordem dos versículos, devidamente assinalada na referência.]

o O o

Que lições podemos tirar dessas passagens citadas (e várias outras que poderiam ter sido acrescentadas?

Várias. Talvez inúmeras.

Mas, primeiro, vou me referir a uma conclusão (só uma) que é relevante para a Teologia – judaica e cristã, mas principalmente para esta. As demais são relevantes para a Vida – inclusive a nossa vida, hic et nunc, aqui e agora.

A conclusão relevante para a Teologia se revela no fato de que Eclesiastes tem sido chamado de um livro que não se encaixa no contexto dos demais livros da Bíblia – tanto da Bíblia Judaica como da Bíblia Cristã. O termo que se lhe aplica é “misfit”: Eclesiastes é um livro desajustado na Bíblia: ele não se encaixa. (Há um filme com Clark Gable, Montgomery Clift e Marylin Monroe que se chama “The Misfits”: Os Desajustados.) Os três, no filme, se mostram pessoas desajustados à vida. Eclesiastes se mostra desajustado em relação à maior parte do restante da Bíblia.

Vejamos apenas alguns exemplos, depois de um parágrafo introdutório.

Para mim a Bíblia foi, em um primeiro momento, cartilha: aprendi a ler nela, por volta de 1948, quando tinha cerca de cinco anos. Meu pai era pastor. Naquela época ele pastoreava um campo pioneiro no Norte do Paraná. Mudamos de Marialva para Maringá na época que esta cidade foi emancipada, 1947. Parecia o Oeste Americano. Havia tiroteios na rua com frequência. Era arriscado brincar fora de casa, até mesmo no quintal da casa que ficava anexa à parte de trás do Salão de Cultos. O jeito era brincar dentro de casa. Meu irmão, Flávio, ainda era muito pequeno: tinha apenas dois anos. Então a saída era inventar coisas para fazer. Aprender a ler foi uma delas. Meu pai lia bastante e minha mãe também. O exemplo surtiu efeito. Comecei tentando ler passagens que eu conhecia bem e, com um pouco de ajuda do pai e da mãe, logo estava lendo qualquer coisa – os Salmos, os Evangelhos e os livros históricos do Velho Testamento. Da Bíblia passei a ler os romances policiais sobre Perry Mason que minha devorava… Se a gente pensar bem, o Velho Testamento de Samuel, Reis e Crônicas tem quase tanto assassinato como os livros de Erle Stanley Gardner…

• Eclesiastes 3:18-20 argumenta que não há grande diferença entre os homens e os animais. Ambos vieram da terra e para ela eles retornam. Ambos nascem, vivem e morrem. Quando morrem, voltam para a terra, de onde vieram, e ponto final. É uma ilusão “ter a certeza de que o sopro de vida do ser humano vai para cima e que o sopro de vida do animal desce para a terra”. Esse é o nosso fim: a terra em que somos, e ficamos, enterrados. Se é possível que algo diferente disso possa nos acontecer, não há como seja possível saber. Em outras palavras: vida após a morte, seja através da ressurreição dos mortos, seja por causa da imortalidade da alma, tudo isso é ilusão. Embora houvesse judeus (os saduceus) que não acreditavam na ressureição dos mortos, os cristão sempre aceitaram. E alguns aceitam a imortalidade da alma também.

• Eclesiastes 7:15-18 comenta e recomenda: “Há pessoas boas que morrem, e há pessoas más que continuam a viver a sua vida errada. Por isso, não seja bom demais, nem sábio demais; por que você iria se destruir? Mas também não seja mau demais, nem tolo demais; por que você iria morrer antes do seu tempo? Por isso, evite tanto uma coisa como a outra.” O comentário não se disputa. Mas e a recomendação? O que fazer com o “Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai de vocês que está nos céus”, de Mateus 5:48, palavras atribuídas a Jesus, e que, portanto, vêm em cor diferente em algumas Bíblias? É verdade que há pastor por aí, como o meu amigo no Facebook, Rev. Elienai Cabral Júnior, que afirma que Jesus, tendo sido perfeito, nos salvou, com sua morte, até mesmo da necessidade de ser perfeitos, ou, talvez, até mesmo da exigência de perseguir a perfeição. Ele tem até um livro com o título Salvos da Perfeição. Mas tem muito cristão por aí que não concorda com o Elienai, e que não só continua buscando a perfeição como, até, muitas vezes, acha que já a alcançou… É verdade também que Jesus, como Eclesiastes, de vez em quando desequilibra… Lembram-se da Parábola do Fariseu e o Publicano? O fariseu se julgava o bom. Se não perfeito, chegando lá. Dava graças a Deus por não ser como os demais homens. O publicano, pobre coitado, apenas pedia a Deus que tivesse misericórdia dele, pecador. E o publicano, diz a parábola, foi para sua casa justificado, foi tornado, ou considerado, justo.

• Em várias passagens, algumas das quais citarei a seguir, o autor de Eclesiastes chega perto de dizer que a vida é tão injusta, em tantos aspectos, que é difícil de acreditar que Deus, que a dá, que arbitra sua duração, e que, chegada a hora, a tira, seja justo – pelo menos segundo os nossos critérios de justiça.

Basta… Vamos ver se achamos algumas “Lições de Vida” em Eclesiastes que sirvam para nós, aqui neste mundo (pois que do mundo futuro não é possível saber nada, agora). Como, aparentemente, acreditava o autor de Eclesiastes, essas Lições de Vida serviam para o seu tempo, tanto que ele se preocupou em transmitir sua mensagem.

o O o

A primeira grande Lição de Vida é a de que muito pouco da nossa vida está sob nosso controle. Nós não escolhemos quando, onde, e de quem vamos nascer, nem que características (físicas, mentais, emocionais, etc.) teremos. Tudo parece ser regido pelos princípios da “sorte” (e do azar) – vide a passagem de Eclesiastes 9:11, citada atrás. Um tem sorte, e nasce um Salomão, “com o busanfã virado pra Lua”, como diz o grande teólogo popular Faustão. Ganha sabedoria, conhecimento, entendimento, riqueza, poder, honra, fama, mulheres… Outro nasce sem condições de sobreviver: desnutrido, doente, pobre, sem quase nenhuma possibilidade de dar certo na vida e vir a adquirir ainda que seja uma pequena parcela daquilo que Salomão teve. Isso é justo?

Mas a injustiça da coisa vai além. Às vezes, por mais difícil que seja, o que nasceu doente e pobre luta, batalha, melhora na vida, consegue alguma coisa, talvez até consiga acumular alguma riqueza, e tudo sem roubar ou fraudar, e, quando está pronto para desfrutar o que, com muito esforço, alcançou, morre em decorrência de uma doença repentina e incurável, ou em um acidente de carro, ou, fruto da maldade alheia, em um roubo seguido de assassinato… Isto é justo? Além de ser injusto, parece quase sádico! Por que não deixar o cara morrer enquanto era pequeno? O autor de Eclesiastes chega a sugerir (6:3) que “uma criança que nasce morta tem mais sorte do que ele”. [Ou, talvez, que é deliberadamente morta antes de nascer, havendo aqui uma defesa implícita do aborto?]

Assim, uma primeira grande Lição de Vida é que a vida, qualquer que tenha sido a razão pela qual foi criada, não é justa. Fim de papo. E não adianta tentar torná-la mais justa com políticas públicas e coisas assemelhadas. O cara recebe um terreno de graça no assentamento ou uma casinha do “Minha Casa, Minha Vida” e vende ou aluga, arruma um jeito de fraudar o esquema. Os que estão administrando o sistema, roubam, corrompem, ficam ainda mais ricos do que já eram. O autor de Eclesiastes é realista (não cínico como o chamam alguns) porque é genuinamente pessimista. Parece Agostinho, que, acreditando que a justiça só vai imperar na Cidade de Deus (na vida futura), não tinha ilusão nenhuma sobre a Cidade dos Homens: sobre ela, seus governantes e seus súditos, era tão realisticamente pessimista quanto veio a ser Maquiavel, cerca de mil anos depois. O autor de Eclesiastes é mais ou menos um precursor dos dois.

Uma segunda lição. O autor de Eclesiastes não é, como Agostinho, ou alguns seguidores de Calvino, alguém que acredita que a natureza humana é totalmente corrompida, que nada de bom sobra nela. Ele acredita que temos, ou alguns de nós têm, algo de bom, um resquício de livre arbítrio, que nos torna capazes de fazer escolhas, tomar decisões, agir, de preferir sabedoria a fama e riquezas… Mas ele sabe que nunca seremos capazes de garantir que nossas ações surtirão sempre os efeitos desejados, porque a gente não controla as ações dos outros e, além do mais, há fatores imprevisíveis e imponderáveis (aquilo que geralmente chamamos de sorte e azar – ou que a teologia chama de divina providência, cujos decretos são admitidamente insondáveis e inescrutáveis)… Por isso, ele concordaria com quem disse que quando revelamos a Deus os nossos planos, Deus dá risada deles… Inocente, conclui Deus: mal sabe ele que vai morrer a semana que vem… Você sabe o que quer, se mata de trabalhar para alcançar o que quer, e, quando alcança o que sempre esperou, tem um infarto e morre… A segunda Lição de Vida que o autor de Eclesiastes nos deixa é que devemos sempre viver como se o dia de hoje fosse o nosso último – e não pudéssemos ter certeza de que a nossa vida vai continuar em um outro plano.

Diante disse, a terceira grande Lição de Vida é aprender a fruir ou desfrutar as coisas simples da vida — e ser gratos por elas. O autor de Eclesiastes afirma que trabalhar pode ser um prazer que enriquece a vida – se não estivermos tentando ficar ricos, poderosos, famosos – coisas que tornam nossa vida geralmente um inferno. Quais as outras coisas: divertir-se, comer e beber (sempre vinho), curtir a pessoa amada, viver em companhia de pessoas que acrescentam qualidade à nossa vida… E nunca nos preocupar demais com o futuro… Devemos, diz ele, fazer o que é possível para combater injustiças e tornar nossa vida melhor, ma no troppo, sem exageros e fanatismos, sem fazer disso uma religião. Ele é contra todo tipo de fundamentalismo, contra o excesso de rigor, contra os que não admitem pequenas falhas de caráter ou conduta… Não devemos ser sábios nem bons demais (nem maus demais, naturalmente). Devemos, isto sim, procurar fazer o que é certo, mas sem nos preocupar demais com nossos erros, nem com os dos outros (Vide 7:20, citado atrás: “Não existe no mundo ninguém que faça sempre o que é direito e que nunca erre”): por isso é preciso se compreensivo e tolerante, com nós mesmos e com os outros.

A quarta grande Lição de Vida é de que há tempo para tudo. Mas essa lição não devemos levar muito a sério. Às vezes o tempo nos falta, porque nós é tirado e nós morremos, por vezes cedo demais. Em regra, o melhor tempo para fazer as coisas, assinala o autor de Eclesiastes, é a mocidade, “antes que venham os dias maus e cheguem os anos em que você dirá ‘Não tenho mais prazer na vida’” (12:1). Mas quem chega a esses dias e anos deve se sentir feliz, porque a alternativa é morrer cedo e nem ter tempo de fazer nada, ou grande coisa. Por isso, o autor afirma: “É maravilhoso viver! Ver a luz, o Sol! Se uma pessoa chegar à velhice, deve se alegrar em todos os dias de sua vida.” (11:7). Esta é a atitude correta, e não dizer “Não tenho mais prazer na vida”, porque estou velho, doente, etc. Mesmo na velhice é possível comer comida gostosa, beber vinho, e curtir a vida junto de quem se ama. O fim pode chegar a qualquer momento – mas para muitos o fim chegou quando eles eram muito jovens e não tiveram nenhum dos prazeres que a gente que é velho já teve e pode ainda ter…

“Quem fica esperando que o tempo mude e que o tempo fique bom, nunca plantará, nem colherá nada.” (Eclesiastes 11:4; NTLH).

“Se você esperar que tudo fique normal, jamais fará qualquer coisa.” (Eclesiastes 11:4; tradução A Bíblia Viva).

“Quem só pensa em se divertir é tolo; quem é sábio pensa também na morte. . . . É melhor ir a uma casa onde há luto do que ir a uma casa onde há festa, pois onde há luto lembramos que um dia também vamos morrer. E os vivos nunca devem esquecer isso.” (Eclesiastes 7:4,2; NTLH).

o O o

“O que é que esse livro está fazendo na Bíblia?”, perguntou um escritor ortodoxo e conservador. Eclesiastes pode parecer um desajustado dentro da Bíblia, o menos canônico dos livros canonizados. Mas ele tem maravilhosas Lições de Vida – possivelmente por ser diferente. Talvez essas lições não sejam muito teológica ou politicamente corretas, mas são, na minha forma de ver o mundo e a vida, maravilhosas. Não deixe de ler o Eclesiastes e de refletir com calma sobre suas lições. Quem sabe todo dia um pouquinho…

Em Salto, 21 de Março de 2017

Texto escrito com vistas a uma palestra que darei, em 25/3/2017, para o Ministério “Amigos no Caminho”, da Catedral Evangélica de São Paulo (a Primeira Igreja Presbiteriana de São Paulo), destinado a solteiros, viúvos, divorciados, e outros tipos de não casados ou descasados…

Há Futuro para um Ecumenismo Cristão? Reflexões sobre o que nos Separa

Eduardo Chaves

1. Introdução

Sei que vou mexer em vespeiro e, possivelmente, atrair para mim a ira de boa parte dos cristãos. Mas vou fazer isso, não para puxar briga e criar dissensão, mas para concitar meus amigos que, como eu, se consideram cristãos, a refletir um pouco sobre a nossa desunião crônica e sobre nossa tendência inelutável (no caso Evangélico) à separação.

Quando falo sobre “Ecumenismo”, no título, tenho em mente, como deixo claro, “Ecumenismo Cristão”, isto é a convivência pacífica e cordial entre aqueles que se consideram cristãos. Deveria ser mais fácil, mas não é. Mas que fique claro que não estou cogitando de um Ecumenismo que inclua os Judeus, os Muçulmanos, os Hindus, os Budistas, os seguidores de Religiões Africanas, etc. Incluo apenas aqueles que, em algum sentido relevante do termo, se consideram cristãos. Isso significa que incluo os Católicos e os Ortodoxos Orientais. Acho desnecessário frisar que incluo Pentecostais de todo naipe, Adventistas, Testemunhas de Jeová, Mórmons e até os “Moonies” (membros da Igreja da Unificação do Rev. Sun Myung Moon).

Sei que o termo “relevante”, na parágrafo anterior, é complicado e pode já gerar alguma discussão e controvérsia. Mas meu objetivo, neste artigo, não é criar mais conflito e desunião. Pelo contrário. É achar um “minimum minimorum”, como dizia meu pai, que nos permita, nem digo viver no amor cristão, mas simplesmente viver em paz e cordialidade.

Os dois termos, “paz” e “cordialidade”, são importantes. Viver em paz não basta, não é suficiente. Eu posso viver em paz com um primo meu que eu nunca vejo, e com quem não converso, há mais de cinquenta anos. O termo “cordialidade” é apto, pois enfatiza mais do que a paz decorrente da distância e da ausência de contato, apontando para a necessidade de uma convivência ativa e agradável – algo que pelo menos chegue perto de comunhão..

 Para quem não me conhece, sou presbiteriano de nascimento. Meu pai era pastor, eu nasci em casa, e a igreja de que meu pai era pastor funcionava em anexo. Sou, por formação, Historiador do Cristianismo (das Igrejas que se denominam Cristãs) e do Pensamento Cristão. Fiz curso de Teologia na Graduação, curso de História da Igreja, no Mestrado, e curso de História da Filosofia, no Doutorado. Faz mais de sessenta anos que esse assunto me fascina (desde o início dos anos sessenta). Meu Doutorado (em Filosofia, mas com tese sobre o Pensamento Cristão) foi concluído e defendido em Agosto de 1972, na University of Pittsburgh. Faz mais de cinquenta anos. O título de minha tese foi: David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought. O tema foi a revolução que o Iluminismo (exemplificado por Hume) produziu na História do Pensamento Cristão, fazendo que surgisse o Liberalismo do Século 19.  

Não por desejo nem por escolha minha, só vim a exercer função profissional nessa área em Julho de 2014, fazendo-o por apenas três anos, até Junho de 2017 – e, neste caso, a saída foi a despeito de minha vontade de continuar. Ou seja, só vim a exercer a função para a qual me preparei academicamente durante a vida toda apenas depois de completar setenta anos – quando a maioria das pessoas já está aposentada. (Eu também já estava, como professor de Filosofia na UNICAMP). Mas isso não se deu por desejo e por escolha minha, repito.

Ao longo desses mais de cinquenta anos, passei cerca de quarenta anos fora da igreja – totalmente desigrejado. Isso se deu desde 1970, quando decidi que não havia futuro para mim na igreja como pastor ou professor de teologia, até 2010, quando me tornei membro da Catedral Evangélica de São Paulo (Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo). Fiquei membro da Catedral durante basicamente dez anos e meio, pedindo o meu desligamento em Março de 2021, durante a Pandemia do COVID. Desde então, não sou membro de nenhuma igreja – embora frequente, com regularidade, e grande satisfação, faço questão de esclarecer, a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, onde resido. Sinto-me em casa na igreja, mesmo não sendo membro dela.

Conheço várias pessoas que se dizem cristãs (até, na minha opinião, cristãs bastante conservadoras), mas que afirmam ser severas críticas da igreja. O primeiro livro que ganhei (de minha mulher), no final de minha fase de “desigrejado”, foi Alma Sobrevivente, de Philip Yancey, que tem por subtítulo a seguinte qualificação: Sou Cristão, Apesar da Igreja.

2. Como Eu Vejo a Questão

Eu vejo as coisas de um ângulo um pouco diferente. Acho esquisito o subtítulo do livro de Yancey. Para mim, ser parte de uma igreja é parte essencial de ser cristão. Consigo entender um desigrejado, mas não um cristão desigrejado. Tanto que, durante os quarenta anos que fiquei desigrejado, não me considerei cristão. Considerava-me, então, cético, agnóstico, até mesmo ateu. Durante os dez anos e meio em que fui membro da Catedral, eu evidentemente voltei a me considerar cristão. E, nesta segunda fase, frequentando a Igreja Presbiteriana Independente de Salto, continuo a me considerar cristão, apesar de, oficialmente, não ser membro da igreja. (As igrejas têm alguma dificuldade para me rotular. Não seria correto me considerar um interessado. Seria eu apenas um visitante? Mas o visitante, no caso, é regular, comparece à igreja todos os domingos, participa da célula que se reúne no meio da semana… Que rótulo aplicar a ele? Como classifica-lo).

Em tese, eu gosto da Igreja, enquanto comunidade de pessoas que se consideram irmanadas por alguma coisa, por algum ideal – no caso de igreja, um ideal religioso. O que me atrapalha é a questão da doutrina – e da crença (ou fé) nessa doutrina que se exige dos membros (que precisam confessar a sua fé de público). Os que regularmente frequentam uma igreja cristã em geral se consideram “irmãos na fé”. Para se tornar membro de uma igreja cristã não basta, normalmente, querer ser membro: é preciso também crer ou acreditar em algumas doutrinas consideradas essenciais. No caso das Igrejas Presbiterianas em geral o essencial é toda a Confissão de Fé de Westminster, mais os Catecismos, a Ordem do Culto, o Código de Disciplina. Um essencial bem gordo. O número e a precisão das doutrinas que outras igrejas cristãs exigem varia, podendo ir desde “Você acredita em Deus e aceita Jesus Cristo como seu salvador?” até formulações bem mais detalhadas e cada vez mais complicadas de aceitar para algumas pessoas como eu.

O Novo Testamento diz, em Mateus 18:8-9:

“8. Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno.

⁹ E, se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida com um só olho, do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno.”

Marcos 9:43-48, que a maioria dos entendidos em Novo Testamento avaliam como mais antigo do que Mateus, e consideram uma fonte usada por este, afirma basicamente a mesma coisa (acrescentando três vezes uma frase cuja primeira parte é de complicado entendimento, na primeira tradução que estou usando):

“⁴³ E, se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga,

⁴⁴ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.

⁴⁵ E, se o teu pé te escandalizar, corta-o; melhor é para ti entrares coxo na vida do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno, no fogo que nunca se apaga,

⁴⁶ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.

⁴⁷ E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno,

⁴⁸ Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga.”

Para ninguém me criticar, estou citando, em ambos os casos, pela Almeida Corrigida e Fiel (ACF), e, confesso, não tenho a menor ideia do que a primeira parte da afirmação repetida nos versículos 44, 46 e 48 de Marcos quer dizer (“onde o seu bicho não morre”). Mas, para mim, esse trecho não faz muita diferença. Ser lançado no fogo do inferno só já basta para me deixar apavorado  – até porque é um foto eterno, nunca se apaga.

A Nova Tradução para Linguagem de Hoje (NTLH), de que muito crente tradicional e conservador não gosta, traduz os versículos de Mateus assim, deixando-o mais fácil de entender (como se espera):

“⁸ Se uma das suas mãos ou um dos seus pés faz com que você peque, corte-o e jogue fora! 

⁹ Se um dos seus olhos faz com que você peque, arranque-o e jogue fora! Pois é melhor você entrar na vida eterna com um olho só do que ter os dois e ser jogado no fogo do inferno.”

A NTLH traduz o texto de Marcos de forma coerente. Ela traduz a frase que eu achei de difícil entendimento em Mateus como: “Ali os vermes que devoram não morrem”. Como a vida humana no inferno também é eterna, nunca acabará, nem os seres humanos condenados, nem os vermes que tentarão nos devorar, terão fim. Penas eternas.

Segundo entendo, o que o Novo Testamento quer dizer é, basicamente, o seguinte (transportando para a primeira pessoa): se minha mão, ou meu pé, ou o meu olho me fizer pecar, ou escandalizar alguém, devo-o cortá-lo (ou removê-lo, no caso do olho) e jogá-lo fora, se eu quero escapar do Inferno.

O meu problema, para ser sincero, é o seguinte: e se minha cabeça (o meu cérebro) me fizer pecar, ou escandalizar alguém, devo eu cortar minha cabeça e jogá-la fora (supondo que minha mente esteja ligada de alguma forma ao meu cérebro e o cérebro esteja dentro da cabeça)?

MAS, se eu cortar minha cabeça, eu morro (na verdade, estarei me suicidando, o que não sei se a Bíblia recomendaria). Na verdade, se eu cortar a minha cabeça, não vou conseguir sequer jogá-la fora – alguém terá de fazer isso por mim. A questão mais séria, porém, é esta: será que eu evito o Inferno e entro no Céu sem cabeça? Ou será que eu ganho uma cabeça nova (com cérebro novo, com mente nova) nos portais do Reino de Deus? Mas, se eu tiver uma nova cabeça com um cérebro novo e uma mente nova, serei eu mesmo que entrarei no Céu ou será uma réplica parcial de mim? Como é que eu preservo a minha identidade de ser humano se minha cabeça, meu cérebro e minha mente forem trocados? Ou será que, por ter pecado com a cabeça (incluindo o cérebro e a mente), eu não tenho remédio e vou para o Inferno sem cabeça – mas, nesta hipótese, eu, por ter cortado voluntariamente minha cabeça, ficarei em desvantagem no Inferno em relação aos que não fizeram esse gesto heróico de cortar a própria cabeça…  Complicada a coisa, não é? Eu acho – e olhem que já li e pensei muito sobre essas coisas.

Eu sei que, a essas alturas, haverá muita gente que vai dizer que estou brincando com coisa séria. Concordo que a coisa é séria, mas discordo de que esteja brincando. Poucas vezes falei tão sério em minha vida.

3. O Problema, em Última Instância, é a Natureza da Bíblia

Antes de fornecer a minha solução, eu vou apresentar o meu diagnóstico. O problema, em última instância, é a questão da doutrina, que, no entanto, em última instância, depende da Bíblia — ou, melhor dizendo, depende de como entendemos a natureza da Bíblia.

A alternativa é:

OU a Bíblia é a Palavra de Deus, inspirada (ou, segundo alguns, virtualmente ditada) por ele para uma série de pessoas, tendo Deus garantido que ela, a Bíblia, tanto no Velho como no Novo Testamento, nos autógrafos originais, em Hebraico e em Grego, nas cópias subsequentes, e nas traduções para outras línguas, ao longo de quase três mil anos, é inerrante e infalível, em relação a qualquer questão, espiritual, moral, histórica, científica, e do dia-a-dia;

OU a Bíblia é um livro notável, de leitura altamente útil e, por vezes, agradável, que pode nos ajudar a ver o mundo de uma maneira importante e nele viver, tanto quanto possível, de modo correto, mas um livro humano, que, como tudo que é humano, contém erros e falhas, em relação a todas as questões que ela aborda (espirituais, morais, históricas, científicas, e do dia-a-dia).

É isso ou é isso. Pode-se tentar ficar tucanamente entre as duas alternativas, mas a posição é precária e a gente acaba caindo de um lado ou do outro.

O texto citado acima, na sua versão de Mateus e de Marcos, não só consta da Bíblia (no caso, do Novo Testamento) mas é atribuído a ninguém menos do que Jesus de Nazaré. O próprio.

Se o texto da Bíblia, em seu sentido literal (quando isso faz sentido), em qualquer das duas traduções, a fiel e a supostamente infiel, for total e absolutamente verdadeiro, não sobra um, meu irmão, porque a própria Bíblia diz que todos pecamos e destituídos fomos da Glória de Deus (Romanos 3:23) – e, se alguém, porventura, escapar da destituição, vai entrar na Glória sem mão, ou sem pé, ou sem olho, ou, pior, sem cabeça.

[UM PARÊNTESE. Eu sei, caros leitores, o que vem nos versículos seguintes de Romanos, como também sei que os cristãos não liberais, mas cultos e abertos, do dia de hoje, oferecem explicações mirabolantes para continuar a acreditar e afirmar que a Bíblia é literalmente a Palavra de Deus, mesmo sem ser inerrante e infalível em suas versões atuais, traduzidas para as línguas modernas, entre as quais a nossa. Sei que muitos acreditam — sem a menor evidência, registre-se — que os autógrafos, isto é, os originais, estariam sem erros e falhas, estes tendo sido introduzidos apenas por copistas e tradutores descuidados ou mal intencionados… Sei de tudo isso tão bem quanto qualquer um. Mas também sei que há um número enorme de pessoas, que poderiam estar incluídas no universo cristão, que se recusam a aceitar essas explicações mirabolantes. Sei também, por experiência, estudo e reflexão, que qualquer afirmação, por mais incoerente, inconsistente, autocontraditória e absurda que seja, sempre encontrará um intelecto brilhante disposto a aceitá-la, a acreditar nela, e a se dispor a convencer os outros de sua verdade. Estou cansado de saber tudo isso. Se vocês quiserem deixar de ler agora (se ainda não o fizeram), eu compreendo e lhes desejo um bom dia.]

Vou continuar ainda um pouco nesta mesma linha.

Há, na Bíblia, até mesmo no Novo Testamento, uma série de injunções (ordens, mandamentos, determinações, conselhos) que os cristãos, em sua maioria, mesmo os conservadores, e até mesmo os fundamentalistas, deixaram de aceitar nos dias atuais.

Paulo diz, em mais de um lugar, que as mulheres devem ficar caladas na igreja. Eis o que ele diz em 1 Coríntios 14:

33b Como em todas as igrejas do povo de Deus,

34 as mulheres devem ficar caladas nas reuniões de adoração. Elas não têm permissão para falar. Como diz a Lei, elas não devem ter cargos de direção.

35 Se quiserem saber alguma coisa, que perguntem em casa ao marido. É vergonhoso que uma mulher fale nas reuniões da igreja.

A passagem é clara é dispensa maiores comentários. Por mais que se tente, não dá para encontrar uma interpretação mirabolante que elimine o choque de alguém que lê esse trecho pela primeira vez no século 21. Especialmente se esse alguém for uma mulher jovem. Falo de cátedra. Tenho quatro filhas mulheres com idades entre 24 e 50 anos. E todas elas adoram falar.

Há muitas igrejas cristãs que, hoje em dia, simplesmente ignoram essa passagem, fazem de conta que ela não está na Bíblia. O pastor não prega sobre ela e a Escola Dominical / Sabatina não se aventura a por a questão em discussão.

Há igrejas cristãs, hoje em dia, que (felizmente) não fazem nenhuma distinção entre homem e mulher quando se trata de ocupar os principais ofícios da igreja: ensinar, pregar, oficiar os sacramentos, administrar a igreja. Há mulheres diaconisas, presbíteras, pastoras, bispas, apóstolas. Tudo exatamente o oposto do que Paulo determinou. O pessoal dessas igrejas vai todo para o Inferno?

A Bíblia inteira sugere que o homem é superior à mulher, sem qualificação, no mínimo porque teria sido criado primeiro, e ela teria sido criada a partir da costela dele. Isto já seria suficiente para que ele exerça a autoridade, como cabeça do casal, no lar, e que exerça as posições de liderança, fora do lar, no trabalho, e, naturalmente, na igreja. Embora haja mulheres que possuam papel importante no Cristianismo Primitivo, nenhuma foi chamada de discípula, apóstola, nem mesmo de bispa, pastora, presbítera e diaconisa.

Eis o que diz Paulo (ou seja quem for o autor de Efésios), no capítulo 5:

22 Esposa, obedeça ao seu marido, como você obedece ao Senhor.

23 Pois o marido tem autoridade sobre a esposa, assim como Cristo tem autoridade sobre a Igreja. E o próprio Cristo é o Salvador da Igreja, que é o seu corpo.

24 Portanto, assim como a Igreja é obediente a Cristo, assim também a esposa deve obedecer em tudo a o seu marido.” [Ênfase acrescentada.]

Eis o que Paulo (ou seja quem for que escreveu a carta) diz em 1 Timóteo 2:

11 As mulheres devem aprender em silêncio e com toda a humildade.

12 Não permito [sic!] que as mulheres ensinem ou tenham autoridade sobre os homens; elas devem ficar em silêncio. [Ênfase acrescentada.]

13 Pois Adão foi criado primeiro, e depois Eva.

14 E não foi Adão quem foi enganado; a mulher é que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus.”

(Aqui, o autor chega a afirmar que foi só a mulher que foi enganada e desobedeceu à lei de Deus…)

[Veja-se, a propósito do constante nas duas passagens, o artigo publicado pelo Seminário JMC, uma instituição da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), na Web: https://www.seminariojmc.br/index.php/2018/02/21/as-mulheres-podem-ensinar-na-igreja/. Isso, em pleno século 21. Os barbados não têm vergonha de escrever isso porque, na opinião deles, foi Deus quem determinou que assim fosse.]

No Novo Testamento afirma-se que o divórcio é tolerável no caso de traição mas nega-se que o cônjuge não culpado possa se casar de novo e viver uma vida normal na igreja (a menos que o cônjuge culpado, ou que tomou a iniciativa no divórcio, seja não-cristão!). O Novo Testamento não vê com bons olhos o casamento de uma pessoa cristã com uma pessoa não cristã (aquilo que se chama de “jugo desigual”).

Na verdade, os principais personagens do Novo Testamento, Jesus de Nazaré e Paulo de Tarso, eram solteiros. E tinham uma certa preferência pela solteirice – até porque os dois imaginavam que o mundo ia acabar ainda no tempo deles…

Eis o que diz Paulo em 1 Coríntios 7:

8 Aos solteiros e às viúvas eu digo que seria melhor para eles ficarem sem casar, como eu.

9 Mas, se vocês não podem dominar o desejo sexual, então casem, pois é melhor casar do que ficar queimando de desejo.

10 Para os que já estão casados tenho um mandamento, que não é meu, mas do Senhor: que a mulher não se separe do seu marido.

11 Porém, se ela se separar, que não case de novo ou então que faça as pazes com o marido. E que o homem não se divorcie da sua esposa.

12 Aos outros digo eu mesmo, e não o Senhor: se um homem cristão é casado com uma mulher que não é cristã, e ela concorda em continuar vivendo com ele, que ele não se divorcie dela.

13 E, se uma mulher cristã é casada com um homem que não é cristão, e ele concorda em continuar vivendo com ela, que ela não se divorcie dele.

14 Pois Deus aceita o homem que não é cristão por ele estar unido com a sua esposa cristã; e aceita a mulher que não é cristã por ela estar unida com o seu marido cristão. Se não fosse assim, os filhos deles não pertenceriam a Deus. Mas, sendo assim, eles pertencem.

15 Porém, se o marido não cristão ou a esposa não cristã quiser [sic] o divórcio, então que se divorcie. Nesses casos o marido cristão ou a esposa cristã está livre para fazer como quiser, pois Deus chamou vocês para viverem em paz.”

Além disso, o Novo Testamento afirma que, na hora das relações sexuais, a mulher, como em tudo, deve obedecer o marido. Na verdade, também afirma que o homem não deve negar seu corpo à sua mulher, se ela porventura o desejar. Mas é só em relação à mulher, como vimos, que o Novo Testamento afirma que ela deve obedecer ao seu parceiro…).

Eis o que Paulo afirma, ainda em 1 Coríntios 7:

1b Vocês dizem que o homem faz bem em não casar.

2 Mas eu digo: já que existe tanta imoralidade sexual, cada homem deve ter a sua própria esposa, e cada mulher, o seu próprio marido.

3 O homem deve cumprir o seu dever como marido, e a mulher também deve cumprir o seu dever como esposa.

4 A esposa não manda no seu próprio corpo; quem manda é o seu marido. Assim também o marido não manda no seu próprio corpo; quem manda é a sua esposa.

5 Que os dois não se neguem um ao outro, a não ser que concordem em não ter relações por algum tempo a fim de se dedicar à oração. Mas depois devem voltar a ter relações, a fim de não caírem nas tentações de Satanás por não poderem se dominar. ”

Se a mulher não pode se negar ao marido, e apenas ela tem a obrigação de obedecer ao cônjuge (ele não), há uma disparidade de direitos e deveres no relacionamento conjugal.

No Novo Testamento há uma digressão curiosa (e até certo ponto esquisita para as pessoas do século 21) sobre o uso de véu pelas mulheres na igreja. Eis o que diz Paulo em 1 Coríntios 11 (a passagem é meio longa):

3 Mas quero que entendam que Cristo tem autoridade sobre todo marido, que o marido tem autoridade sobre a esposa e que Deus tem autoridade sobre Cristo.

4 Se um homem cobre a cabeça quando ora ou anuncia a mensagem de Deus nas reuniões de adoração, ele está ofendendo a honra de Cristo [!!!].

5 E, se uma mulher não cobre a cabeça quando ora ou anuncia a mensagem de Deus nas reuniões de adoração, ela está ofendendo a honra do seu marido [!!!]. Nesse caso, não há nenhuma diferença entre ela e a mulher que tem a cabeça rapada.

6 Se a mulher não cobre a cabeça, então é melhor que ela corte o cabelo de uma vez. Já que é vergonhoso para a mulher rapar a cabeça ou cortar o cabelo, então ela deve cobrir a cabeça.

7 O homem não precisa cobrir a cabeça, pois ele reflete a imagem e a glória de Deus. Mas a mulher reflete a glória do homem, [!!!]

8 pois o homem não foi feito da mulher, mas a mulher foi feita do homem [Ênfase acrescentada].

9 O homem não foi criado por causa da mulher, mas sim a mulher por causa do homem [Ênfase acrescentada].

10 Portanto, por causa dos anjos [!!!/???], a mulher deve pôr um véu na cabeça para mostrar que está debaixo da autoridade do marido.

11 No entanto, por estarmos unidos com o Senhor, nem a mulher é independente do homem, nem o homem é independente da mulher.

12 Porque assim como a mulher foi feita do homem, assim também o homem nasce da mulher. E tudo vem de Deus. [Tentando consertar?]

13 Julguem vocês mesmos: será que é certo que, num culto de adoração, a mulher ore a Deus sem estar com a cabeça coberta?

14 Pois a própria natureza ensina que o cabelo comprido é uma desonra para o homem,

15 mas para a mulher o cabelo comprido é motivo de orgulho. O cabelo foi dado a ela para lhe servir de véu.”

Embora a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) ainda hoje não ordene mulheres, ela, felizmente, permite que mulheres ensinem na Universidade Presbiteriana Mackenzie, de propriedade da IPB, que já teve até Reitora… (no caso, Esther de Figueiredo Ferraz, de 1965 a 1969 – duas outras mulheres vieram a exercer o cargo subsequentemente).

Embora algumas igrejas Pentecostais ainda exijam, das mulheres, o uso do véu na igreja, a maioria das igrejas cristãs não exige nem lenço nem chapéu (embora não os proíba, no que a moda agradece).

A maioria das demais igrejas cristãs no Brasil não segue a maior parte das demais injunções bíblicas mencionadas nos parágrafos anteriores.

Está a Bíblia errada ao proibir essas condutas? Na época em que a Bíblia foi escrita (um período que cobre mais de mil anos – o último livro sendo escrito há quase dois mil anos atrás) essas injunções eram bem aceitas, porque faziam parte da cultura da época (como fazia parte, por exemplo, a poligamia dos patriarcas, e outros costumes, hoje inaceitáveis, pelo menos na maioria das culturas ocidentais). Mas hoje, vamos defender a excomunhão e o expurgo das mulheres que falam, ensinam, pregam, oficiam os sacramentos e participam da administração nas igrejas que admitem isso? Parece-me claro que não… Não faz sentido (exceto para a Igreja Presbiteriana do Brasil).

Assim, na maioria dos casos, não se trata de afirmar que a Bíblia esteja cheia de erros e falhas (embora ela, sem dúvida alguma, os contenha). É só admitir que ela é um livro humano que possui, exemplifica, demonstra e evidencia a cultura, os usos e costumes, bem como as crenças e os pontos de vista, de sua época. É pura perda de tempo ficar procurando nas profecias bíblicas algum indício de que, nas profecias relativas aos  últimos tempos, haja algum indício que aponte para o aparecimento da Inteligência Artificial ou algo parecido com o Chat GPT – como eu já vi em discussão recente no Facebook. Os autores bíblicos não tinham nem ideia do que era um computador para poder fazer profecia relativa a um de seus usos.

E não adianta dizer que a Bíblia é inerrante e infalível em questões de fé e moral, mesmo que não seja em questões de usos e costumes que não envolvem a moralidade. Não é. O Deus da Bíblia manda matar inimigos, inclusive mulheres e crianças. Se a interpretação calvinista de Deus tem um mínimo de plausibilidade, o Deus que essa interpretação nos mostra é arbitrário e injusto, pois condena às penas eternas uma criança que morre com um dia de vida, se ela não for eleita, porque ela “nasce em pecado”, mesmo que não tenha cometido nenhum pecado ela própria, como eu li ainda ontem (21.8.2023) no Facebook. O Deus de Calvino determinou quem seria eleito para a salvação e quem seria condenado à perdição eterna, antes da criação do mundo… isto é, antes de ter criado o homem, e, a fortiori, antes de ele haver pecado. Em condições como essas, não havia como o homem não pecar (non posso non peccare, como dizia Agostinho). Essa a doutrina da chamada dupla predestinação.

Não sou proselitista e não estou querendo convencer, nem muito menos converter, ninguém. Convivo muito bem com gente que pensa diferente de mim. Nunca tive uma inclinação missionária. Só quero ver se é possível encontrar uma solução prática para o problema da desunião entre os cristãos, que lhes permita viver em paz e em cordialidade.

Como disse atrás, voltei a me considerar cristão – mas, desde 1965, e especialmente desde 1970, sou um cristão liberal. O liberalismo é muito criticado nas hostes do cristianismo conservador e fundamentalista. Mas pastores e teólogos liberais nunca processaram nenhum pastor conservador ou fundamentalista, nunca procuraram fazer com que fossem punidos pelos tribunais eclesiásticos, nunca os expulsaram de sua igreja. Em contrapartida, os conservadores e fundamentalistas fizeram isso com os pastores e teólogos liberais. Porque frequentemente são vítimas, e nunca algozes, os liberais querem uma igreja inclusiva, latitudinária. Para eles não existe algo que possa ser chamado de heresia, e, consequentemente, não há hereges: o pensamento divergente é visto por eles como um direito, mesmo dentro da igreja. Não havendo heresia, não há como caracterizar uma ortodoxia. Ponto final.

4. Qual a Solução?

 A única solução que eu encontro é definir minimamente a essência do Cristianismo de modo que todos os cristãos possam se enxergar, e enxergar os outros que se consideram cristãos, nessa essência (mesmo que eles aceitem muito mais do que o mínimo previsto na essência).

Essa solução implica considerar a religião cristã, ou o Cristianismo, como um movimento social, com uma essência básica, interpretada de forma ampla, e não como um conjunto de pessoas com crenças religiosas e metafísicas iguais – exatamente idênticas.

Interpretado assim, o Cristianismo poderá ser considerado, sem firulas desonestas, o maior movimento social do mundo, com mais de dois milênios de duração, aceito, se interpretado de forma latitudinária, por mais de dois bilhões de habitantes da Terra. Sendo um movimento social de natureza religiosa, ele não pode prescindir de uma referência a Deus e à existência de uma esfera que vai além do mundo natural e o transcende – seja qual for o nome que se lhe dê: esfera sobrenatural, esfera espiritual, esfera transcendente, o Além, etc. O movimento social cristão se recusa a aceitar que o mundo material seja tudo que existe e que a ciência natural seja a única forma de conhecimento e explicação válida.  

Qual seria essa essência? Já a sugeri (em parte) atrás, mas repito aqui de forma mais plena e precisa:

Acreditar que Deus é o responsável pela existência, pela preservação e pela governança do universo em que vivemos e aceitar que os ensinamentos e o exemplo de Jesus de Nazaré apontam para a melhor forma de viver, individual, social e espiritualmente, nesse universo ou em outro que porventura possa existir.”

Essa é uma essência. Toda essência é concentrada, é mínima, precisa ser expandida. Cada pessoa, ou cada grupo, pode expandir essa essência como desejar – DESDE QUE ADMITA QUE OUTROS POSSAM FAZÊ-LO DE FORMA DIFERENTE E CONTINUEM A ACEITAR A ESSÊNCIA. Todos os que aceitam a essência são irmãos nessa forma de ver o mundo. Você quer aceitar que Deus operou milagres nos tempos antigos e continua a realizá-los hoje, na forma de curas, livramentos, bênçãos especiais, etc.? Aceite. Nenhuma igreja deveria proibi-lo de crer nisso. É algo além do mínimo. Mas que não obrigue todos os demais cristãos a acreditar.

Utopia? Pode ser.

Se não buscarmos algo que parece utópico hoje, teremos de conviver com absurdos, com gente que acha que um casamento de uma pessoa batista com uma pessoa católica é proibido, porque se trata de jugo desigual, com gente que acha que, se você é arminiano, e não calvinista radical, você é do Diabo e já tem seu passaporte carimbado para o Inferno; E assim por diante.

Você prefere isso?

Você prefere viver em uma igreja em que as mulheres precisem ter cabelos compridos, e usar véus, e ainda por cima ficar totalmente caladas, no seu canto ou no seu lado da igreja? Vai haver igreja que satisfaça o seu gosto.

Você prefere viver em uma igreja em que, se alguém se divorciar, e se casar de novo, será posto para fora? Vai haver igreja que satisfaça sua preferência. Mas também haverá igreja que acolherá com naturalidade os que, tendo se separado, sentem que devem se casar de novo.

Se você é homossexual, você vai preferir viver em uma igreja que condena a homossexualidade como doença e quer fazer a sua cura, ou em uma igreja que acolhe com naturalidade você e seu parceiro (ou sua parceira)?

Note-se que já progredimos bastante.

Lutero concordou que os Príncipes Alemães de sua região matassem cerca de cem mil camponeses (sic) porque estes queriam que a Reforma Luterana contemplasse não apenas a doutrina da justificação pela fé mas também a doutrina de que o ser humano deve ser livre para trabalhar para quem quiser, naquilo que preferir, onde lhe for mais interessante – ou seja, por defender uma reforma que não fosse apenas religiosa, mas também econômica e social. Hoje a maior parte das pessoas concordaria com os camponeses alemães.

Calvino condenou à morte Michel Serveto (e alguns outros) por não acreditar que Deus é Triúno, isto é, um Deus constituído de Três Pessoas mas com Uma Só Natureza. Serveto não era ateu. Ele acreditava em Deus. Ele acreditava que Jesus era divino – mas não exatamente igual a Deus. E mesmo assim foi morto, em fogo lento, para sofrer mais e por mais tempo. Maldade pura e simples.  Hoje a maior parte das pessoas concordaria com Sebastian Castellio, defensor de Serveto e crítico de Calvino, de que a punição de hereges com a morte é algo totalmente inadmissível. Serveto quase perdeu a vida por fazer essa defesa, pois foi perseguido implacavelmente por Calvino.

Você preferiria viver numa época como a de Lutero e Calvino a viver hoje, com todo o chamado secularismo da Cultura Ocidental – mas que, por enquanto, é razoavelmente livre, permitindo a liberdade de culto e de religião?

As coisas precisam começar a mudar a partir de casa. Se você acha que só quem faz parte de sua própria denominação é cristão, os membros das demais estando perdidos sem esperança, já estando na ante-sala do Inferno, onde o Diabo os espera, não há esperança. Se a gente não consegue aceitar como irmão alguém que pensa diferente da gente em algo menor, secundário, não essencial, não há esperança — não só para uma União dos Cristãos, mas para a pacificação do mundo.

É isso. Graça e, no momento, sobretudo Paz, Tolerância, e Cordialidade.

Em Salto, 22 de Agosto de 2023

O Liberalismo Teológico – Uma Nota

O Liberalismo Teológico não é um conjunto de doutrinas e crenças que todo adepto da Teologia Liberal precisa aceitar para ser considerado um liberal bona fide. Nele não existem credos e confissões que todo liberal precisa aceitar para poder se considerar um liberal. Não existe ortodoxia. Não existem Tribunais de Inquisição. Consequentemente, não existem heresias, nem tampouco hereges. Não existe perseguição nem, muito menos, expurgo dos que ousam pensar, ou conduzir sua vida, de forma diferente. E não existem fogueiras onde queimar os hereges, porque inexiste essa categoria de pessoas, porque também inexiste a categoria de liberais ortodoxos, uma verdadeira contradição de termos.

O Liberalismo Teológico é um jeito e uma forma de entender o Cristianismo, de relacionar o Cristianismo com o mundo em que ele está inserido, de ler e interpretar tanto a Bíblia como a Tradição, e de fazer Teologia. O Liberalismo Teológico procura identificar e preservar a essência da herança recebida, e está disposto a acomodar o restante às novas realidades em que o Cristianismo precisa se situar.

Quem não aceita esses postulados geralmente não vem para o Liberalismo Teológico. Mas se, por absurdo, quiser vir, virá, será bem-vindo, e ficará ali até quando quiser sair (se isso acontecer), porque ninguém ficará incomodado com ele, nem, muito menos, tentará impedi-lo de pensar como pensa, e agir como acredita que deve, e, muito menos, tentará puni-lo por pensar assim.

Na Igreja Presbiteriana Americana, quando os liberais teológicos, depois de sofrer perseguição e expurgos (felizmente não chegou a haver fogueiras na Inquisição de lá), alcançaram a maioria, eles não perseguiram nem colocaram para fora da igreja fundamentalistas e conservadores como J. Gresham Machen e John Gerstner. Estes ficaram lá até o momento em que eles próprios resolveram sair.

O movimento conhecido como “Liberalismo Teológico”, que existe desde os primórdios do Cristianismo, não tem esse nome por acaso. Seus adeptos prezam a liberdade de pensar e de agir, e, por conseguinte, de ser cristãos como acham que devem. E não negam esse direito para ninguém.

Se Paulo de Tarso houvesse sido obrigado a ser cristão judaizante, como Pedro e Tiago, não haveria Cristianismo, hoje. Ou o Cristianismo não seria nada mais do que uma variante do Judaísmo Ortodoxo, só que com Cristo. Paulo, se a gente descontar o próprio Jesus de Nazaré, foi o primeiro liberal teológico, à sua moda (como são todos os liberais teológicos, do seu jeito, “their way”). Ele acomodou o Cristianismo Judaizante de uma Palestina Judaica à realidade do mundo greco-romano pluralista, inclusive no tocante à religião, onde não havia nem judeu, nem grego, nem romano: havia apenas gente.

[Esta Nota representa a essência de um artigo que estou escrevendo sobre “A FATIPI e o Liberalismo Teológico”, a propósito de um podcast disponível no Youtube e no Spotify. Esperava publicar o artigo logo depois que o podcast foi divulgado, mas ele cresceu e está virando um ensaio, já com 60 páginas, sobre a Teologia Liberal. A divulgação desta “essência” do artigo tira um pouco da pressão que eu próprio coloquei sobre mim para publicar o ensaio, mesmo que meio inacabado…]

[Eduardo Chaves, 2.6.2023]

O “Crente Liberal”

[Transcrito do meu blog Chaves.Space]

Convenhamos: pouca gente recorre ao liberalismo teológico se não passa a enfrentar dificuldades para manter sua fé em Deus, ou para manter intatas suas outras crenças religiosas, se e quando essa fé e essas crenças forem interpretadas em um sentido literal (o sentido que parece evidente à primeira vista: se está escrito que a mula de Balaão falou, ou que Josué fez o Sol parar em sua trajetória, então a mula falou e o Sol parou, ora bolas).

Quem acredita que Deus é um ser pessoal, que conta os cabelinhos da cabeça de cada pessoa que existe (ou pelo menos daquelas que acreditam nele), e não deixa que nenhum dos fios caia sem que ele, não só saiba que o fio vai cair, mas queira, decida e determine que caia… – quem acredita nisso em um sentido literal dificilmente vira um crente liberal, pois não tem por que fazer isso.

Quem acredita que Deus, vivendo lá (lá onde?) antes do princípio dos tempos, em que não havia absolutamente nada, a não ser ele, que era eterno, resolveu criar o mundo, e foi criando as coisas, até finalmente criar o homem, a partir de um bonequinho de barro que ele próprio construiu, e, depois, a mulher, a partir de uma costela do homem, e colocou os dois num jardim… — quem acredita nisso em um sentido literal dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.

Quem acredita que o mundo que Deus criou tem, além de nós, humanos, descendentes de Adão e Eva, seres espirituais de vários matizes, anjos bons e anjos caídos (espíritos maus), estes capitaneados por um líder, que é o maior inimigo de Deus (e cujo nome eu nem ouso mencionar); e que esse mundo que nós e esses serem habitamos é composto de, digamos, três pavimentos: um pavimento intermediário, que é o nosso habitat, a Terra, planinha de tudo, um pavimento superior, em cima, o Céu, onde estão os anjos e os demais espíritos bons, e um pavimento inferior, cujo nome eu também nem menciono, onde estão os anjos caídos e os seus líderes; e que, quando a gente morre, a alma da gente, ou algo equivalente (espírito?), vai para o andar de cima ou para o andar de baixo, ou fica planando em algum outro lugar misterioso, um limbo ou um purgatório, esperando o fim do mundo, quando haverá a ressurreição dos corpos que já morreram, que serão reunidos com suas almas (ou espíritos) e serão julgados… —  quem acredita nisso tudo em um sentido literal dificilmente vira liberal, pois não tem por que fazer isso.

Por outro lado, quem, por alguma razão qualquer, que não vem ao caso agora, não consegue acreditar nessas coisas, interpretadas assim literalmente, das duas uma: ou vira ateu de uma vez, ou vira um crente liberal — deixa de ser um crente do tipo conservador ou fundamentalista.

(Parêntese: um fundamentalista é um conservador mais radical, mais irredutível e dogmático em suas crenças; que tem certeza de que está com a verdade; que acha que quem discorda dele está simples e redondamente errado; que está convicto de que o erro não deve ser tolerado por quem não tem dúvida de que está de posse da verdade, como ele próprio; que está certo, portanto, de que quem está de posse da verdade, como ele próprio, não deve congregar na mesma igreja com quem está errado, ou nem mesmo deve conviver com ele fora da igreja, e que, portanto… – fim do parêntese.)

O crente liberal se dispõe de alguma forma a manter a sua fé e suas crenças religiosas, mas interpretá-las de alguma forma não literal, quem sabe em uma linha liberal, e ele faz isso, em geral, para não se sentir um ser dividido, meio esquizofrênico, que, de um lado, quando necessário, usa antibióticos e antidepressivos, se submete a exames de tomografia computadorizada e de ressonância magnética, faz terapia cognitiva, baseada em psicologia positiva, mas que, do outro lado, continua a acreditar, ao mesmo tempo, que está vivendo, aqui nesta Terra plana, uma batalha espiritual em que seres invisíveis batalham por sua alma (ou espírito) e tentam possuí-la(o) e habitar no seu corpo, que é preciso de alguma forma ficar do lado dos espíritos do bem e exorcizar, de alguma maneira, mais ou menos escandalosa, os maus espíritos, e… etc. – não é preciso completar.

A gênese do liberalismo teológico está aí nesse dilema. Quem não tem dúvidas, quem não tem dificuldades com sua fé e com suas crenças religiosas, não sente a mínima atração pelo liberalismo teológico – na verdade, nem compreende como alguém possa se sentir atraído por essa postura teológica que, no seu modo de ver as coisas, não leva a sério a Bíblia, a Palavra infalível e inerrante de Deus, não aceita a Confissão de Fé e os Catecismos de Westminster em sua interpretação “natural” (vale dizer, literal), etc.

Ninguém (ou assim me parecem as coisas) é liberal, ou mesmo ateu, porque é de coração ruim ou cabeça dura. A maioria de nós nasceu em lares de pessoas que creem (ou criam) em Deus e levam (ou levavam) sua religião a sério. Por que alguns continuam a crer sem dificuldade e outros passam a ter dúvidas e, em um dado momento, descobrem que estão tendo dificuldades com sua fé em Deus e suas demais crenças religiosas, enfrentando dúvidas, percebendo que não acreditam mais em coisas que, um tempo atrás, não tinham dificuldade para aceitar? Será predestinação? Será que Deus predestinou alguns de nós para crer e outros para ter dúvidas, para virar liberais, ou, até mesmo, para descrer de uma vez? Mas se é predestinação, e as decisões divinas são irresistíveis e inelutáveis, o que é que se pode fazer?

Acreditar em algo em geral não é algo sobre o que a gente tem total controle. Talvez tenhamos algum controle – o de não nos expormos a ambientes em que nossa fé e nossas crenças são questionadas e, assim, possam vir a correr risco.

Consta (li isso em uma biografia dele que tenho) que Billy Graham era, em seu tempo de juventude, muito amigo de um rapaz que foi estudar em um seminário bem mais liberal do que aquele em que Billy Graham estava estudando. Quando se encontravam, o seu amigo lhe contava o que havia lido, o que seus professores diziam em sala de aula, etc. Um dia seu amigo lhe confessou, em confiança, que estava perdendo a fé. Pelo relato, Billy Graham lhe disse algo assim: Então vamos fazer um trato. Se vamos continuar amigos, você não me conta mais nada sobre suas leituras, sobre suas aulas, sobre suas dúvidas, porque eu não quero perder a minha fé, como você está perdendo a sua. Só conversamos sobre outros assuntos. E, assim, Billy Graham não perdeu a sua fé. Mas há quem ache que isso parece ser uma fuga do livre exame, quiçá da verdade, e, talvez, implique até mesmo alguma desonestidade. Como a de Richard Nixon, que, como também consta, dizia a seus auxiliares para não lhe contar certas coisas porque ele queria poder dizer, sinceramente, que não sabia – queria ter condições de “negabilidade”…

É forçoso reconhecer que o crente liberal (teologicamente falando) também fica meio dividido. Ele não consegue acreditar em um monte de coisas que a maioria dos crentes que não se acha liberal acredita. Estes, os crentes não liberais, os conservadores e fundamentalistas, não raro acham que o crente liberal na realidade é um quinta-coluna, um agente do coisa ruim que só está ali na igreja para semear cizânia e subverter a fé dos demais… Assim, o crente liberal acaba ficando meio deslocado, quando não um pária, dentro da sua própria igreja. Alguns dentre os demais crentes têm até medo de ficarem muito amigos dele – pode pegar mal, os outros podem achar que também eles estão virando liberais… No fundo, para esses crentes não liberais, crente é crente, e “crente liberal” não existe – crente liberal é um descrente que perdeu o nervo e não quer admitir a sua descrença, porque, no fundo, gosta do mundinho da igreja, dos amigos que ali lhe restam, dos hinos que o acompanham desde a infância…

Isso pode levar o crente liberal à seguinte consideração: vale a pena, em um ambiente eclesial predominantemente conservador e mesmo fundamentalista, ser um crente liberal, um crente que se dispõe a encontrar novas interpretações, não literais, para as crenças tradicionais, interpretações que o tornem menos dividido e esquizofrênico, ou é melhor se declarar ateu de uma vez e tirar o time do campo religioso? Ou, pelo menos, procurar uma igreja de liberais, se é que existe uma fora dos limites da PC(USA)?

O crente liberal me faz lembrar de Rudolf Bultmann, na minha opinião o maior teólogo do século 20. Mas um liberal. Apesar de ser o maior teólogo do seu tempo, na igreja de que ele era membro (sem ser pastor) a única coisa que lhe sobrou fazer era tirar a coleta. E ele aceitou fazer isso – dizem que até com certo orgulho. Maior humildade eu nunca vi.

Em Salto, 25 de Janeiro de 2020 (Dia do Aniversário de São Paulo).

O Liberalismo Teológico: A Questão do Conceito

I. Bibliografia de Artigos Meus Sobre o Assunto

Já escrevi vários artigos em meus blogs sobre o Liberalismo Teológico (também chamado de Teologia Liberal).

1. Blog Liberal Space

Eis o título e o URL de alguns artigos que publiquei no meu blog Liberal Space (https://liberal.space), a data da publicação estando explicitada no URL (e partindo do mais antigo para o mais recente):

“19 de Agosto de 1967”
https://liberal.space/2009/08/19/19-de-agosto-de-1967/

“A Feitura de um Liberal”
https://liberal.space/2014/05/25/a-feitura-de-um-liberal/

“Duas Crises Hermenêuticas”
https://liberal.space/2014/05/25/duas-crises-hermeneuticas/

“How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else?”
https://liberal.space/2014/05/26/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/

“Por que se Dividem as Igrejas?”
https://liberal.space/2014/11/03/por-que-se-dividem-as-igrejas/

“Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”
https://liberal.space/2015/07/04/literalismo-hermeneutica-e-liberalismo/

“Elucubrações Perigosas…”
https://liberal.space/2015/08/17/elucubracoes-perigosas/

2. Blog Theological Space

Eis o título e o URL de alguns artigos que publiquei no meu blog Theological Space (https://theological.space), a data da publicação estando explicitada no URL (e partindo do mais antigo para o mais recente):

“Elucubrações Perigosas…”
https://theological.space/2015/09/07/elucubracoes-perigosas/

“Continuando as Elucubrações…”
https://theological.space/2015/09/08/continuando-as-elucubracoes/

“Duas Crises Hermenêuticas”
https://theological.space/2015/09/08/duas-crises-hermeneuticas/

“How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else?”
https://theological.space/2015/09/08/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/

“Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”
https://theological.space/2015/09/08/literalismo-hermeneutica-e-liberalismo/

“A Teologia Liberal do Século 19: Tentativa de Periodização”
https://theological.space/2016/02/20/a-teologia-liberal-do-seculo-19-tentativa-de-periodizacao/

“Teologia Liberal: Uma Tentativa de Entendê-la – 1”
https://theological.space/2016/02/28/teologia-liberal-uma-tentativa-de-entende-la-1/

“Teologia Liberal: Uma Tentativa de Entendê-la – 2”
https://theological.space/2016/02/28/teologia-liberal-uma-tentativa-de-entende-la-2/

[Alguns artigos aqui são duplicatas (republicações) de artigos de outros blogs.]

3. Blog História da Igreja

Eis o título e o URL de alguns artigos que publiquei no meu blog História da Igreja (https://historiadaigreja.space), a data da publicação estando explicitada no URL (e partindo do mais antigo para o mais recente):

“A Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos – Parte 1”
https://historiadaigreja.space/2014/08/04/a-controversia-fundamentalista-modernista-na-igreja-presbiteriana-dos-estados-unidos-parte-1/

“A Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos – Parte 2”
https://historiadaigreja.space/2014/08/04/a-controversia-fundamentalista-modernista-na-igreja-presbiteriana-dos-estados-unidos-parte-2/

“A Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos – Parte 3”
https://historiadaigreja.space/2014/08/04/a-controversia-fundamentalista-modernista-na-igreja-presbiteriana-dos-estados-unidos-parte-3/

“A Controvérsia Fundamentalista – Modernista na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos – Parte 4”
https://historiadaigreja.space/2014/08/04/a-controversia-fundamentalista-modernista-na-igreja-presbiteriana-dos-estados-unidos-parte-4/

“Duas Crises Hermenêuticas”
https://historiadaigreja.space/2014/08/19/duas-crises-hermeneuticas/

“How Far Can a Doctrine Change Before Becoming Something Else?”
https://historiadaigreja.space/2014/08/19/how-far-can-a-doctrine-change-before-becoming-something-else/

“O Fundamentalismo na Forma em que Surgiu na Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos”
https://historiadaigreja.space/2014/09/30/o-fundamentalismo-na-forma-em-que-surgiu-na-igreja-presbiteriana-dos-estados-unidos/

“Friedrich Schleiermacher”
https://historiadaigreja.space/2015/05/14/friedrich-schleiermacher/

“Ernst Troeltsch”
https://historiadaigreja.space/2015/05/14/ernst-troeltsch/

“Adolf von Harnack”
https://historiadaigreja.space/2015/05/14/adolf-von-harnack/

“Evangelismo, Evangelicalismo, Evangelicismo”
https://historiadaigreja.space/2015/07/29/evangelismo-evangelicalismo-evangelicismo/

“A História da Igreja na Era Moderna: Temas e Problemas de História da Igreja III”
https://historiadaigreja.space/2016/02/03/a-historia-da-igreja-na-era-moderna-temas-e-problemas-de-historia-da-igreja-iii/

“A Teologia Liberal do Século 19: Tentativa de Periodização”
https://historiadaigreja.space/2016/02/20/a-teologia-liberal-do-seculo-19-tentativa-de-periodizacao/

“Período Apostólico: Tese Liberal”
https://historiadaigreja.space/2016/12/08/periodo-apostolico-tese-liberal/

“Uma Tese Liberal Sobre o Período Apostólico”
https://historiadaigreja.space/2017/03/11/uma-tese-liberal-sobre-o-periodo-apostolico/

“Por que se Dividem as Igrejas?”
https://historiadaigreja.space/2017/04/06/por-que-se-dividem-as-igrejas/

“O Liberalismo e a Teologia da Prosperidade”
https://historiadaigreja.space/2017/04/12/o-liberalismo-e-a-teologia-da-prosperidade/

[Novamente, alguns artigos aqui são duplicatas (republicações) de artigos de outros blogs.]

4. Blog Transforma Brasil

Eis o título e o URL de um artigo relevante que publiquei no meu blog Transforma Brasil (https://transformabrasil..space), a data da publicação estando explicitada no URL:

“Reformar ou Transformar: Discussão Filosófica Sobre Mudança e Inovação – Parte 1”
https://transformabrasil.space/2018/02/25/reformar-ou-transformar-discussao-filosofica-sobre-mudanca-e-inovacao-parte-1/

[Só destaco esse artigo neste blog, apesar de ele ter continuidade com uma “Parte 2”. Mas essa segunda parte, diferentemente da primeira, não contém elementos relevantes à discussão do Liberalismo Teológico.]

5. Outros Artigos Nesses Blogs ou em Outros

Há outros artigos, nesses blogs ou em outros, que são relevantes, mas em parcela menor. Por isso, deixo-os de fora, neste primeiro momento. Mais tarde poderei inseri-los, à medida que perceba que contêm elementos que não foram discutidos nos artigos mencionados.

II. A Questão do Conceito do Liberalismo Teológico

O que pretendo discutir aqui é uma questão razoavelmente complexa.

1. O Liberalismo Teológico como Movimento Histórico

O Liberalismo Teológico é, em geral, entendido como um Movimento Histórico que aconteceu dentro de um período específico na História do Pensamento Cristão, período esse em geral identificado como a segunda metade do Século 18 e o Século 19 (em sentido lato — até o final da Primeira Guerra Mundial). Nesse movimento prevaleceu um certo tipo de teologia geralmente chamada de Teologia Liberal – embora nem todo teólogo do Século 19 (sentido lato) tenha sido liberal em um sentido Filosófico-Teológico, que será discutido na seção seguinte, e não puramente histórico.

A demarcação específica desse período está discutida no seguinte artigo da Bibliografia: “A Teologia Liberal do Século 19: Tentativa de Periodização”. Nesse artigo discuto a proposta de Claude Welch, em seu livro, em dois volumes, Protestant Thought in the Nineteenth Century, de classificar o Liberalismo Teológico, como movimento datável, atribuído a um determinado período, como indo do penúltimo ano do Século 18 (1799) até o ano inicial da Primeira Guerra Mundial, já em pleno Século 20 (1914) – com duração de um pouco mais de 115 anos, portanto.

Welch ainda divide esse período de 117 anos em três subperíodos:

  • 1799 a 1835
  • 1835 a 1870
  • 1870 a 1914

Esses três períodos teriam sido, grosso modo, dominados pelos seguintes teólogos alemães: o primeiro, por Friedrich Schleiermacher, considerado por muitos o Pai da Teologia Liberal; o segundo, por Albert Ritschl; e o terceiro, por Ernst Troeltsch e Adolf von Harnack. Há, na bibliografia, artigos sobre três desses quatro. Faltou um artigo sobre Albrecht Ritschl, que eu ainda pretendo escrever. Albrecht Ritschl era tio-avô do não tão famoso, mas por mim muito querido, professor Dietrich Ritschl (este falecido em 11 de Janeiro deste ano de 2018, um ano antes de completar 90 anos). Dietrich Ritschl foi meu professor durante cinco anos em Pittsburgh, PA, EUA, quando eu fazia minha Pós-Graduação (Mestrado no Pittsburgh Theological Seminary e Doutorado na University of Pittsburgh).

Nesse entendimento da expressão, o Liberalismo Teológico teria sido sucedido, na sequência histórica, pela Neo-Ortodoxia Teológica, geralmente associada, na Alemanha, com os nomes de Karl Barth, Emil Brunner, Rudolf Bultmann, Paul Althaus, Friedrich Gogarten, etc. e, nos Estados Unidos, com os nomes de Reinhold Niebuhr e Paul Tillich – em geral tidos e vistos como críticos e opositores da Teologia Liberal.

Nesse sentido da expressão, não faria o menor sentido chamar Rudolf Bultmann, por exemplo, de teólogo liberal. Bultmann, ele próprio, entendia sua identidade profissional como crítico desse Liberalismo Teológico – a maior parte do tempo, pelo menos. Ele via a Neo-Ortodoxia Teológica como sua tribo profissional, por assim dizer, apesar de, como quase todos os demais membros da tribo, ter se desentendido com Karl Barth, considerado como o Cacique da Tribo pela maior parte dos teólogos e historiadores do pensamento cristão do Século 20. Os dois, Barth e Bultmann, ficaram sem conversar um com o outro por um bom tempo (da mesma forma que Barth e Brunner).

2. O Liberalismo Teológico como Posição Filosófico-Teológica

A. Um Pouco de História da Igreja

Dei-me conta da existência de um outro e mais importante sentido da expressão Liberalismo Teológico quando, em uma disciplina sobre História do Pensamento Cristão Contemporâneo (Séculos 20 e 21), da matéria História do Pensamento Cristão, que ministrei na Faculdade de Teologia de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI), detalhei os principais elementos do pensamento de Rudolf Bultmann, descrevendo-o como Neo-Ortodoxo. Um aluno me indagou: “Mas professor, o que é que há de ortodoxo no pensamento de Bultmann, mesmo que a gente qualifique a Ortodoxia de Neo? A mim ele parece muito mais radical do que os teólogos liberais que a gente viu quando discutimos a Teologia Liberal do Século 19…”. Fui forçado a reconhecer que há muito pouco no pensamento de Bultmann que pode se considerado Ortodoxo em um sentido Filosófico-Teológico e que ele certamente parece mais um Teólogo Liberal, em plena metade do Século 20 do que muitos Teólogos Liberais do Século 19.

Foi nesse contexto que comecei a construir a distinção entre o Liberalismo Teológico como Movimento Histórico e o Liberalismo Teológico como Posição Filosófico-Teológica. Neste segundo sentido, faria sentido aceitar a afirmação de Bultmann de que ele era crítico do Liberalismo Teológico (como Movimento Histórico) e, ainda assim, classificá-lo como membro do Liberalismo Teológico (como Posição Filosófico-Teológica). Há indícios na obra de Bultmann de que ele não rejeitaria a classificação, embora possivelmente pudesse achar que ela causaria mais problemas do que solucionaria. Se dissesse isso, eu discordaria dele — embora, para ele, aceitar o rótulo de “liberal” poderia lhe criar mais problemas do que ele estava disposto a encarar.

Depois de chegar a essa conclusão de forma meio intuitiva, achei, no livro The Mission of Demythologizing: Rudolf Bultmann’s Dialectical Theology, de David W. Congdon, publicado pela Fortress Press em 2015, ampla justificação para a minha tese. Aproveito, na sequência, material que utilizei, como parêntese, no item da Bibliografia publicado no blog Transforma Brasil.

Há historiadores do pensamento cristão que consideram Rudolf Bultmann um neo-ortodoxo, e não um liberal. Aqui não é o lugar para discutir isso, mas estou, hoje, totalmente convencido de que Bultmann era um liberal, não um neo-ortodoxo. Fiquei muito contente, em 2015, quando encontrei um livro recém publicado, de quase mil páginas, que, até certo ponto, confirma minha convicção. Trata-se do livro que mencionei no parágrafo anterior. Paguei a bagatela de 75 dólares pelo livro em capa dura, mais 10 dólares de frete para tê-lo rapidamente aqui no Brasil naquela época. Eis o que Congdon afirma em uma nota de rodapé na segunda página da Introdução, depois de definir “Teologia Liberal” como “uma reinterpretação moderna do Cristianismo” (p.xviii). Na Nota de Rodapé 3 ele afirma:

“Esta é uma definição intencionalmente ampla da ‘Teologia Liberal’. Bultmann se refere ao Liberalismo [Teológico] geralmente em termos pejorativos, para indicar uma forma bastante específica de teologia contra a qual ele e Barth reagiram, teologia essa influenciada pelo Idealismo e pelo Historicismo, em particular. Mas Bultmann também reconhece que sua própria teologia contribui para um entendimento mais amplo e menos problemático do que seja a Teologia Liberal. É neste sentido positivo da expressão Teologia Liberal que eu tenho em mente ao definir Teologia Liberal como defini.” (Ênfases acrescentadas).

Na sequência, Congdon esclarece que a Teologia Liberal representa, hoje, uma “acomodação” do Cristianismo à Modernidade, acomodação essa que torna imperativa uma “reconstrução das doutrinas tradicionais“. Ao dizer isso, ele acrescenta uma nova Nota de Rodapé, a de número 4, em que afirma — invocando o apoio de um outro conhecido teólogo da atualidade. Diz ele na Nota de Rodapé 4:

“Esta posição é defendida, recentemente, por Roger E. Olson, The Journey of Modern Theology: From Reconstruction to Deconstruction (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2013). Segundo a narrativa de Olson, a teologia moderna é uma luta entre aqueles que aceitaram uma acomodação entre o Cristianismo e a Modernidade (os liberais) e aqueles que rejeitaram essa acomodação (os conservadores e fundamentalistas)”.

No entender de Olson (ainda segundo Congdon — embora eu tenha o livro de Olson, como se verá adiante) a teologia de Barth seria uma tentativa de encontrar uma terceira via, isto é, uma via representada por “aqueles que aderem firmemente ao evangelho de Jesus”, mas, ao mesmo tempo, “comunicam esse evangelho de forma tão relevante quanto possível para a cultura contemporânea” (ênfases acrescentadas por mim). Note-se a sutileza da distinção: Barth, de um lado, “adere firmemente ao evangelho de Jesus”, e, de outro, “comunica esse evangelho de forma tão relevante quanto possível para a cultura contemporânea”. A interação com a cultura contemporânea se dá apenas no plano da comunicação, não no plano da exegese e da hermenêutica. Para Congdon, não há nenhuma real acomodação entre o Cristianismo e a Modernidade em Barth — e eu concordo com ele. Acho Barth um teólogo ortodoxo conservador, mesmo não aceitando ele algumas doutrinas do Cristianismo tradicional, como, por exemplo, a do nascimento virginal de Jesus Cristo.

[Congdon se refere à p. 712 do livro de Olson para fundamentar suas afirmações. Essa página é a penúltima do livro de Olson. No Prefácio do seu livro livro (p. 11) Olson esclarece que o livro é uma versão totalmente reescrita, por ele apenas, de um livro anteriormente escrito por ele e Stanley J. Grenz, publicado em 1992 pela mesma editora, com o título 20th-Century Theology: God and the World in a Transitional Age. A nova edição deveria sair para celebrar os vinte anos do primeiro livro, em 2012 – mas Grenz faleceu em 2005 e nem chegou a participar da nova edição, na verdade, do novo livro. Há tradução para o Português do primeiro livro, sob o título A Teologia do Século 20 e os Anos Críticos do Século 21: Deus e o Mundo numa Era Líquida (Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2ª edição revisada, 2003, 2013. Não consigo deixar de comentar as liberdades que tradutores e/ou editoras tomam no Brasil com o título de livros traduzidos. Primeiro, o livro original foi publicado em 1992. Não havia como ele pudesse se aventurar em anos do Século 21, fossem eles críticos ou não. Segundo, o título original se refere ao Século 20 como “A Transitional Age”. O que há de errado em traduzir essa expressão como “Uma Era de Transição”, para optar pela horrorosa expressão “Numa Era Líquida”? O restante da tradução contém erros e inadequações, algo comum nos livros da editora brasileira. Quando, um dia, levei uma longa lista de erros na tradução de outro livro (este de Alister McGrath) ao Editor-Chefe da Editora Cultura Cristã, propus a ele traduzir The Journey. Ele recusou de pronto. Disse que havia sido um erro traduzir o primeiro livro, posto que o autor era Arminiano. . . Voltando a Olson, em outro livro, The Mosaic of Christian Belief: Twenty Centuries of Unity and Diversity (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2002), ele faz uma apresentação mais sucinta e menos laudatória de Schleiermacher às pp. 95-96.]

Acrescento que a noção de “acomodação” foi introduzida na discussão da Teologia Liberal por Ernst Troeltsch, que, no entanto, defendeu a tese de que o Cristianismo é uma religião histórica que, como tal, desde o início buscou e alcançou acomodação com a cultura dos diversos ambientes em que se implantou. Segundo esse ponto de vista, a Teologia Liberal, enquanto um empreendimento moderno, nada teria de original em seu projeto. Vide, neste contexto, o artigo sobre Troeltsch indicado na Bibliografia.

Acrescento ainda que o historiador americano Arthur Cushman McGiffert, considerado um teólogo liberal (e processado como tal dentro da Igreja Presbiteriana Americana, então predominantemente, conservadora e fundamentalista — a moda de processar supostos hereges, ainda que em tribunais eclesiásticos, vem de longe!), defendeu a Teologia Liberal contra a acusação de que ela era herética, afirmando, numa linha diretamente dependente de Troeltsch, que a referida acomodação do Cristianismo, nos Séculos 18 e principalmente 19, à cultura moderna de seu ambiente (razão pela qual a Teologia Liberal é frequentemente rotulada de Teologia Modernista), não era inédita, enquanto método teológico. Pelo contrário: era algo que sempre havia sido praticado pelos melhores teólogos cristãos – a começar com Paulo (que acomodou o Cristianismo judaico de Jesus ao Helenismo Greco Romano), passando por Agostinho de Hipona (que acomodou o Cristianismo paulino ao Neo-Platonismo de Plotino, vigente e vicejante no Século 4 no Império Romano) e chegando a Tomás de Aquino (que acomodou o Cristianismo agostiniano ao Aristotelianismo redescoberto na Europa das Cruzadas nos Séculos 12 e 13). Os Reformadores, no Século 16, sob a influência do grito renascentista que conclamava os intelectuais a retornar às fontes (ad fontes), foram beber em fontes mais antigas do que o Aristotelianismo Tomista (chamado de Escolasticismo) – mas retornaram apenas até Agostinho, no máximo até Paulo, contentando-se em fazer ali a sua acomodação – não chegando até o Cristianismo Ético, não metafísico, embora escatológico, de Jesus. Voltar a Jesus tornou-se missão do Liberalismo Teológico do Século 19, que fez sua acomodação com a Modernidade retornando ao Cristianismo Ético de Jesus, acabando por criar (com von Harnack, na Europa) o chamado Evangelho Social tornado famoso pelo pastor e teólogo americano Walter Rauschenbusch. É por isso que os teólogos liberais (ou modernistas) são frequentemente acusados, pelos conservadores e fundamentalistas, de serem proponentes e defensores do Evangelho Social.

Entre os Protestantes, o Cristianismo de hoje, em geral identificado mais com o chamado Evangelicismo ou Evangelicalismo do que com o Conservadorismo, o Fundamentalismo e o Liberalismo, se vale de inúmeras acomodações realizadas por Paulo, Agostinho, Tomás, Lutero, Calvino, etc. – para não falar nas acomodações realizadas pelos Pietistas, Metodistas, Reavivamentalistas (sem esquecer as contribuições feitas pela reação a essas acomodações propostas pelos Irmãos, em geral identificados como Quakers, Menonistas, Amish, etc., que, como os Liberais, tentaram voltar à religião original de Jesus de Nazaré — um Judaísmo eminentemente ético, não ritualista nem conservador (muito menos fundamentalista).

Sem essas acomodações todas, e as reações (algumas ferozes) a elas, o Cristianismo difícil teria prevalecido no Império Romano e chegado até nós.

Basta esse reconhecimento para considerar Paulo, Agostinho, Tomás, Lutero e Calvino, etc., todos eles teólogos liberais – ou teólogos que foram precursores do Liberalismo? E Bultmann? Isto veremos na subseção seguinte.

McGiffert faz essas afirmações em seu livro A History of the Christian Thought (2 vols. Scribner’s, New York, 1932, 1960).

B. Bultmann, a Principal Estrela do Liberalismo no Século 20?

Voltemos a Rudolf Bultmann – e a Congdon.

Eis o que Congdon afirma em uma nota de rodapé na segunda página de sua Introdução, depois de definir “Teologia Liberal” como “uma reinterpretação moderna do Cristianismo” (p. xviii). Na Nota de Rodapé 3 ele afirma (a passagem já foi citada atrás, mas a cito novamente para ficar presente neste contexto):

“Esta é uma definição intencionalmente ampla da ‘Teologia Liberal’ [a definição é: a teologia liberal é “uma reinterpretação moderna do Cristianismo”]. Bultmann se refere ao Liberalismo [Teológico] geralmente em termos pejorativos, para indicar uma forma bastante específica de teologia contra a qual ele e Barth reagiram, teologia essa influenciada pelo Idealismo e pelo Historicismo, em particular. Mas Bultmann também reconhece que sua própria teologia contribui para um entendimento mais amplo e menos problemático do que seja a Teologia Liberal. É neste sentido positivo da expressão Teologia Liberal que eu tenho em mente ao definir Teologia Liberal como defini [como uma “reinterpretação moderna do Cristianismo].” (Ênfases acrescentadas).

Ou seja: Congdon fica firme na defesa de sua definição ampla de Teologia Liberal como sendo uma reinterpretação moderna do Cristianismo – isto é, a acomodação do Cristianismo Histórico que chegou até ao Século 19 com os ditames da Modernidade.

Moral da História: Paulo, Agostinho, Tomás, Lutero, Calvino, e os Teólogos do Liberalismo Teológico foram todos acomodadores – mas, desses, apenas os liberais fizeram acomodação com a Modernidade. Repetindo o que já foi dito (para quem está lendo apenas esta seção) Paulo acomodou o Cristianismo de Jesus ao Helenismo Greco-Romano; Agostinho acomodou a Teologia Paulina ao Neo-Platonismo Latino; Tomás acomodou a Teologia Agostiniana ao Aristotelianismo da Alta Idade Média; Lutero e Calvino acomodaram o Cristianismo no qual cresceram à Teologia Paulina e Agostiniana. E assim vai.

O primeiro grande mérito do argumento de Congdon é remover do Liberalismo Teológico a pecha de heresia. Se o Liberalismo Teológico é herético por ter acomodado o Cristianismo (à Modernidade), também são hereges Calvino, Lutero, Tomás, Agostinho e Paulo, por terem acomodado o Cristianismo às ideias inovadoras que prevalesceram no seu tempo.

[Para ver detalhes que comprovam a afirmação feita no parágrafo anterior, o leitor pode conferir um livro antigo mas atual. Seu autor é o historiador americano Arthur Cushman McGiffert, que viveu em parte no Século 19 e em parte no Século 20. Considerado um teólogo liberal (e processado como tal dentro da Igreja Presbiteriana Americana, então predominantemente, conservadora e fundamentalista), McGiffert defendeu a Teologia Liberal afirmando que a referida acomodação do Cristianismo à cultura prevalescente no seu ambiente havia sempre sido praticada pelos teólogos cristãos e, portanto, não poderia ser considerada herética. Seu livro demonstra isso. Vide A History of the Christian Thought (2 vols. Scribner’s, New York, 1932, 1960).

O segundo grande mérito do argumento de Congdon é explicar como é possível que Bultmann seja visto como antiliberal (até por ele mesmo) e como liberal (novamente, até por ele mesmo). Bultmann é crítico do Liberalismo Teológico como Movimento Histórico, mas é liberal, na verdade, sua maior estrela, do Liberalismo como Posição Filosófico-Teológica nos primeiros três quartos do Século 20.

O terceiro grande mérito do argumento de Congdon é remover de sobre Bultmann a pecha de que ele, com seu programa de Demitologização, tornou-se herege. Não se tornou herege, diz Congdon: longe de ter-se tornado herege, Bultmann, mais do que Barth, alinha-se com a tradição de todos os maiores teólogos da História do Pensamento Cristão: Paulo, Agostinho, Tomás, Lutero, Calvino, e Schleiermacher (que eu acrescento à lista).

O quarto grande mérito do argumento de Congdon é mostrar que, dentro os que foram rotulados de Neo-Ortodoxos, Teólogos Dialéticos, ou Teólogos da Crise, Barth é o mais incongruente – e o mais intransigente e beligerante. Brigou com quase todos os seus colegas: Bultmann, Althaus, Brunner e Tillich – chegando a “pisar na bola” até mesmo em relação ao “mártir moderno” Dietrich Bonhoeffer.

De todos os teólogos chamados de neo-ortodoxos Barth é “o que mais mal fica na foto”. Isso fica evidente no livro de Congdon. E Bultmann desponta como “o que mais bem fica na foto”. Mas Olson também pega um pouco da crítica de Congdon, como pretendo mostrar.

Barth, naquele que é (na minha modesta opinião) o seu melhor livro, e que, se levado a sério por ele próprio, o teria impedido de cair nas suas contradições, afirma o seguinte acerca de Schleiermacher (dependo aqui do meu artigo sobre Schleiermacher na Bibliografia):

“Sobre ele também vale o que ele próprio disse acerca de Frederico o Grande, em sua Conferência na Academia, intitulada Sobre o Conceito de um Grande Homem: ‘Ele criou, não uma escola, mas toda uma era’. . . .  Também disse a lídima verdade histórica o homem que publicou, em 1907, um livro intitulado Schleiermacher, o Pai da Igreja do Século 19. . . . O Século 19 foi o seu século. . . .  Ao longo do século, sua influencia não diminuiu: pelo contrário, aumentou consideravelmente, à medida que suas ideias se estabeleciam cada vez mais firmemente. Em 1910 ele foi mais estudado e honrado, e ali deu melhores frutos, do que aconteceu em 1830. . . . . [Embora tenha, enquanto Hegel estava vivo, sofrido com a sombra que este lhe fazia,] depois de morto Hegel, quando sua herança se apagava com incrível rapidez, a estrela de Schleiermacher brilhou com luz incomparável. Morto Hegel, somente Schleiermacher poderia ser o salvador”. [Karl Barth, Die Protestantische Theologie im 19. Jahrhundert (EVZ – Evangelischer Verlag AZ, Zürich), Dritte Auflage, 1946, 1960, pp. 379-380. Na tradução reduzida para o Inglês, em que apenas 11 dos 28 capítulos originais foram traduzidos, sob o título de From Rousseau to Ritschl (SCM Press, London, 1959), as passagens citadas podem ser localizadas nas pp. 306-307].

3. O Dilema que o Liberalismo Teológico Nos Coloca Hoje

Este capítulo será em grande parte autobiográfico e dependerá de material já publicado no blog Transforma Brasil, e mencionado na Bibliografia.

Entre 1965 e 1970 eu, que em 1970 terminei meu Mestrado em Teologia, e que já tinha uma Graduação na mesma área, cheguei à conclusão de que o Cristianismo Tradicional, em seus aspectos doutrinários, como representado pelos Cristãos Fundamentalistas e mesmo pelos Cristãos Conservadores, simplesmente não dava para aceitar. Esta foi a que chamei de minha “Primeira Crise Hermenêutica”: interpretado literalmente, como o fazem os fundamentalistas e a maior parte dos conservadores, o Cristianismo herdado do meu pai, pastor conservador, beirando o fundamentalismo, não dava para engolir. Resolvi, então, me tornar um Liberal Bultmanniano. Para alguns presbiterianos daquela época tornar-se bultmanniano era pior do que virar ateu. Fiquei aliviado quando fui continuar meus estudos na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, em São Leopoldo, RS. Lá Bultmann não era considerado herege. Muito pelo contrário: era o teólogo do momento — alguns dos professores achando até que ele estava ultrapassado (mas não renegado) pelos seus discípulos.

Vinte anos depois de eu terminar meu Mestrado em Teologia, em 1990, eu fui convidado a escrever um trabalho sobre até que ponto eu ainda era um protestante ou mesmo um cristão… Eu poderia ter respondido como uma vez o fez o Rubem Alves, que, diante da mesma pergunta (em relação ao Protestantismo, não ao Cristianismo), respondeu: “Claro que sou. Sou, porque fui” – uai! (A magnífica elaboração dessa resposta alvesiana está em um artigo de 1981 que eu republiquei em meu blog. Confiram: “‘Confissões de um Protestante Obstinado’: Depoimento de Rubem Alves”, em Liberal Space, URL https://liberal.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves/. É uma obra de arte o artigo dele.)

Mas a minha resposta foi diferente da do Rubem. Tentei lidar de frente com o problema no artigo de 1990, sem oferecer, como ele, uma boutade. Mas sempre discutimos o assunto entre nós.

[Faço aqui um parêntese. Não se esqueçam os leitores de que o Rubem Alves e eu fomos amigos durante exatamente 50 anos, de 1964, ano do Golpe Militar, quando entrei no Seminário Presbiteriano de Campinas, onde ele também, alguns anos antes, havia estudado, até a morte dele, em 2014. Estudamos no mesmo seminário, o Presbiteriano de Campinas, embora em épocas diferentes; estudamos nos Estados Unidos, fazendo Pós-Graduação, mais ou menos na mesma época, ele em Princeton e eu em Pittsburgh; e de 1974 em diante fomos colegas na UNICAMP, tendo ele se transferido do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas para a Faculdade de Educação da Universidade quando eu assumi a direção desta, em 1980; e ainda fomos, ao mesmo tempo, membros de dois colegiados da Universidade: primeiro, a Câmara Curricular do Conselho Diretor, depois o Conselho Universitário, no qual, ao mesmo tempo, ele foi presidente da Comissão de Legislação e Normas e eu presidente da Comissão de Orçamento e Patrimônio, as duas sendo as principais comissões do Conselho Universitário, tendo nós dois contribuído decididamente para a eclosão da chamada Crise (e consequente Intervenção) de 1981 na Universidade. Isso está relatado em vários lugares, o mais importante sendo o livro O Mandarim: História da Infância da UNICAMP, do insuspeito jornalista Eustáquio Gomes. O livro foi publicado pela Editora da UNICAMP, em 2006, em Comemoração ao 40º Aniversário da UNICAMP. Ele está esgotado também em sua segunda edição. Fim do parêntese.]

Confrontado assim diretamente com a questão até que ponto eu ainda me considerava um Cristão e um Protestante, eu resolvi historiar as minhas crises intelectuais – agora descrevendo principalmente uma “Segunda Crise Hermenêutica”. Na primeira crise, recapitulando, eu reconheci que ser cristão tradicional, fundamentalista, ou mesmo conservador, não dava. Era preciso reformar o Cristianismo, promover a sua modernização, realizar nele um profundo “aggiornamento” – que é o que o Liberalismo de Bultmann fez (e chamou de Demitologização) — antes de poder aceitá-lo. Foi isso que fiz. Na segunda crise, eu comecei a fazer um papel diferente (que, por um tempo, me distanciou de Bultmann): ser builtmanniano, tout court, também não dava, porque, no processo de demitologização do Cristianismo, Bultmann o descaracterizou, tornando-o algo diferente do que sempre havia sido, em suas modernizações anteriores

[Ainda outro parêntese. Note-se que em ambas as crises eu estava sendo “cativo de minha consciência” – algo muito parecido com o que disse Lutero, diante do Imperador Carlos V e do representante do Papa Leão X, na Dieta de Worms, em Abril de 1521, quando ele disse algo assim: “Não é seguro nem defensável para o cristão agir contra a sua consciência.” Fim do parêntese.]

Entre 1970 e 1990 eu evoluí e cheguei à conclusão de que Bultmann havia ido longe demais, e que ele traíra a identidade do Cristianismo, transformando-o em Existencialismo Heideggeriano… Eis o que eu disse no artigo de 1990, em minha própria tradução:

“Por que eu agora não consigo aceitar as reinterpretações do Cristianismo oferecidas:

* pelos ‘Demitologizadores’ da Escola Bultmanniana;

* pelos proponentes da Tese Tillichiana de que Deus é simplesmente ‘A Base do Ser’,

* pelos defensores de um ‘Cristianismo Secular’ ou mesmo de um ‘Cristianismo Ateu’, que reconhecem a ‘Morte de Deus’ anunciada por Nietzsche;

* ou mesmo pelos inventores da ‘Teologia da Libertação’, em sua maioria meus compatriotas latino-americanos?

A resposta é relativamente simples: porque aquilo que eles propõem como reinterpretação do Cristianismo parece-me, agora, abrir mão de tudo com o que o Cristianismo esteve associado no passado.

* A gente não precisa de Jesus, nem mesmo de Paulo, para ser o existencialista cristão que Bultmann propõe: basta aceitar algumas poucas ideias de Heidegger…

* A gente não precisa da maior parte do Cristianismo Tradicional para aceitar a ideia de que Deus não passa da Base do Ser: basta aceitar um pouco do Idealismo Moderno (ou mesmo Antigo)…

* E certamente a gente não precisa de nenhuma parte do Cristianismo Tradicional para ser um secularista, ou um ateu, ou um marxista.

As doutrinas religiosas ou teológicas do Cristianismo Tradicional foram tão drasticamente reinterpretadas nessas propostas modernas que, em minha nova maneira de ver as coisas, elas deixaram de ser as mesmas doutrinas: tornaram-se algo diferente, totalmente distinto do Cristianismo Tradicional. E para esse ‘algo diferente’, as doutrinas tradicionais do Cristianismo pareciam ser totalmente dispensáveis.

Minha questão, então se tornou: por que colocar vinho novo em recipientes velhos? Por que não simplesmente beber o vinho novo em seus novos e atraentes recipientes? (Vide Mateus 9:16-17; cp. Marcos 2:21-22 e Lucas 5:36-38.) Por que pretender acreditar as mesmas coisas que os fieis que se sentam nos bancos da igreja creem, mesmo que, no íntimo, você não acredite mais em nada? Por que recorrer a todo tipo de ginástica intelectual para fazer crer que isto ou aquilo é o que Bíblia quis dizer o tempo todo, embora uma leitura simples e literal da Bíblia pareça indicar exatamente o contrário?”

Caminhando para a conclusão, hoje, quase vinte anos depois de ter escrito isso, eu reconheço que em 1992 coloquei os cristãos de hoje diante de um dilema impossível: ou eles são cristãos tradicionais, conservadores, fundamentalistas mesmo – ou então reconhecem que não são mais cristãos, pegam seus chapéus e “tchau e bênção”: saem da Igreja.

Achava eu em 1992 que o mais intelectualizado dos Fundamentalistas do fim do Século 19 e começo do Século 20, John Gresham Machen, estava certo, quando afirmou, em seu livro Christianity and Liberalism, de 1923, que o Liberalismo Teológico daquela época não era mais cristão: era uma outra religião — embora com alguns pontos de contato e alguns elementos até bastante atraentes.

Hoje, 2018(/2023), reconheço que uma boa parte dos cristãos modernos não aceitam nem um nem outro “chifre” desse dilema: querem continuar na Igreja e se considerar cristãos legítimos, mas desejam, ao mesmo tempo, que o Cristianismo mude – o suficiente, para tirar o peso de nossa consciência, mas não demais, de modo a nos obrigar a ir embora, como eu já fui uma vez – e, como o boêmio da música, voltei… Mas voltei como cristão (protestante, presbiteriano, liberal). E considero minha tarefa, nestes meus anos finais, resgatar o Liberalismo Teológico da pecha de heresia dentro da Igreja. Na verdade, meu desejo maior é fazer com que os conceitos de ortodoxia e heresia percam a importância que têm dentro do Protestantismo, em especial dentro do Presbiterianismo, o mais confessional dos grupos protestantes.

ET: Peço desculpas pelo tamanho do texto, decorrente, em parte, de minha prolixidade, de minha obsessão por detalhes, pelo meu desejo de deixar escrito o meu depoimento (seria testemunho?).

Em Salto, 28 de Fevereiro de 2018. Revisto em 26 de Abril de 2023.

Hume: O Crítico da Religião

[ O artigo “Hume: O Crítico da Religião” foi publicado no Suplemento Cultural de O Estado de São Paulo, Vol II, em 17 de Outubro de 1976, São Paulo, SP ]

o O o

A religião (assim como, mutatis mutandis, também a ciência, por exemplo) por ser estudada e analisada a partir de várias perspectivas. Como fenômeno social que é, pode ser objeto de estudo por parte da sociologia. Como algo que, positiva ou negativamente, afeta um grande número de pessoas em suas estruturas psíquicas básicas, cai também dentro do domínio da Psicologia (Individual e Social). E assim por diante. Com tudo, guase todas as religiões, já extintas ou ainda existente, possuem um “corpo doutrinário”, isto é, um conjunto de proposições e enunciados (“doutrinas”) que deve, totalmente ou pelo menos em sua maior parte, ser objeto de crença por partes dos adeptos e seguidores. A análise crítica deste elemento proposicional encontrado em quase todas a religiões é de natureza predominantemente filosófica, caindo dentro do âmbito da chamada filosofia da religião.

Embora David Hume (1711-1776) tem escrito um livro intitulado A Historia Natural da Religião (1757), no qual propõe sua teoria a respeito das origens das religiões e discute vários fatores (sociais, psicológico etc.) que levam a maioria das pessoas a assumir uma postura religiosa, sua maior preocupação com a religião se definiu em termos de uma crítica filosófica às principais tentativas feitas nos séculos XVII e XVIII de se justificar racionalmente as doutrinas centrais do cristianismo. Esta crítica se encontra em sua maior parte, nos capítulos X e XI do seu livro Uma Investigação acerca do Entendimento Humana (1748) e em um de seus livros mais famosos, Diálogos acerca da Religião Natural (publicado somente em 1779, após sua morte), embora em seu primeiro o mais importante livro, Um tratado da Natureza Humana (1739-1740), já houvesse vários índices do que estava por vir.

Grande parte dos teólogos e filósofos dos séculos XVII e XIII afirmavam – ecoando São Tomás de Aquino – que há somente duas maneiras de se justificar doutrinas religiosas ou posições teológicas: através de um apelo à razão humana ou através de um apelo à revelação (isto é, basicamente, um apelo à Bíblia). John Locke, por exemplo afirmou isto, defendendo sua posição no livro IV de Um Ensaio acerca do Entendimento Humano. Estas duas maneiras, porém, se reduziam, basicamente, a uma só, a primeira, para grande parte dos filósofos e teólogos deste período pela seguinte razão: se alguém procura justificar uma doutrina religiosa ou uma posição teológica através de um apelo o fato de ela ver sido revelada por Deus na Bíblia, pode se muito bem redargüir afirmando não haver razões para aceitar a Bíblia como revelação divina. Para que o apelo à Bíblia possa ser persuasivo, é necessário que seja acompanhado de argumentação que mostre ser a Bíblia realmente revelação divina (“a palavra de Deus”, como se costuma dizer).

A resposta geralmente dada no período em questão, a este tipo de problema, afirmava que o caráter revelacional da Bíblia, sua origem divina, era comprovada (“garantindo”, dizia-se) pelos inúmeros que supostamente acompanharam estas revelações. Já São Tomás quatro séculos antes afirmava que “a autoridade da escritura é divinamente confirmada por milagres” (Summa Contra Gentiles, I: 9: 2), e John Locke reitera: “Os santos de antigamente ao receberem revelações divinas, … receberam também sinais externos que tinham o propósito de convencê-los de que Deus era o autor destas revelações” (Ensaio, IV; 19: 15). Na ausência destes, sinais nada poderia servir para distinguir revelações divinas de fantasias alucinatórias. Obviamente, Locke está pressupondo que a crença na ocorrência desses milagres seja racionalmente justificável.

– “A razão”, afirma ele “deve ser nosso juiz supremo e nosso guia em tudo” (Ensaio, IV: 19: 14) – , pois de outra forma o argumento não seria muito convincente.

Foi com este cenário em vista que Hume escreveu sua obra de crítica à religião. Sistematizando os resultados desta crítica teremos:

a) em primeiro lugar Hume apresentou um argumento objetivamente mostrar a irracionalidade de crença na ocorrência de milagres, eliminando assim a suposta justificação racional para aceitação da Bíblia como revelação divina;

b) em segundo lugar Hume procurou mostrar que os tradicionais argumentos para existência de Deus (o argumento ontológico, o cosmológico, e o teológico, ou do desígno) eram inconvincentes e que, portanto, não existia justificação lógica e racional para se acreditar que Deus – O Deus do cristianismo tradicional – existisse: a crença em sua existência seria, portanto, gratuita. É interessante notar que nem Locke nem outros defensores do cristianismo deste período, atentaram à natureza circular desta argumentação: a ocorrência de milagres atesta, segundo eles, a genuinidade da Bíblia como revelação divina; com tudo só sabemos da ocorrência desses milagres através de relatos encontrados na própria Bíblia!

c) em terceiro lugar ao discutir o problema do mal Hume sugeriu que a existência do sofrimento no mundo é incompatível com a existência do Deus do cristianismo tradicional, isto é, com a existência de um ser que tudo sabe e pode e que também é infinitamente bom. Se este argumento for aceito a crença em Deus deixa de ser simplesmente gratuita e torna-se irracional a menos que se negue a existência do mal e do sofrimento do mundo. Assim sendo, após tentar destruir os argumentos para existência de Deus Hume apresenta um argumento para não existência desse mesmo Deus.

d) Em quarto lugar Hume deu, em A História Natural da Religião, sua resposta à pergunta que naturalmente vem à mente do leitor: se a crença em Deus é na melhor das hipótese, gratuitamente, e, a hipótese pior, irracional, porque é que tanta gente tem acreditado e ainda acredita em Deus?

Por razão de espaço, e também de relevância, omitiremos nesta apresentação a discussão que um faz dos argumentos tradicionais para existência de Deus, embora a maior parte dos Diálogos seja dedicada a este problema. Omitiremos, também, sua análise das origens e das causas da crença em Deus. Falaremos brevemente sua discussão de milagres e do problema do mal, concluindo com algumas observações a respeito do significado histórico de sua crítica à religião.

Ao discutir milagres Hume não procura mostrar como muitos outros críticos do cristianismo tentaram fazê-lo, que os milagres de que a Bíblia não podem ter ocorrido, por serem impossíveis. Seu principal argumento procura mostrar que, mesmo que milagres sejam possíveis, e ainda que tenham realmente ocorridos, uma pessoa racional, que proporciona suas crenças à evidências existentes para elas nunca terá razões suficientemente fortes para acreditar que realmente ocorrido. Em outras palavras: milagres não são impossíveis são meramente incríveis.

O argumento de Hume é baseado no fato de que um evento, para qualificar como milagre, precisa ser o que ele chama de uma “violação das leis da natureza”. Leis da natureza são, para Hume, generalizações baseadas em instâncias uniformes (isto é, sem exceção) de conexões causais observadas. Se vemos um evento de um tipo “A” constantemente acompanhado por um evento de um outro tipo “B” e se nossa experiência desta conjunção é uniforme, i. e., não admite exceção então teremos uma “lei universal”: cremos que sempre que tivermos um evento tipo “A” um evento do tipo “B” acontecerá. Ou, para usar as palavras do próprio Hume. “Há algumas causa que são inteiramente uniformes e constante na produção de seus efeitos, e nenhuma instância foi até agora encontrada quem indicasse qualquer irregularidade em sua operação. O fogo sempre queimou, e a água sempre sufocou, a toda criatura humana. A produção de movimento através de impulsos e gravidade é uma lei universal que até agora não admitiu nenhuma exceção” (Investigação, cap. VI).

Se somos, pois, informados do acontecimento de um milagre, i.e., da ocorrência de um evento que contraria toda a nossa experiência até o presente – digamos que sejamos informados de que uma pessoa, já morta e enterrada há alguns dias, esteja novamente viva -, devemos proporcionar nossa crença à evidência. De um lado temos evidência uniforme de que pessoas, uma vez morta e enterrada permanecem mortas. De outro lado, temos experiências de que relatos e testemunhos que nos são comunicados freqüentemente são inexatos ou mesmo falsos. Pessoas às vezes deliberadamente, nos tentam enganar, dizendo-nos mentira. Outras vezes estas pessoas estão, elas próprias, enganadas a respeito do que relatam, e, conseqüentemente, nos dizem mentiras, embora não intencionalmente. Visto, pois, que nossa experiência tem mostrado, até aqui, que mortos não ressuscitam, e também nos tem mostrado que pessoas muitas vezes são enganadas ou tentam nos enganar a respeito do que relatam, é muito mais provável ser por algum motivo falso o que nos esteja sendo relatado do que haver acontecido algo sem nenhum precedente em nossa experiência. Conseqüentemente Hume concluiu: “Nenhum testemunho é suficientemente forte para estabelecer a ocorrência de um milagre, a menos que o testemunho seja de tal natureza que sua falsidade seja ainda mais miraculosa do que o fato que ele procura estabelecer” (Investigação, cap. X).

O problema do mal, como ele é colocado no capítulo X dos Diálogos, se apresenta, de forma sistematizada, da seguinte maneira:

(1) Deus é um ser onipotente, onisciente infinitamente bom;

(2) Um ser onipotente e onisciente pode eliminar todo mal e sofrimento do mundo, e sabe como fazê-lo;

(3) Um ser infinitamente bom deseja eliminar todo o mal e sofrimento do mundo;

(4) Se Deus existe, não há mal e sofrimento no mundo;

(5) No mundo há mal e sofrimento;

(6) Conseqüentemente Deus não existe.

Do ponto de vista forma, não resta a menor dúvida de que este argumento é impecável. Resta saber se suas premissas são verdadeiras. A primeira nada mais é do que parte da definição tradicional do Deus do cristianismo. A segunda premissa é aceita pela maioria dos teólogos. A quinta é indiscutível. A quarta segue das três primeiras. A mais vulnerável das premissas é, portanto, a terceira. Se esta for rejeitada, a quarta premissa também terá que sê-lo, e o argumento inteiro cai por terra.

Em suas tentativas de refutar esse argumento a grande maioria dos teólogos tem se baseado em consideração da seguinte natureza. Não é verdade, dizem eles, que um ser infinitamente bem queira, necessariamente, eliminar todo o mal e sofrimento da face da terra. Isto porque freqüentemente os males e sofrimentos que ocorrem são resultantes de bens de valor tão grandes que, na contagem final, ver-se-á que é preferível que estes bens existentes mesmo com os males e sofrimentos que podem decorrer deles conseqüentemente, um ser infinitamente bom não desejará eliminá-lo a existência do livre arbítrio humano é geralmente considerado um desses bens. Por outro lado argumenta-se também, males e sofrimentos freqüentemente resultam em bens de alto valor, que deixariam de existir se não houvessem estes males e sofrimentos. Em um mundo sem dor não haveria compaixão, caridade, solidariedade. Em um mundo em que ninguém jamais encontrasse dificuldades não haveria coragem, heroísmo, etc. Um ser infinitamente bom pode muito bem pesar estas virtudes acima de todas as outras, e não deixar, portanto, eliminar os males e sofrimentos que as trazem à tona. Assim por diante teólogos tem oferecido teodicéas (“justificações de Deus”) que procura explicar porque Deus teria permitido a existência de males e sofrimentos no mundo. Contra estas teodicéas vários argumentos humanos poderiam ser apresentados, todos eles mostrando que a terceira premissa deve ser aceita, mas isso vai além deste artigo.

Qual o significado desta crítica à religião para a história do pensamento cristão? Hume é a primeira figura de destaque na história intelectual moderna a fazer um ataque devastador sobre a religião e a teologia. Embora mesmo alguns teólogos (como, por exemplo, William de Ockham e Martinho Lutero) houvessem, antes de Hume, afirmado que doutrinas religiosas e posições teológicas não podem ser justificadas racionalmente, e embora os Deistas do século XVIII houvessem rejeitado a racionalidade da crença na revelação, nunca uma figura de destaque na história intelectual moderna avia, sistematicamente rejeitado ambas as maneiras tradicionais de se justificar doutrinas e posições religiosas, razão e revelação concluindo não só que inexistem boas razões para se crer nas principais doutrinas do cristianismo mas afirmando também existir razões para não se crer nelas. Se alguém concorda que não haja justificação racional para crença religiosa, esta pessoa deve ou rejeitá-las, como Hume o fez, ou, segundo Kierkegaard, regozijar-se em sua irracionalidade. Se alguém discorda da posição de Hume, esta pessoa precisa refutar suas críticas, como teólogos católicos romanos têm tentado fazer, ou então, como teólogos protestantes liberais têm feito, procurar uma nova maneira de se encarar a religião tirando a ênfase de seu aspecto cognitivo e a colocando em seu aspecto moral ou experiencial. Por causa disto, a crítica Humeana à religião se coloca em uma das mais importantes junções na historia do pensamento cristão.

Campinas, Outubro de 1976
© Copyright by Eduardo Chaves
Last revised: May 02, 2004

Transcrito aqui em Salto, 15 de Junho de 2016

David Hume and the Great Divide between Traditional and Modern Thought about God

[ Este artigo, “David Hume and the Great Divide Between Traditional and Modern Thought about God” (David Hume e a Grande (ivisão de Águas entre o Pensamento Tradicional e o Moderno sobre Deus), foi apresentado na Third Annual Conference on “God: The Contemporary Discussion” (Terceira Conferência Anual sobre “Deus: A Discussão Contemporânea”), patrocinada pela New Ecumenical Research Association (New ERA), San Juan, Porto Rico, 30 de Dezembro de 1983 a 4 de Janeiro de 1984. ]

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Peter Gay once mentioned that “there are moments in intellectual history when a small change in quantity induces a change in quality, when the addition of a new shade to a seemingly continuous spectrum produces a new color”. (1) In the history of Christian thought one such moment happened in the eighteenth century, and what took place was enough to make the century of the Enlightenment the great divide between traditional and modern thought about God and theology.

In the eighteenth century decisive changes took place in the course of the development of Christian thought, the results of which are still being felt in the present. These changes were not abrupt; they ere more like end results of long processes of development, and could not have taken place apart from the long developments which preceded them. Yet, that does not take anything away from their great significance. During the eighteenth century these processes were brought to completion, becoming consolidated in views which could only appear in the way they did when the processes were ripe and mature.

The main figure to provide the divide between traditional and modernity in the thought about God and theology was, in my view, David Hume. And the main issue, the great divider, was an epistemological one. The most fundamental question discussed was the problem which was then viewed as the problem of the sources of theology, but which today should be described as the problem of the validation of theological claims. How are theological claims validated, or legitimized? This was the main issue in the eighteenth century – and, in my opinion, is still the main issue – separating believers and skeptics, and, within the class of believers, separating those who did – and do – theology in a traditional form and those who tried – and try – to answer the challenges of modernity.

There may be those who will disagree with my contention that the crisis of modernity was basically epistemological, and hence fundamentally intellectual. Given the limited scope of this paper, it will that one fundamental ingredient in the conflict between tradition and modernity in theology was intellectual – epistemological, to be more precise and specific.

It is unnecessary to document the claim that most theologians, in the history of Christian thought, did feel the necessity of dealing, in one way or the other, with the issue of the sources of legitimization of their theological claims. The problem is fundamental to any theology, since until it is dealt with a theological system, no matter how coherently built, will, so to speak, be floating in the air, without anchorage. It is the responsibility of the theologian to elucidate how his theological claims are to be validated.

Prior to the eighteenth century, theological claims were thought to be validated either by an appeal to reason or by an appeal to some form of revelation. There were theologians who privileged one, or the But most theologians did try to establish the legitimacy of their theological claims through an appeal to either their rationality (or reasonableness) or revealedness, or by trying to show that these claims could de deduced or derived from truths which were either rational or revealed. Some went even further and tried to establish the claim that acceptance of revelations was itself rational or reasonable, and that, therefore, even those assertions derived from revelation were, in the last resort also rational or reasonable.

Although the relation between reason and revelation can be expressed in a variety of ways, two such ways have predominated within the history of Christian thought. As Etienne Gilson has pointer out, the various Christian thinkers can be divided into two “spiritual families”:

“The first of those spiritual families … was made up of those theologians according to whom Revelation had been given to men as a substitute for all other knowledge, including science, ethics and metaphysics. Ever since the very origin of Christianity up to our own days, there have always been such extremists in theology” (2).

Some of the representatives of this family have appealed, among other things, to some sayings of St. Paul, as, for instance: “For seeing that in the wisdom of God the world by wisdom knew not God, it pleased God, by the foolishness of our preaching, to save them that believe…

The foolishness of God is wiser than men” (3) When this tradition is mentioned, the name of Tertullian soon occurs to one’s mind. His eloquent words have become famous:

“What indeed has Athens to do with Jerusalem? What concord is there between the Academy and the Church? What between heretics and Christians? Our instruction comes from the porch of Solomon (acts 3:5) who had himself taught that the Lord should be sought en simplicity of hear (Wisd. 1:1). Away with all attempts to produce a mottled Christianity of Stoic, Platonic and dialectic composition! We want no curious disputation after possessing Jesus Christ, no inquisition after enjoying the Gospel! With our faith, that there is nothing which we ought to believe besides (4).

This tradition remained alive throughout the Middle Ages (5) and it has stayed strong even in our own days (6). Karl Barth could be mentioned as one of its main spokesmen in the twentieth century. Gilson lets his own views shine through as he refers to this movement in the Middle Ages: “Had the Middle Ages produced men of this type only, the period would fully deserve the title of Dark Ages which it is commonly given” (7).

But there is another group of thinkers, who, despite various differences, can be grouped together in virtue of their distinctive attitude to the question of reason and revelation. Gilson once more does not hide his sympathies when he describes this second family of thinkers:

“Fortunately, the history of Christian thought attests the existence of another spiritual family, much more enlightened than the first one, and whose untiring efforts to blend religious faith with rational speculations have achieved really important results” (8).

The people included in this spiritual family differ from on another, sometimes very radically, in a number of points. The characteristic which brings them together, however, is their belief that reason and revelation are compatible and harmonious. Some of these thinkers gave undisputed primacy to revelation in this relation. First and foremost here is Augustine (9). Others placed reason and revelation side by side, even though they may have regarded the contents of revelation as more important than the knowledge attained by “unaided” reason. Revelation, although it goes beyond reason, is never contrary to reason, according to these thinkers. The outlook of this group is rather adequately summarized by Richard Hooker, although some of the representatives of the group may not have wished to say it so explicitly:

“The whole drift of the Scripture of God, what is it but only to teach theology? Theology, what is it but the science of things divine? What science can be attained unto without the help of natural discourses and reason? ‘Judge you that which I speak’, saith the Apostle. In vain it were to speak anything of God but that by Reason men are able somewhat to judge of that they hear, and by discourse to discern how consonant it is to truth Scripture indeed teacheth things above Nature, things above Nature, things which our Reason by itself could not reach unto. Yet those things also we believe knowing by Reason that Scripture is the Word of God” (10).

This was written in the sixteenth century. This tradition is much older than this, however. It has been claimed that the Paul of the first chapter of Romans is the father of this tradition. Be this as it may, the Alexandrian Fathers, as the Greek Apologists before them, have an undisputed place within this tradition (11).

Although many theologians advocated a synthesis of reason and revelation before the thirteenth century, it was never very clear, however, what the exact nature of the relationship between the two was. It was also left unclear which items were attainable by human reason, unaided revelation, and which items surpassed the power of this reason. So, although reason and revelation were often brought together prior to the thirteenth century, it was reserved for Thomas Aquinas tackle the problem of the exact nature of the relationship between these sources of legitimization of theological claims, and to clarify the limits of the knowledge provided through an appeal to each of these sources. The historical significance of Thomas’ thought is due, to a large extent, to the fact that he was the first one to get to the roots of the problem, clarifying it and offering a statement of the issues which became classic (12). It was because of this that he consolidated and brought to completion a process which had been developing for some time.

In systematizing the basic theological question, Thomas brought into a coherent whole claims which had often been left loose in the past. Before his time it was never quite clear the exact nature of the relationship between reason and revelation. He clarified this, to his satisfaction, and also made clear, in addition, which theological doctrines he thought could be proved or defended by alone and which could not. By dealing with this whole set of problems in an analytic, but also in a rather systematic fashion, Thomas became the first theologian/philosopher to really go to the roots of the problem of the validation of theological claims. In many ways several of his formulations were not novel at all. What was new was the care with which the problem was dealt, the analytic and systematic fashion in which it was approached, not to say anything about the deep awareness of the paramount importance of the issue.

Despite initial suspicion and attack – which, however, were directed in many cases only to his use of Aristotelian philosophy in his de facto synthesis of reason and revelation – Thomas’ statement of the issue soon became classic. After it was presented, even people who disagreed with the way the question had been put, and/or with the answer given, felt they had to deal with the problem, and offer their own solution.

The late Middle Ages has, as a matter of fact, been described by many as the period in which the great Thomist synthesis was dissolved (13). To a great extent this description is quite correct. The dissolution took place gradually, and as a result of movements within and outside the theological tradition. In the philosophical tradition, the Latin Averroists did their share to bring about the divorce between reason and revelation, using in their attack of the synthesis the famous doctrine of “double truth” (14). Within the theological tradition, Duns Scotus considerably increased the list of those revealed truths which a Christian should believe but could not prove (15). In William of Ockham we find a strange, even if understandable, marriage of philosophical skepticism and theological fideism. He maintained that absolutely nothing could be proved about God in the light of natural reason, not even his existence. Through his work reason and revelation reached divorce (16).

During the Renaissance, we have the thinkers of Northern Italy, with their characteristic neo-Platonic views: Marsilio Ficino an Pico della Mirandola are the most important representatives of this group. But we also have the Northern Humanists, such as Erasmus. Thomas More, John Colet and others. In their own way both of these groups tried to effect a synthesis of reason and revelation again. The syntheses which resulted, however, were rather different from the Thomist one, and very different from one another also (17).

The Protestant Reformation did not introduce significant new elements in the discussion of this issue. Basically, Luther and Calvin, as well as some other representatives of the Reformation, fit into what Gilson has designated as the first family of thinkers, i. e. , those who do not regard religion as a rational enterprise, but as one which is in some respects supra-rational and in some respects downright counter-rational or irrational. To the extent that other figures of the Protestant Reformation leaned toward the acceptance of a natural, or rational theology, they simply came closer to either Thomas’ or the Renaissance models. The Reformers directed their attention mostly to other problems, which are of secondary importance when one views the theological enterprise from the standpoint of its possibility (18).

After the Reformation we have several tendencies. On the one hand, we have John Locke, re-establishing the great synthesis between reason and revelation, even though on grounds different from those used by Thomas or the Renaissance Humanists (19). On the other hand , we have those who did not accept the synthesis – Locke’s or any other – and who argued for the existence of a divorce between reason and revelation. On this side, we have two groups: one group preferred to stay with one partner, the second group with the other. The Deists stuck with reason, with natural religion, and deplored the superstitious belief in miracles and revelation. Here we have John Toland, Anthony Collins, Thomas Woolston, Matthew Tindal, all in Britain. In the Continent we cannot fail to mention Lessing and Voltaire (20). In the opposing camp, we have the fideists, who denied the possibility of natural theology and argued that faith (even blind faith) was the only avenue of access to religion. Pierre Bayle is the most important representative of this point of view, before the half of the eighteenth century. Even though many commentators doubt his sincerity, Pierre Bayle claimed to be “a Protestant in the full sense of the term” (21), and argued that faith – and if it is non-rational, it ought not to be rationally defensible (22). A rational faith, for him, is a contradiction in terms – the certitude of faith has no other foundation than the fact that one believes it (23).

Up to the time of Hume, therefore, the synthesis between reason and revelation had been constructed, destroyed, reconstructed, destroyed again. But the important thing about this historical development is the following: even those who destroyed the synthesis, such as William of Ockham in the late Middle Ages, the Reformers, the Deists, the Fideists (with the possible exception of Pierre Bayle), did not doubt the possibility of the theological enterprise. They broke up the marriage between reason and revelation, but they were convinced that theological claims could be validated – either through reason (the Deists) or by an appeal to revelation (Ockham, the Reformers, the Fideists). Even a few years before Hume’s time, Locke still defended the synthesis, arguing for “The Reasonableness of Christianity”, trying to show that even the acceptance of revelation was rational, since revelation had been accompanied by miracles which proved its authenticity – hence the importance of the question of miracles in the eighteenth century . Because of this, Christianity, according to him, even in those aspects which cannot be demonstrated by reason, is fully reasonable.

So, up to Hume’s day, either reason or revelation, or both, were thought to be the means of validation of theological claims, and hence the sources of legitimization of the theological enterprise.

Hume’s critique of the theological enterprise was devastating because it went to the grounds of its legitimization – to both of these grounds. This is not the place to discuss Hume’s critique in detail (24).

A brief mention of his main arguments will have to suffice.

  • Hume attacked revelation, by offering an argument against the credibility of miracles, which were believed to be the guarantee of revelation;
  • he then attacked reason as a ground of validation of theological claims by criticizing the various arguments which had been offered in attempts to prove the existence of God;
  • then, in his discussion of the problem of evil, Hume presented a positive argument against the existence of the traditional Christian God, that is, against the existence of an omnipotent, omniscient, and omnibenevolent being; (here, instead of merely criticizing arguments for the existence of God, he presented an argument against it);
  • finally, he gave an answer to the question which naturally comes to most minds, once they discover, or are told, that belief in God and in the main tenets of religion and theology is without rational justification: how are we then to explain the fact that most people believe in God and are, in many ways, religious? In answering this question, in The Natural History of Religion, Hume gave a fully naturalistic account of religion, explaining it in terms of ignorance and of our sentiments of fear and hope.

So, although Hume did not pack all of his remarks on religion and theology neatly together, his critique of religion and theology was as complete and systematic, in the context of eighteenth-century thought, as anyone might wish (or fear). He went to the roots of the theological enterprise, and attacked the pillars on which it was built, in a merciless and thorough fashion. He did not spend his time attacking many secondary aspects of religion or non-fundamental tenets of theology: he inveighed against theology at its most basic, when he launched his attack against both reason and revelation as sources of validation of theological claims.

To the best of my knowledge, Hume was the first major intellectual figure in modern times to launch such a systematic, complete attack upon religion and theology (25). His critique was not a mere compilation of arguments already offered by other people before him – although it did include such. At many specific points his criticism was quite original and novel, and many particular arguments first brought up by him are repeated by contemporary skeptics without much change or alteration (26). The originality an novelty of many of his criticisms, and the fact that he was the first major intellectual figure in modern times to generate such a powerful critique of religion and theology, substantiate, in my view, Richard H. Popkin’s contention that “Hume… is, perhaps, the most important philosophical critic of religious thought in modern times, and the one who presented the most destructive criticism of religious thought” (27).

Hume’s significance for the history of Christian thought depends, to great extent, upon this fact. Never before in the history of Christianity, had the distinctive claims of Christian theology been subjected to such critique as we find is Hume.

The Deists, before Hume, were important in that they rejected revelation as an independent source of theological insight – something not many people had done before them. In so doing they produced a theology which no longer was specifically Christian, despite the many traces of Christian influence it contained. The Deists, however, were still confident that their theological claims could be validated by reason. Their trust in reason, in this regard, was only matched by their distrust of anything resembling revelation.

By accepting the possibility of natural theology, the Deists never doubted the possibility of the theological enterprise as such. They rejected only one of the grounds of validation of theological claims. Although they rejected, in the process, that ground of validation which gave legitimacy to the distinctively Christian elements in the theological tradition, their criticism of theology was not radical. It was left to Hume to launch the radical attack. He concurred with the Deists in their criticism of revelation. Christian apologists had, from the beginning, appealed to miracles as the guarantee of the genuineness and veracity of the Christian revelation. Hume showed that no “system of religion” could be built on such a foundation. But he then went on and offered a devastating criticism of what had been regarded as common ground by most Christian theologians and the Deists: natural theology. In The Natural History of Religion, furthermore, Hume tried to destroy one of the main assumptions of the Deists, namely, the assumption that mankind at first had had a pure natural religion, which consisted of belief in one supreme Being and the observance of the moral law laid down by him. Hume showed that mankind most probably went through a polytheistic stage, before it came to believe in only one God. He showed further that most people believe in God, or in gods, not no the strength of allegedly rational arguments, but for the superstitious reasons.

So, Hume was the first major intellectual figure in modern times to attack and rejected, in a systematic and thorough fashion, both sources of validation of theological claims, reason and revelation. What was aftermath of his attack?

Since prior to Hume’s time reason and revelation were regarded as the only sources of legitimation for theological claims, there were only two intellectually reputable alternatives for those who accepted his critique as valid: one would have either to reject the theological enterprise as altogether groundless or to find a new ground on which to justify theological claims. Hume chose the first alternative. Kant, who endorsed most of Hume’s criticism of natural theology, and who also rejected revelation as such, chose the second alternative. After his own critique of natural theology in the Critique of Pure Reason – a critique partly based on Hume Kant observes:

“Now I maintain all attempts to employ reason in theology in any merely speculative manner are altogether fruitless and by their very nature null and void, and that the principles of its employment in the study of nature do not lead to any theology whatsoever. Consequently, the only theology of reason which is possible is that which is based upon moral laws or seeks guidance from them” (28) .

Kant hoped that by relating belief in God to moral experience he could show that belief to be rational, thereby bringing (his kind of) religion back to the fold of rationality . Kant’s emphasis on morality was to become very influential upon the nineteenth-century Liberal Theologians. Other people tried to find other solutions to the dilemma: some emphasized religious experience, others emphasized the religious dimension of (secular) experience. Interesting as these suggestions may be, it is beyond the pale of this paper to discuss them. The point of mentioning them is that they were attempts at avoiding the conclusion that theology was groundless, and therefore to be rejected.

I said above that for those who accepted Hume’s conclusions there were only two intellectually reputable alternatives: either to reject the theological enterprise or to find new grounds for it . If one eliminates the underlined words, there will still be another alternative: to claim that religion is to be accepted on the basis of blind faith. There had been people who had rejoiced in religion’s irrationality since the beginning of the history of Christianity; some of the Protestant Reformers did just that, and Pierre Bayle claimed, as we saw, that only by believing the irrational could faith really maintain its identify as faith. Unpalatable as this suggestions may seem to many, specially to eighteenth-century people who had been hearing about the reasonableness of Christianity for over a century, there were those eagerly embraced this alternative. J. G. Hamann did so, and even hailed Hume as the patron saint of his irrational fideism. But Sören Kierkegaard, in the nineteenth century, is, perhaps, the most important representative of this trend.

Of course, it was always possible to deny that Hume’s criticisms were valid and to go on doing theology as before. Roman Catholic theologians, by large, did just that. In the nineteenth century Thoma’s theology was made official Roman Catholic theology for all practical purposes. Various Protestant theologians, however, did the same thing, either by trying to refute Hume, or, more often, by simply pretending to ignore him.

On the whole, however, one can say that most of the creative and original work, in post-Humean times, was done by those who concurred with many of Hume’s criticisms, but wanted to make theology an intellectually respectable discipline, and who had, therefore, to devise a new way of doing theology. Those who tried to refute his views on religion and theology limited themselves, in most cases, to restating arguments which his criticism had already seriously undermined. The success of irrationalist Fideism in the first part of the twentieth century is another indication of how thoroughly Hume did his job.

By attacking what had been considered the only sources of legitimization for theological claims, Hume posed a tremendous challenge to theology. After Hume, theology, if it was to remain a serious intellectual discipline, with some claim to rational status, had to deal with Hume’s critique.

In great part because of Hume, the eighteenth century represents a turning point in the history of Christian thought, being one of those moments in history when, as Peter Gay put it, in the quotation found in the beginning of this paper, “a small addition in quantity induces a change in quality , when the addition of a new shade to a seemingly continuous spectrum produces a new color”. Because of this, therein lies the great divide between tradition and modernity, between traditional and modern thought about God and religion.

NOTES

1. Peter Gay, The Enlightenment: An Interpretation, Vol. I, The Rise of Modern Paganism (New York, 1967), p. 327

2. Etienne Gilson, Reason and Revelation in the Middle Ages (New York, 1938), p. 5

3. I Cor. I:21, 25, quoted apud Gilson, p. 7

4. Tertullian, On Prescription against Heretics, ch. VII, in the The Ante-Nicene Fathers, trans. By Peter Holmes (Buffalo, 1887), vol. III, p. 246, quoted apud Gilson, pp. 9-10

5. Cp. Gilson, pp. 5-15 and the whole of chapter I

6. For the period of the Renaissance and the Reformation see Hiram Haydn, The Counter-Renaissance (New York, 1950), especially chapters I an II

7. Gilson, op. cit. , p. 15

8. Ibid.

9. Cp. Gilson, op. cit. , pp. 16 ff. Because of this Augustine’s views not infrequently border on Fideism. For his views on the relation between reason and revelation, see, in addition: Roberto E. Cushman, “Faith and Reason in the Thought of St. Augustine”, Church History, XIX (1950), pp. 271-294; reprinted in A Companion to the Study of Saint Augustine, edited by Roy W. Battenhouse (New York, 1955); B. Warfield, “Augustine’s Doctrine of Knowledge and Authority”, Princeton Theological Review, V (1907), pp. 353-397; cp. the extensive bibliography on Augustine in Etienne Gilson, The Christian Philosophy of St. Augustine, trans. by L. E. M. Lynch (New York, 1960, 1967).

10. Richard Hooker, Of the Laws of Ecclesiastical Polity, edited by Ronald Bayne (Everyman Edition), III: viii: 11-12, quoted apud Haydn, p. 49

11. I do not regard those thinkers who give undisputed primacy to reason as members of this group. Whenever reason is given primacy, it is established as a criterion and it only accepts that which conforms to its own teachings. It ends up, therefore, being the only source of legitimization for theology. When members of this group say, with Hooker, that they know by reason that Scripture is the Word of God they do not mean that if every passage of Scripture is rationally scrutinized it will be concluded that the whole of Scripture consists of passages which could have been discovered by unaided reason. What is meant is, rather, that there are some external evidences, such as miracles, which constitute sufficient ground for any rational person to accept Scripture as the Word of God. This is clearly the case in the work of Thomas Aquinas, and also of John Locke.

12. Cp. Gilson, op. cit. in note 2, pp. 69 ff.

13. Among the many who have spoken of “the dissolution of the Medieval Synthesis” we have John Dillenberger and Claude Welch, Protestant Christianity Interpreted through its Development (New York, 1954), chapter I; cp. F. C. Coplestone, Medieval Philosophy (London, 1952), especially chapters VII to XI

14. Cp. Etienne Gilson, History of Christian Philosophy in the Middle Ages (New York, 1955), pp. 387ff, dealing with the Latin Averroism of Siger of Brabant and Boethius of Sweden, and pp. 521ff, dealing with what Gilson calls “The Second Averroism”, represented by John of Jandun and Marsilius of Padua. According to the doctrine of “double truth”, a thing can be true in philosophy, or according to reason, and yet its opposite could be true in theology, or according to faith.

15. Cp. Gilson, History of Christian Philosophy in the Middle Ages, pp. 454ff.

16. Cp. E. A. Moody, The Logic of William of Ockham (New York, 1935). Cp. also E. A. Moody, “Empiricism and Metaphysics in Medieval Philosophy”, Philosophical Review, LXVII, no. 2 (April., 1958), pp. 145-163

17. Cp. Hiram Haydn, op. cit.. Cp. also E. Cassirer, “Giovanni Pico della Mirandola (I)”, Journal of the History of Ideas, II (1942), pp. 125-126. This article is reprinted, with many others, in Renaissance Essays, edited by Paul O. Kristeller and Philip Wiener (New York, 1968), pp. 11-60. On Ficino, see Paul O. Kristeller, The Philosophy of Marsilio Ficino, trans. by Virginia Conant (New York, 1943). Cp. also, in this context, Kristeller’s book, Renaissance Thought: The Classic, Scholastic and Humanist Strains (paperback edition, New York, 1961; originally published in 1955)

18. Cp. B. A. Gerrish, Grace and Reason. A Study in the Theology of Luther (Oxford, 1922), Leroy Nixon, John Calvin’s Teachings on Human Reason (New York, 1963)

19. Cp. S. G. Hefelbower, The Relation of John Locke to English Deism (Chicago, 1918) and G. R. Cragg, From Puritanism to the Age of Reason (London, 1950), Richard Ashcraft, “Faith and Reason in Locke’s Philosophy”, in John Locke: Problems and Perspectives, edited by John W. Yolton (Cambridge, 1969)

Cp. 20. John Orr, English Deism: Its Roots and its Fruits (Grand Rapids, 1934), Peter Gay, ed., Deism – An Anthology (Princeton, 1968), and also Gay’s book mentioned in note 1.

21. Cp. Richard H. Popkin, The History of Scepticism from Erasmus to Descartes, revised edition (New York, 1964, 1968) p. 67

22. Cp. Ibid., p. 66

23. Cp. Ibid., p 65

24. I have done this in my Ph. D. dissertation, David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought (University of Pittsburgh, 1972)

25. Spinoza may, perhaps, be considered by some as having some precedence. However, his criticism of religion was directed almost exclusively to revelation and the Bible. He did not devote much attention to natural theology as such. Cp. in this context Leo Strauss, Spinoza’s Critique of Religion, trans. by E. M. Sinclair (New York, 1965, originally published in 1930)

26. Richard H. Popkin, “Hume and Kierkegaard”, The Journal of Religion, XXXI (1951), p. 274

27. Kant, Critique of Pure Reason, trans. By Norman Kemp Smith (London, 1929; paperback edition, New York, 1965), B 664.

Campinas, July 1983.
© Copyright by Eduardo Chaves
Last revised: May 02, 2004

Transcrito aqui em Salto, 15 de Junho de 2016

A Teologia Liberal do Século 19: Tentativa de Periodização

Recebi, trazidos recentemente por minha filha, dois livros (na realidade, um livro em dois volumes) sobre a História do Pensamento Protestante no Século 19 (Protestant Thought in the Nineteenth Century), de Claude Welch, que havia comprado na Amazon uns dias antes de ela vir para o Brasil.

Na História do Pensamento Cristão, que sempre foi minha área de interesse principal, desde que entrei no Seminário em 1964, sempre dei mais atenção ao Século 18 do que ao Século 19. O tema que sempre mexeu comigo foi o da Crítica ao Cristianismo – a Heresia, muito mais do que a Ortodoxia. Alguém (Leo Tolstói, em Ana Karenina) uma vez sugeriu que a literatura não teria florescido se não houvesse a desgraça e o sofrimento. Os maiores romances tratam de a desgraça e o sofrimento – em outras palavras, da infelicidade. A felicidade, disse o autor da frase, não tem graça, porque todo mundo é feliz do mesmo jeito. Mas a infelicidade!!! Cada um parece encontrar um jeito próprio, quiçá único, de ser infeliz. Por isso, a desgraça e o sofrimento têm um papel preponderante na literatura. Ouso sugerir que a ortodoxia não tem graça: é uma coisa só, já congelada no tempo, sem maior novidade. Mas a heresia!!! Cada um parece encontrar um jeito próprio, quiçá único de ser herege!!! Daí minha fascinação pelo Século 18, o século da heresia, por excelência, da crítica à religião. Hume e Voltaire são meus favoritos.

Ultimamente, porém, meu interesse tem se dedicado à Teologia Liberal do Século 19 – uma tentativa de resposta relativamente criativa à crítica à religião do Século 18, uma tentativa de fazer teologia numa cultura pós-iluminista (para não dizer pós-moderna). É verdade que muitos – os mais conservadores e os fundamentalistas – acham a Teologia Liberal herege, porque ela não comunga da Ortodoxia deles. John Gresham Machen, o último fundamentalista que vale a pena ler, escreveu em Cristianismo e Liberalismo (Christianity and Liberalism), de 1923, que a Teologia Liberal não era uma outra escola de teologia dentro do Cristianismo: era uma outra religião, inteiramente… Mas, felizmente, não é preciso concordar com Machen. Poucos concordam. E o interesse pela Teologia Liberal, especialmente no seio do Protestantismo, continua.

Assim, voltemos ao livro em dois volumes de Claude Welch. O primeiro volume foi escrito em 1972 e o segundo, em 1985. Treze anos de intervalo entre um e outro. Mas, ao escrever o primeiro volume, o segundo estava totalmente concebido, apesar de sua produção ter levado tanto tempo… Houve uma reimpressão dos dois volumes em 2003, que prova que o interesse pela Teologia Liberal continua a existir – na verdade, tem crescido.

Interessa-me aqui transcrever e discutir a periodização da História da Teologia Liberal que Welch adota. Ele fixa o período dessa história de 1799 até 1914, e o divide em três partes:

  • 1799 a 1835
  • 1835 a 1870
  • 1870 a 1914

Que “marcos” representam essas datas?

O ano de 1799 (dois anos antes de começar o Século 19) marca a publicação do livro Acerca da Religião: Discursos para os Bem-Preparados dentre Aqueles que a Desprezam (Über die Religion: Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern), de Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher (1768-1834). O título da tradução para o Inglês é On Religion: Speeches to its Cultured Despisers. Para Welch esse livro justamente conquistou para o Schleiermacher o título com o qual é consensualmente honrado, pelos que o admiram e pelos que o detestam, de “Pai da Teologia Liberal”.

Significativo o título do livro. Schleiermacher se dirige aos críticos (desprezadores) da religião (isto é, os pensadores iluministas do século que estava terminando) – mas não a todos, apenas àqueles que ele considera bem-preparados.

O ano de 1835, além de ser o ano seguinte ao da morte de Schleiermacher, também é, e esse fato é mais importante, o ano do surgimento de uma nova estrela no cenário do pensamento liberal. Nele David Friedrich Strauss (1808-1874) publica o seu provocante A Vida de Jesus (Das Leben Jesu) e coloca a “Busca do Jesus Histórico” no centro de atenção do Século 19 – busca essa que só seria definitivamente encerrada (pelo menos na forma em que era conduzida) pelo livro de A Busca do Jesus Histórico (The Quest of the Historical Jesus, na tradução para o Inglês, título bem mais sugestivo do que o insípido título dado pelo autor no original: Von Reimarus zu Wrede (De Reimarus a Wrede). Foi nessa fase que a Crítica Bíblica (baixa e alta) floresceu, sendo seu principal expoente Ferdinand Christian Baur (1792-1860). Baur escreveu muito. Talvez suas duas obras principais sejam Paulo, o Apóstolo de Jesus Cristo: Sua Vida e Obra, suas Epístolas e sua Doutrina – Uma Contribuição para a História Crítica do Cristianismo Primitivo (Paulus, der Apostel Jesu Christi: sein Leben und Wirken, seine Briefe und seine Lehre – Ein Beitrag zu einer kritischen Geschichte des Urchristentums), de 1845, e História da Igreja dos Primeiros Três Séculos (Kirchengeschichte der drei ersten Jahrhunderte), de 1865. Ele acabou ficando conhecido por sua controvertida tese de que Paulo, não Jesus, é o verdadeiro fundador do Cristianismo.

O ano de 1870 é o ano em que Albrecht Ritschl (1822-1889) publica o primeiro volume de seu livro A Doutrina Cristã da Justificação e Reconciliação (Die christliche Lehre von der Rechtfertigung und Versöhnung). Se a primeira fase é dominada por Schleiermacher e a segunda por Strauss, a terceira nasce com Ritschl e inclui Ernst Troeltsch (1865-1923) e Carl Gustav Adolf von Harnack (1851-1930). Se Schleiermacher foi o “Pai”, esses três podem ser considerados a “Santíssima Trindade” da Teologia Liberal em sua “Fase Áurea”. Tanto Troeltsch como Harnack morreram depois de terminada a Primeira Guerra Mundial: Troeltsch, cinco anos depois; Harnack, nada menos do que doze. As obras principais de Troeltsch provavelmente são O Caráter Absoluto do Cristianismo e a História das Religiões (Die Absolutheit des Christentums und die Religionsgeschichte), de 1902, e A Doutrina Social das Igrejas Cristãs (Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen), de 1912. A obra principal de Harnack certamente é História do Dogma (Lehrbuch der Dogmengeschichte), em sete volumes, escrito de de 1894 a 1898. Seu pequeno livro A Essência do Cristianismo (Das Wesen des Christentums), escrito logo depois, em 1899/1900, cujo título em Inglês é What is Christianity?, também merece destaque pela discussão que gerou.

O ano de 1914 é o da início da Primeira Guerra Mundial – que, no entender de muitos, marca o fim real do Século 19 e o começo real do Século 20 (século este que, para muitos, teve, além de um início retardado, um fim antecipado, geralmente colocado em 1989/1990, com o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Teologicamente, o Século 20 começa com a publicação do livro A Carta aos Romanos (Der Römerbrief) de Karl Barth, que indica o seu rompimento com a Teologia Liberal de seus mestres Harnack e outros e sua guinada na direção da Ortodoxia. O pensamento de Barth e dos que o acompanharam é geralmente chamado de Neo-Ortodoxo.

Três fases: a de Schleiermacher, a de Strauss com sua busca do Jesus Histórico, bem secundado por Baur, liderando o período áureo da Crítica Bíblica, e a de Ritschl, Troeltsch e Harnack. Ao todo, um século longo, de 115 anos.

Em São Paulo, 20 de Fevereiro de 2016.

Theologia

Uma das grandes lições que tive acerca da teologia veio de Schleiermacher (Daniel Ernst Friedrich Schleiermacher), teólogo alemão, influenciado pelo Pietismo da família em que nasceu (no início do terço final do século 18, na cidade de Breslau, na Prússia, hoje Wroclaw, na Polônia) e pelo Romanticismo dos círculos em que cresceu, floresceu, amadureceu e morreu (no primeiro terço do século 19, na cosmopolitana Berlim). Ele nasceu em 1768 e morreu em 1934.

Eu, e muita gente boa me acompanhou nessa ideia, sempre acreditei que teologia fosse a reflexão e o discurso acerca de Deus – God Talk, como dizem os americanos com toda a simplicidade que a língua inglesa americanizada permite. Algo bastante pretensioso esse negócio de refletir sobre Deus. Como diria Voltaire, como pode o homem, essa porcariazinha que habita um cantinho insignificante de um magnífico e, possivelmente infinito universo, presumir conhecer a Deus, o suposto criador de toda esse maquinário?

Schleiermacher redefiniu a teologia. Ela não é sobre Deus — é sobre o homem em sua busca de algo ou alguém que lhe falta, o infinito que se contrapõe à sua finitude, o ilimitado que contrasta com as suas limitações, o infalível que torna horrível suportar as suas falhas, o independente que se opõe à sua dependência, o eterno que torna a sua mortalidade tão difícil de enfrentar… Desde sempre e em todo lugar o homem buscou algo ou alguém que é maior do que ele, mais poderoso, mais sábio, mais bondoso, quem sabe todopoderoso, onisciente, perfeitamente bom… A teologia é o relato reflexivo dessa busca do homem por um deus, um ens perfectissimum. Uma busca que o homem continua a fazer, sem poder ter certeza de que será bem sucedida. Só com esperança (do verbo esperançar, mais do que esperar, como diria Paulo Freire).

Ludwig Feuerbach concluiu, corretamente, a partir da tese de Schleiermacher, que a teologia, se é isso, não é Teologia, mas, sim, Antropologia Filosófica, com “a” maiúsculo, o estudo da busca, por parte do homem, daquilo ou daquele que o homem, não sendo, nunca se conformou em não ser…

Voltaire, que aparentemente sempre tinha um dito apropriado para qualquer situação, teria dito que, se Deus não existisse, seria necessário inventa-lo, porque o homem não conseguiria viver sem ele… A teologia é a tentativa do homem de entender por que sempre buscamos, ainda que inventando-os, os nossos deuses.

Eduardo Chaves, em Salto, 4 de Fevereiro de 2016. Transcrito da página Theologia, no Facebook, que pertence a meu sobrinho Vitor Chaves de Souza e a mim (vide https://web.facebook.com/Theologia-117032235029806/)

Principais Traduções da Bíblia para o Português Usadas no Brasil Protestante

Conteúdo

I. Introdução

  1. Justificativa e Teor deste Trabalho
  2. Principais Traduções da Bíblia para o Português Disponíveis Hoje

II. As Traduções / Versões Almeida

  1. Almeida Original (A-O) (1676-1693, 1750-1753, 1819, 1860)
  2. Almeida Revista e Corrigida (A-RC) (1898)
  3. Almeida Revista e Atualizada (A-RA) (1959 1a ed; 1993 2a ed)
  4. Almeida Revisada (A-R) (1967, 1974)
  5. Almeida Corrigida Fiel (A-CF) (1994)

III. A Tradução Brasileira (TB) (1917, 2010)

IV. A Bíblia Viva e A Nova Bíblia Viva (1981, 2014)

V. A (Nova) Tradução para a Linguagem de Hoje (TLH/NTLH) (1988)

VI. A Nova Versão Internacional (NVI) (2000)

NOTAS

I. Introdução

1. Justificativa e Teor deste Trabalho

Atualmente há muitas traduções da Bíblia para o Português, patrocinadas por entidades caracteristicamente protestantes e católicas (e também por entidades ecumênicas ou que não se caracterizam por ser nem protestantes, nem católicas, nem ecumênicas). Neste artigo vou me concentrar naquelas traduções que me parecem ser as mais importantes, em especial tendo em vista o público protestante leigo: crentes interessados na escolha daquele que poderíamos chamar de o melhor texto bíblico em Português, isto é, o texto bíblico que seja, de um lado, fiel, tanto quanto possível, aos melhores manuscritos que temos do Velho e do Novo Testamento, e, de outro lado, de leitura relativamente fácil e  agradável, usando termos e construções sintáticas que o brasileiro de hoje que tenha passado pela educação compulsória em uma escola pública possa entender sem grandes complicações.

Ouso esperar, também, que trabalho seja igualmente para estudantes de Teologia e mesmo pastores que busquem achar, num lugar só, as principais características das principais edições da Bíblia em Português disponíveis no mercado. O texto, admito de pronto, não tem grande originalidade nem de conteúdo, nem de forma. É mais uma compilação de informação facilmente encontrável na Internet, mas disponível em diversos sites – mais de duas dezenas – acrescida de informações fornecidas pelas Introduções de mais de vinte diferentes cópias da Bíblia em Português (tenho outro tanto em outras línguas) que eu possuo em minha biblioteca pessoal. Fique claro, também, que não escrevo, de modo algum, para especialistas em Traduções e na Crítica do Texto Bíblico do Velho e do Novo Testamento que têm fácil acesso a material mais profundo e sofisticado do que este [1] [2] [3].

2. Principais Traduções da Bíblia para o Português Disponíveis Hoje

Hoje em dia, as principais traduções da Bíblia para o Português (principais no que diz respeito à sua acessibilidade e consequente popularidade) são basicamente seis, quatro das quais publicadas sob os auspícios da Sociedade Bíblica Brasileira – SBB [4]. As Bíblias publicadas pela SBB são:

  • Almeida Revisada e Corrigida (A-RC), a primeira principal sucessora da Almeida Original
  • Almeida Revisada e Atualizada (A-RA), a segunda principal sucessora da Almeida Original, e sucessora também da A-RC
  • Nova Tradução para a Linguagem de Hoje (NTLH), nova tradução, em linguagem contemporânea, sucessora da Tradução para a Linguagem de Hoje (TLH)
  • Tradução Brasileira (TB), uma tradução antiga, do início do Século 20, que ainda se sustenta mediante o apoio da SBB

Entre as edições Almeida há uma, a chamada Almeida Revisada (AR), que não é publicada pela SBB, como se verá abaixo, na Seção 4 do segundo capítulo.

As quatro edições da SBB estão disponíveis no formato de e-books (edições digitais para equipamentos móveis), gratuitamente, no app “Minha-Bíblia-SBB” (ou “minhabibliasbb”) [5], disponível tanto para telefones e tablets da linha Android como para os produtos equivalentes da linha Apple. Essas traduções também estão disponíveis como e-books no popular formato Kindle, da Amazon, mas, neste caso, não são gratuitas, custando um pouco menos de dez reais cada ou dois dólares e meio cada a preços do final de Dezembro de 2015.

Sob auspícios de outras instituições também há também as seguintes traduções que coloco entre as principais:

  • Nova Versão Internacional (NVI)
  • Bíblia Viva / A Nova Bíblia Viva

Dada sua importância, gastarei a primeira seção do segundo capítulo falando da tradução Almeida Original (A-O) – que, como se verá, é um sequência de traduções e revisões, iniciada por João Ferreira de Almeida no Século 17 e revisada nos Séculos 18 e 19. A maior parte das versões Almeida publicadas atualmente são, em algum sentido, revisões da  A-O, mas, em alguns casos, são revisões tão drásticas que, para falar a verdade, devem ser consideradas novas traduções. Mas como mantém um estilo e um tom familiar para o leitor que acompanha a sequência de revisões e traduções Almeida, mantém-se o nome – literalmente, a “marca” Almeida [6].

II. As Traduções / Versões Almeida.

1. A Tradução Almeida Original (A-O) (1676-1693, 1750-1753, 1819, 1860)

A primeira tradução da Bíblia que carrega o nome de João Ferreira de Almeida foi feita no Século 17, continuamente revisada e parcialmente refeita no Século 18, e, posteriormente, refeita nos Séculos 19 e 20, é considerada um marco na história da Bíblia em Português porque foi a primeira tradução da Bíblia para o Português feita a partir das línguas originais (Hebraico e Grego – e, no caso de pequenos trechos, Aramaico, mas os trechos em Aramaico são tão poucos e pequenos que podem ser desconsiderados) [7].

Consta que, em 1642, quando tinha apenas 14 anos, João Ferreira de Almeida (nascido em 1628, portanto, 104 anos depois de Luís de Camões) deixou Portugal para viver na Malásia. Pouco tempo antes ele havia ingressado no protestantismo, vindo do catolicismo, e transferia-se para a Ilha de Java (onde fica Jakarta), na Indonésia, com o objetivo de trabalhar na Igreja Reformada Holandesa local [8].

Almeida já conhecia a Vulgata (principal tradução da Bíblia para o Latim, feita por, e sob os auspícios de, São Jerônimo, no fim do Século 4 e início do 5), pois seu tio era padre e essa sempre foi, historicamente, a tradução da Bíblia para o Latim privilegiada pela Igreja Católica Romana (sendo mais do que possível, provável, que Almeida tenha estudado em uma escola católica até se converter para o Protestantismo. Almeida começou traduzindo importantes partes da Bíblia para o Português a partir de traduções existentes para outros idiomas que ele conhecia. Aos 16 anos, por exemplo, traduziu um resumo dos evangelhos do Espanhol para o Português, que nunca chegou a ser publicado. Na Malásia traduziu partes do Novo Testamento também do Espanhol. Aos 17, traduziu o Novo Testamento do Latim, da versão de Teodoro de Beza (reformador em Genebra no Século 16, braço direito de João Calvino [9]), apoiando-se em traduções dessa obra feitas para o Italiano, o Francês e o Espanhol.

Aos 35 anos, iniciou a tradução que o tornou famoso, a partir dos idiomas originais, Hebraico e Grego, embora seja um pouco misterioso como ele veio a aprender essas línguas [10].

Naquela época, a hoje chamada “Baixa Crítica” (crítica basicamente textual dos manuscritos bíblicos [11]) ainda não existia. Assim, não havia versões do texto original criticamente elaboradas a partir dos melhores manuscritos (os mais antigos e confiáveis). Por isso, Almeida usou como base para sua tradução o chamado “Texto Massorético” [12] para o Antigo Testamento e uma edição de 1633 (pelos irmãos Elzevir) do chamado “Textus Receptus[13] para o Novo Testamento. Utilizou, também, no processo, traduções famosas da época, em especial a chamada Reina-Valera, para o Espanhol [14], a língua mais próxima do Português.

A tradução do Novo Testamento feita por Almeida ficou basicamente pronta em 1676. O texto foi enviado para a Holanda para revisão. O processo de revisão durou cinco anos, sendo o texto revisto sido publicado em 1681, após terem sido feitas, pelo que consta, inúmeras modificações (mais de mil, segundo alguns). A razão é que os revisores holandeses queriam harmonizar a tradução portuguesa com a principal tradução do Novo Testamento para o Holandês, publicada em 1637. O próprio Almeida continuou a revisar o texto durante dez anos, sendo uma nova edição publicada na Batávia, após a sua morte, em 1693. Enquanto revisava, trabalhava também na tradução do Velho Testamento.

No tocante ao Velho Testamento, o Pentateuco ficou pronto em 1683. Há uma tradução dos Salmos que foi publicada em 1695. Quanto ao restante, Almeida conseguiu traduzir até Ezequiel 48:12 antes de morrer, em 1691, tendo Jacobus op den Akker completado a tradução nos três anos seguintes, concluindo-a em 1694.

A primeira edição da tradução completa da Bíblia de Almeida foi publicada, após mais revisões, em dois volumes, o primeiro em 1750-1753, revisto pelo próprio den Akker e por Cristóvão Teodósio Walther, e o segundo em 1753.

Em 1819, a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira publicou uma segunda edição da Bíblia completa, agora em um volume.

Uma terceira edição foi publicada em 1860, pela mesma Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira.

Depois dessa terceira edição, foi feita uma nova versão da tradução, em 1898, que passou a ser chamada de Almeida Revisada e Corrigida (ou Correcta) – A-RC. Como essa versão já utilizou outros manuscritos além do “Texto Massorético” e do “Textus Receptus”, ela merece a distinção de ser considerada uma nova versão, ou mesmo uma nova tradução, que será discutida em seção à parte: vide abaixo, seção 2 deste capítulo. Por causa disso, esta também é a primeira edição da tradução feita por Almeida que se baseia, em grande medida, no chamado “Texto Crítico” [15].

O trabalho de João Ferreira de Almeida é para a língua portuguesa o que a Bíblia de Lutero é para língua alemã [16], o que a Bíblia do Rei Tiago (King James Bible[17] significa para a língua inglesa e o que a Bíblia da Reina-Valera [18] representa para a língua espanhola. Teófilo Braga, ao comentar a versão original de Almeida, disse: “É esta tradução o maior e mais importante documento para se estudar o estado da língua portuguesa no Século 18.”

No entanto, a única tradução atual para o Português que utiliza os mesmos textos-base em Grego e Hebraico que foram utilizados por João Ferreira de Almeida é a chamada versão Almeida Corrigida Fiel (A-CF), de 1994, publicada pela Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil (vide abaixo, Seção 5), e geralmente utilizada por setores mais conservadores, quando não fundamentalistas, do Cristianismo.

As demais versões atuais, embora utilizem o nome “Almeida”, como a Almeida Revista e Corrigida (A-RC), de 1898, e a Almeida Revista e Atualizada (A-RA), baseiam-se em maior ou menor grau nos manuscritos do chamado Texto Crítico, que passou a ser utilizado somente a partir do Século 19. Por isso, são mais novas traduções do que meras versões da tradução de Almeida, como se observou atrás (último parágrafo do primeiro capítulo), embora façam questão de continuar a usar a “marca” Almeida.

2. A Versão / Tradução Almeida Revista e Corrigida (A-RC) (1898)

A Almeida Revista e Corrigida foi a primeira Bíblia completa a ser impressa no Brasil – fato que se deu em 1898. Houve revisões dessa tradução em 1969, 1995, e 2009 – que é a revisão que está atualmente em circulação [19].

Uma das características da A-RC é sua linguagem clássica, praticamente erudita. Essa tradução preza pela equivalência formal, ou seja, procura reproduzir no texto traduzido os aspectos formais do texto bíblico em suas línguas originais (Hebraico e Grego). No tempo em que Almeida publicou sua tradução original era costume dos tradutores indicar pelo tipo itálico (inclinado) toda e qualquer palavra que precisasse ser inserida na tradução para que tivesse sentido. Essa prática foi fielmente conservada pela A-RC. A presente edição incorpora as mudanças previstas na reforma ortográfica da língua portuguesa vigente a partir de 2009.

A A-RC foi a tradução que usei quando jovem. Minhas duas primeiras Bíblias, que eu ainda tenho (embora um pouco “detonadas”) são A-RC.

Eis como ela traduz Gênesis 1:1-4a:

“No princípio criou Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz. E houve luz. E viu Deus que era boa a luz”.

Em outro exemplo, eis como ela traduz João 3:16:

“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”

Basta que eu olhe na tradução desses trechos para saber se se trata da A-RC ou de outra versão / tradução.

Porque segue o princípio de tradução por equivalência formal, a A-RC é ainda adotada por grande número de igrejas evangélicas em países de fala portuguesa, e especialmente no Brasil e em Portugal [20].

3. A Versão / Tradução Almeida Revista e Atualizada (A-RA) (1959, 1993)

A A-RA é uma das Bíblias mais populares e mais utilizadas atualmente no Brasil, devido a sua ampla aceitação no meio Protestante. Baseada na A-RC, edição de 1898, a A-RA foi publicada em 1959 pela Sociedade Bíblica do Brasil, e é atualmente uma das mais usadas pelos protestantes brasileiros e bem aceita entre os católicos. Foi o resultado de treze anos de trabalho de cerca de trinta revisores, baseando-se no chamado Texto Crítico de manuscritos mais antigos do Hebraico e Grego que estavam disponíveis à época. Quanto à linguagem, procurou-se um equilíbrio entre a linguagem erudita e a popular. [21]

Apesar de se considerar que ela é baseada no texto de Almeida, ela se apresenta como uma nova e muito diferente tradução. Ela mantém o sabor clássico da Almeida antiga, mas substituiu as expressões que, em vez de sinais de erudição, se tornaram, com o tempo, arcaísmos, estando em alinhamento com novas evidências arqueológicas, evidências estas refletidas no Texto Crítico, diferindo, assim, da Almeida original.

O Novo Testamento da A-RA recebeu recomendação oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) da Igreja Católica Romana, fato sem precedentes – mesmo levando-se em conta que essa recomendação não tenha o reconhecimento do Vaticano, representando apenas uma declaração pastoral, não vinculativa para os fiéis católicos brasileiros, nem mesmo para os bispos individualmente considerados.

Essa versão também difere da versão anterior, a A-RC, pela fonte utilizada na tradução, especificamente no Novo Testamento, que, em vários lugares, coloca entre colchetes, relativa a determinados trechos do texto, a observação “não consta dos melhores manuscritos” – mas mantendo o texto ressalvado. Outras versões na língua portuguesa retiraram os referidos trechos e a observação entre colchetes, como é o caso da Nova Versão Internacional – NVI, da Nova Tradução na Linguagem de Hoje – NTLH, da Almeida Século 21 – A-21, entre outras.

Com relação ao Velho Testamento, o nome “Jeová”, para Deus, foi substituído pela palavra Senhor (em versalete). De resto, houve pouquíssimas mudanças no Velho Testamento em relação à A-RC.

A decisão de fazer uma revisão e atualização do texto da Bíblia de Almeida, no Brasil, foi tomada em 1943, cinco anos antes da fundação da Sociedade Bíblica do Brasil (na época, atuavam no Brasil duas sociedades bíblicas: a Britânica e Estrangeira e a Americana). A revisão do Novo Testamento, da qual participou a fina flor da erudição bíblica brasileira de então, foi concluída em 1951. A revisão do Antigo Testamento foi concluída em menos tempo, três anos (de 1953 a 1956), porque dois homens (Antonio de Campos Gonçalves e Paulo W. Schelp) trabalharam em regime de tempo integral, assessorados por um grande número de consultores e leitores externos. A Bíblia completa, na edição A-RA, foi publicada em 1959.

O propósito da revisão que resultou na A-RA era formatar um texto em “linguagem atualizada sem desnaturar certa linguagem bem antiga e tudo sem fugir ao original”. Isto significa que sua linguagem é bem menos arcaica e elitizada do que a da A-RC. Além disso, ela foi feita para ser lida em voz alta. De modo geral, a R-RA difere da A-RC em aproximadamente trinta por cento do texto.

Uma segunda edição de Almeida Revista e Atualizada foi publicada em 1993 [22].

Uma Bíblia que ganhei em Cuiabá, em Fevereiro de 1965, e que vem acrescida de uma “Chave Bíblica”, é a primeira Bíblia A-RA que eu adquiri. As duas passagens Bíblicas que eu mencionei na seção anterior (Gênesis 1:1-3 e João 3:16) têm pequenas variações na A-RA em relação à A-RC. Eu diria que as diferenças, nesses dois casos, são negligíveis (exceto, talvez, pelo finalzinho de João 3:16, em que a expressão “não pereça, mas” é omitida.

Eis como ela traduz Gênesis 1:1-4a:

“No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era boa”.

Em outro exemplo, eis como ela traduz João 3:16:

“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna.”

4. A Versão Almeida Revisada (A-R) (1967, 1974)

A Versão Revisada da tradução Almeida (também chamada de Versão Revisada de Acordo os Melhores Textos em Hebraico e Grego) foi lançada em 1967 no Rio de Janeiro pela Imprensa Bíblica Brasileira (divisão da Junta de Educação Religiosa e Publicações – JUERP, criada em 1907 pela Confederação Batista Brasileira) [23]. Os tradutores a consideram uma nova revisão da tradução de Almeida, sendo sua linguagem erudita (Português antigo e arcaico) baseada na Almeida Revista e Corrigida de 1898. A Versão Revisada, porém, está de acordo com os melhores manuscritos: os mais antigos e respeitados em exegese bíblica. Os proponentes da Versão Revisada a consideram uma tradução literal dos originais bíblicos.

A Versão Revisada foi realizada com o intuito de incorporar os avanços na escola eclética de crítica textual bíblica à Bíblia brasileira, e de atualizar vocabulário obsoleto, que era mal compreendido ou simplesmente não compreendido nem mesmo pelo leitor culto brasileiro.

Para o Novo Testamento, ela utilizou o texto Grego de Nestlé-Alland, 25ª edição.

A edição subsequente, de 1974, não sofreu alterações significativas.

A Versão Revisada foi sucedida pela Almeida Século 21, da mesma editora mas em parceria com outras editoras evangélicas brasileiras, sob coordenação de Luís Alberto Teixeira Sayão.

5. A Versão Almeida Corrigida Fiel (A-CF) (1994)

Esta é uma tradução para a língua portuguesa baseada na versão Almeida Revista e Corrigida e tem a característica de basear-se exclusivamente no chamado no “Texto Massorético” Hebraico para o Antigo Testamento e no chamado “Textus Receptus” Grego para o Novo Testamento, que foram aqueles usados por Almeida em sua tradução original, deixando de lado inclusões que aproveitavam novos manuscritos considerados parte do Texto Crítico [24].

Como se pode concluir, apenas deste primeiro parágrafo, esta tradução é favorecida pelos cristãos mais conservadores e fundamentalistas.

O método de tradução utilizado é a equivalência formal, que procura manter as classes gramaticais do original para a tradução: um verbo traduzido por um verbo, um substantivo por um substantivo, e assim em diante. Palavras adicionadas à tradução sem estarem presentes no texto original, com o objetivo de aumentar a clareza, são marcadas em itálico.

A postura oficial da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, que produziu e publica esta tradução, é defendê-la como a tradução mais fiel em língua portuguesa aos textos que ela considera mais fidedignos aos originais advindo daí o termo “Fiel”. Já a Sociedade Bíblica Trinitariana de língua inglesa (Trinitarian Bible Society), à qual a Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil está ligada, defende a versão da Bíblia King James como a mais fiel tradução da Bíblia na língua inglesa, sendo esta também traduzida a partir do “Texto Massorético” e do “Textus Receptus”. A Trinitarian Bible Society não é associada, porém, ao King-James-Only Movement internacional, e tem um ativo trabalho de tradução dos textos originais supracitados para diversas línguas através do globo.

A Almeida Corrigida Fiel foi publicada em 1994. Uma revisão foi lançada em 2007. No ano de 2011 uma nova edição foi publicada em consonância com o Novo Acordo Ortográfico que passou a vigorar nos países pertencentes à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

III. A Tradução Brasileira (TB) (1917, 2010)

Publicada como Bíblia completa em 1917, sob a coordenação de William Cabell Brown, a TB faz algum uso da tradução Almeida, mas esse uso é descrito como minoritário. O tipo de tradução é literal. A responsabilidade pela publicação foi da Sociedade Bíblica Americana até 1948 e é da Sociedade Bíblica do Brasil, desde então [25].

Originalmente chamada de Tradução Brazileira (assim, com “z”), a TB visava substituir a antiga versão Almeida de 1898 (a A-RC), oferecendo ao leitor uma tradução considerada bastante superior. Entre as características da tradução estão a literalidade e a fidelidade ao texto base, alcançada com a colaboração de vários eruditos brasileiros.

O trabalho de tradução tomou de 1902 a 1914, constituindo a comissão de tradução o Dr. Hugh Clarence Tucker (presidente, Metodista), os Revs. William Cabell Brown, Jr (coordenador, Episcopal), Eduardo Carlos Pereira (Presbiteriano Independente), Antônio B Trajano (Presbiteriano), John M Kyle (Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos), John R Smith (Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos), Alfredo Borges Teixeira (Presbiteriano Independente), Hipólito de Oliveira Campos (Metodista), Virgílio Várzea e Alberto Meyer (Nova Friburgo), entre outros. Colaboraram, também, Rui Barbosa, José Veríssimo e Heráclito Graça.

Os dois primeiros evangelhos foram editados em 1904, e, depois de alguma crítica e revisão, o Evangelho de Mateus saiu novamente em 1905. Todos os Evangelhos e o livro dos Atos dos Apóstolos foram publicados em 1906, e o Novo Testamento completo em 1908 (sob o nome de O Novo Testamento Traduzido em Português, Edição Brasileira). Publicada integralmente em 1917, essa tradução é erudita e bastante literal em relação aos textos originais.

A TB foi reeditada pela Sociedade Bíblica do Brasil, com atualizações ortográficas e gramaticais, entre outras, em 2010, também sob forma eletrônica.

É preciso registrar que a TB não foi do agrado de muitos leitores e igrejas, que preferiam manter aderência à antiquada, em termos linguísticos, versão Almeida. Uma das razões apontadas é a TB ter traduzido os nomes próprios hebraicos de uma maneira próxima àquela em que são pronunciados naquela língua, e não como usados tradicionalmente no Português brasileiro. Outras são a familiaridade pública com o texto de Almeida e o fato de a TB ser baseada em textos de tipo minoritário. Foram alegadas também deficiências de linguagem (hoje considerada bela), afastamento do literalismo e falta de revisões subsequentes. A TB é uma das versões criticadas pelos proponentes dos textos majoritariamente utilizados. Consequentemente, deixou de ser publicada por um longo período, basicamente toda a segunda metade do século XX, sendo retomada somente em 2010 pela Sociedade Bíblica do Brasil, quando foi reeditada, reimpressa e republicada.

Pela grande qualidade do literalismo de seu texto ela recebeu o apelido de Tira-Teima, sendo assim conhecida como TT.

Os exemplares ainda existentes dessa tradução em sua forma original são de difícil obtenção, sendo raros nos sebos (mercados livreiros de segunda mão) e alcançando preços relativamente altos para uma Bíblia moderna, embora ainda longe das faixas de preços praticadas por antiquários. Os exemplares ‘populares’ (capa dura) são mais comuns, menos bem conservados e mais volumosos que os ‘de luxo’ (encadernados em couro).

Entre suas peculiaridades:

O nome de Deus:

Uma das particularidades mais interessantes da Tradução Brasileira é o uso do nome de Deus no Velho. O nome Jeová aparece em todos os locais onde o texto hebraico adotado traz o Tetragrama YHVH. A Versão Brasileira não apresenta a forma JEHOVAH nas porções aramaicas da Bíblia, nem no Novo Testamento sendo traduzido estas partes com o título “Senhor”. Nas edições do início do século XX, a Versão Brasileira trazia o nome de Deus grafado ‘JEHOVAH’; na versão atual, ‘Jeová’.

Referências Marginais:

Trata-se de uma relação de referências marginais, ou referências cruzadas, que aparecem na coluna inferior de cada página dessa tradução da Bíblia. Desse modo, a Tradução Brasileira da Bíblia possibilita ao leitor uma comparação diligente das referências marginais e uma análise das notas acompanhantes que irão evidenciar a concordância da Bíblia como por inteira.

Coerência;

A Tradução Brasileira da Bíblia é coerente no uso das palavras “Seol, Cheol ou Sepultura” para transliterar o termo hebraico she’óhl, bem como no uso de “Hades” para o termo grego haí‧des, e “Geena” para o termo grego gé‧en‧na. (“Seol” é o equivalente hebraico da palavra grega “Hades” mas ambas não significam o mesmo que gé-en-na ).

As duas passagens Bíblicas que eu mencionei anteriormente (Gênesis 1:1-4a e João 3:16) têm pequenas variações em relação à A-RC (a única versão que existia antes dela). Eu diria que as diferenças, nesses dois casos, também são negligíveis.

Eis como ela traduz Gênesis 1:1-4a:

“No princípio, criou Deus o céu e a terra. A terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por cima das águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz. Viu Deus a luz que era boa”.

Em outro exemplo, eis como ela traduz João 3:16:

“Pois assim amou Deus ao mundo que deu seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”

IV. A Bíblia Viva e A Nova Bíblia Viva (1981, 2014)

Lançada em 1981, a Bíblia Viva foi a primeira edição brasileira da Bíblia a contar com linguagem simplificada e de fácil compreensão. Ela foi concebida de acordo com os princípios de tradução que serviram de base para a pioneira Living Bible (EUA, 1971), que é uma tradução que se caracteriza mais como uma paráfrase do que realmente como uma tradução no sentido mais convencional. Certamente a Bíblia Viva está muito longe de ser uma tradução que pretende ser literal [26].

O apelo da Bíblia Viva foi imediato, principalmente entre jovens e pessoas recém-convertidas ao Cristianismo, especialmente aqueles que desconheciam os termos eruditos e as construções sintáticas formais e convolutas das traduções bíblicas mais antigas. Para muitos leitores, abri-la passou a ser como respirar, pela primeira vez, o ar puro da compreensão do texto bíblico.

Duas razões motivaram uma revisão da Bíblia Viva, revisão que recebeu o título de Nova Bíblia Viva, lançada recentemente, em 2014.

Empreendida em comum acordo entre a Sociedade Bíblica Internacional e a Editora Mundo Cristão, brasileira, a nova edição reconhece, em primeiro lugar, que a língua portuguesa do Brasil é dinâmica, como todos os idiomas modernos, e muda de modo incremental e constante de acordo com os hábitos de uso do público que fala, lê, ouve e escreve. Percebeu-se que, a despeito dos esforços para produzir uma Bíblia que incorporasse a linguagem do povo, na Bíblia Viva havia elementos de linguagem que já eram ultrapassados no novo século e milênio. O que era moderno e comunicativo no início dos anos 1980 já não era necessariamente tão expressivo no Século 21. Sentiu-se, portanto, a necessidade de fazer um novo esforço, agora para trazer a Bíblia efetivamente para o Século 21.

Em segundo lugar, sentiu-se a necessidade de trazer algumas opções semânticas e sintáticas da primeira edição a um alinhamento maior com as línguas originais das Escrituras. Como resultado, a Nova Bíblia Viva continua tão simples e fácil de entender como antes, mas agora está ainda mais fiel aos manuscritos originais.

Nesta nova versão revisada, reconfigurada para os dias atuais, a diagramação também é mais moderna. Na edição anterior, a indicação de versículos seguia a lógica da unidade de pensamento. Em vez de indicar versículos individuais, era feita a sinalização de blocos de versículos (ex.: 1-4, 12-15). Na Nova Bíblia Viva, a divisão em parágrafos adequados foi mantida, mas foram inseridos os números de versículos de acordo com a divisão tradicional. Houve também a escolha de uma nova fonte, sem serifa, para maximizar a quantidade de texto por página e ao mesmo tempo tornar mais agradável a experiência da leitura.

V. A (Nova) Tradução para a Linguagem de Hoje (TLH/NTLH) (1988)

A história da Bíblia na Linguagem de Hoje começou, no Brasil, em 1973, sob os auspícios da Sociedade Bíblica Brasileira, quando foi publicado o Novo Testamento. Antes disso, já haviam sido publicadas traduções semelhantes em outras línguas, como espanhol (“Dios Habla Hoy”) e inglês (“Good News Bible”, depois chamada de “Today’s English Version”). Estas são traduções que seguem o princípio de equivalência dinâmica ou funcional, em que o tradutor não adota uma “consistência cega”, ou seja, leva em conta as palavras do original, mas não esquece o que elas significam dentro de diferentes contextos.

Além de ser uma tradução dinâmica, a Bíblia na Linguagem de Hoje é, também, uma tradução em “língua comum”. Não se trata, em si, de linguagem simples (embora acabe sendo isso também), mas da língua que é comum à maioria dos falantes do português do Brasil, hoje.

É a linguagem que os mais simples conseguem entender (embora não seja vulgar ou gramaticalmente errada), e que os eruditos podem aceitar (por ser nobre e correta). A língua comum é compreensível à maior parte da população brasileira, tanto em termos geográficos (Norte a Sul, Leste a Oeste) quanto educacionais (das pessoas mais simples às mais cultas).

Na prática isto significa que, enquanto uma tradução como a de Almeida faz uso de mais de 8 mil termos diferentes, na Bíblia na Linguagem de Hoje esse número cai para a metade: em torno de 4 mil vocábulos diferentes, em toda a Bíblia. Isto faz com que a tradução seja clara e fácil de entender para a maioria dos falantes do português no Brasil.

Acima de tudo, a Tradução na Linguagem de Hoje foi feita, não para os líderes e pastores das igrejas, mas para pessoas que não tem o hábito de ler e que tiveram pouco ou nenhum contato com a Bíblia. É a ferramenta ideal para a evangelização.

Depois do lançamento do Novo Testamento, em 1973, a comissão de tradução deu continuidade à tradução do Antigo Testamento, que foi publicada em 1988. Logo em seguida, a comissão tratou de fazer nova revisão do texto, especialmente do Novo Testamento. Assim, em 2000 foi lançada essa edição revisada, com o nome de Nova Tradução na Linguagem de Hoje. [27]

Do ponto de vista operacional, a versão / tradução foi desenvolvida pela Comissão de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, num processo que tomou doze anos de pesquisas, buscando manter o texto com significado mais próximo aos textos originais – Hebraico e Grego. A lançada em 1988 sofreu uma revisão tão grande nos anos que se seguiram que a versão publicada em 2000 recebeu novo nome: Nova Tradução em Linguagem de Hoje – NTLH.

A NTLH é uma tradução da Bíblia em linguagem moderna e entendível em Língua Portuguesa. Lançada no ano 2000 pela Sociedade Bíblica do Brasil, essa tradução da Bíblia adota uma estrutura gramatical e linguagem mais próximas da utilizada por pessoas de baixa escolaridade no Brasil.

Pela linguagem mais simples e coloquial, a NTLH é voltada às pessoas que ainda não tiveram ou que tiveram pouco contato com a leitura bíblica clássica. De modo que se tornou uma ferramenta de evangelização por possuir um texto mais claro e facilmente compreensível, por não primar pela linguagem clássica que geralmente norteia essas traduções. A nova versão, contudo, não utiliza gírias ou regionalismos, fator que, segundo a Comissão de Tradução, não permitiu que se perdesse o estilo bíblico.

Os princípios seguidos nesta revisão foram os mesmos que nortearam o trabalho da tradução na Linguagem de Hoje. A tradução de João Ferreira de Almeida e também outras boas traduções existentes em português seguiram os princípios da tradução de equivalência formal. Já a NTLH, norteou-se pelos princípios de tradução de equivalência funcional ou dinâmica.

De todo modo, é uma tradução bastante útil por aproximar o texto bíblico da linguagem geralmente falada pelas pessoas no dia a dia [28].

As duas passagens Bíblicas que eu mencionei anteriormente (Gênesis 1:1-4a e João 3:16) têm variações agora mais significativas em relação à A-RC, à A-RA e à TB. Mas eu ainda diria que as diferenças, nesses dois casos, são mais adjetivas do que substantivas: afetam mais a forma ou o estilo do que o conteúdo ou o sentido.

Eis como ela traduz Gênesis 1:1-4a:

“No começo Deus criou os céus e a terra. A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar e o Espírito de Deus se movia por cima da água. Então Deus disse: – Que haja luz! E a luz começou a existir. Deus viu que a luz era boa”.

Em outro exemplo, eis como ela traduz João 3:16:

“Porque Deus amou o mundo tanto, que deu o seu único Filho, para que todo aquele que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna.”

VI. A Nova Versão Internacional (NVI) (2000)

A Nova Versão Internacional foi publicada, completa, em 2000. É um tipo de tradução que utiliza a chamada Equivalência Formal e Dinâmica. A Editora que a publica no Brasil é Vida, mas o copyright pertence à Sociedade Bíblica Internacional [29].

A NVI é uma das mais recentes traduções da Bíblia. Foi publicada pela Sociedade Bíblica Internacional, hoje denominada Biblica, sediada em Colorado Springs, CO, EUA.

Traduzida a partir dos textos originais em Hebraico e Grego, a NVI foi produzida com os seguintes objetivos fundamentais:

Clareza: O texto foi traduzido de forma que pudesse ser lido pela população em geral sem maiores dificuldades, porém sem ser demasiadamente informal. Arcaísmos, por exemplo, foram banidos, e regionalismos, evitados.

Fidelidade: A tradução deve ser fiel ao significado pretendido pelos autores originais.

Beleza de estilo: O resultado deve permitir uma leitura agradável, e uma boa sonoridade ao ser falado em público.

O projeto de tradução para a língua portuguesa começou em 1990, com a reunião da comissão da Sociedade Bíblica Internacional, sob coordenação do linguista e hebraísta, Rev. Luiz Sayão. Inicialmente foi publicada uma versão do Novo Testamento, em 1991. O projeto foi totalmente patrocinado pela Sociedade Bíblica Internacional, ainda que o produto fosse difundido e vendido por outras instituições. A editora Zondervan, tradicional casa publicadora de linha reformada americana, de origem holandesa, conhecida publicadora de Bíblias por décadas, como a King James Version, a Berkeley Version, a Amplified Bible e, por último, a New International Version (NIV, versão internacional da NVI), teve participação na divulgação e distribuição da NVI, ainda que não em sua elaboração.

A tradução definitiva e completa em Português foi publicada em 2000, a partir das línguas originais, com base na mesma filosofia tradutológica da (NIV).

A NVI tem um perfil Protestante, e procura não favorecer nenhuma denominação em particular. É teologicamente equilibrada e procura usar a linguagem do Português atual.

O método de tradução da Nova Versão Internacional é semelhante ao da NIV: um nível de tradução intermediário entre a equivalência formal e a dinâmica. Quando o texto pode ser traduzido mais literalmente, é utilizada equivalência formal. Contudo, se o texto traduzido literalmente for difícil de entender para um leitor comum, então é feita uma tradução mais funcional, procurando trazer o significado pretendido no original para um Português natural e compreensível. Por esse motivo, em geral a NVI é mais “dinâmica” que as traduções de Almeida, porém mais “literal” que a Nova Tradução na Linguagem de Hoje.

Apesar das semelhanças entre a NVI e a NIV, a versão brasileira não é uma tradução da língua inglesa, mas sim dos idiomas originais.

Notas de rodapé são frequentes na NVI. Elas trazem explicações de todo tipo e em alguns casos apresentam traduções alternativas (inclusive qual seria a tradução literal).

Todos os tradutores da NVI são aderentes ao Pacto de Lausanne: “Afirmo a divina inspiração, fidelidade e autoridade de todas as Escrituras do Antigo e do Novo Testamento como a única Palavra escrita de Deus, sem erro em tudo o que afirma, sendo a regra infalível de fé e prática.”

NOTAS:

[1] A linha mestra para este capítulo introdutório foi dada por dois artigos da Wikipedia Brasil. Primeiro, o artigo “Traduções da Bíblia em Língua Portuguesa”, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Traduções_da_Bíblia_em_língua_portuguesa, e, segundo, o início do artigo “Almeida Revista e Corrigida”, em  https://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Revista_e_Corrigida.

[2] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Crítica_bíblica e https://pt.wikipedia.org/wiki/Crítica_textual. Vide, abaixo, a referência na Nota 15.

[3] Para um interessante artigo sobre pontos altos da história da tradução da Bíblia fora do Brasil e não envolvendo o Português, vide o artigo “Destaques da História da Tradução”,  no site da Sociedade Bíblica do Brasil, em http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/destaques-da-historia-da-traducao/. Esse artigo discorre sobre a Septuaginta (tradução do Velho Testamento para o Grego), a Vulgata (tradução da Bíblia inteira do Hebraico e do Grego para o Latim, a tradução da Bíblia por Lutero para o Alemão, a tradução da Bíblia para o Inglês ordenada pelo Rei Tiago (King James) da Inglaterra, e a tradução da Bíblia para o Espanhol conhecida pelo nome de Reina Valera. Essas cinco traduções da Bíblia talvez sejam as cinco mais importantes traduções da Bíblia já realizadas em toda a história.

[4] Na verdade, foi uma visita à sede da SBB em Barueri, em 21 de Dezembro deste ano (2015), a convite de seu presidente, meu grande amigo, há 55 anos (e colega no Instituto José Manuel da Conceição de 1961 a 1963), Rev. Assir Pereira, e minha confusão para fazer sentido das diversas traduções e edições da Bíblia disponíveis lá, que me motivaram a escrever este trabalho. Desde já observo que não vou discutir as chamadas “Bíblias Especializadas”, isto é, dirigidas a um público específico, como as Bíblias de Estudo, A Bíblia do Obreiro, A Bíblia da Mulher, A Bíblia do Adolescente, etc. Qualquer leitor que já tenha passado pelas lojas de material religioso cristão (especialmente protestante) da Rua Conde de Sarzedas, em São Paulo, sabe muito bem do que estou falando. Há uma multidão de edições diferentes e diferenciadas da Bíblia lá.

[5] Vide http://www.sbb.org.br/release/app-minha-biblia-sbb/. Vide também a explicação do aplicativo em formato .pdf em http://www.sbb.org.br/wp-content/uploads/2015/09/07_29_app-minha-biblia-sbb.pdf.

[6] Na realidade desconheço se a marca “Almeida” tem “appellation contrôlée” por alguma instituição. Em outros palavras, se eu fizer uma nova tradução da Bíblia e baseá-la, em algum sentido, em uma tradução Almeida “legítima”, precisarei da autorização de alguma instituição para chamar minha tradução de, digamos, “Almeida Revisada e Melhorada” (A-RM)?

[7] Vide as referências na Nota 1.

[8] O artigo sobre João Ferreira de Almeida na Wikipedia Brasil (https://pt.wikipedia.org/wiki/João_Ferreira_de_Almeida) é tendencioso e contraditório e, portanto, totalmente inconfiável. De um lado afirma que Almeida era padre quando saiu de Portugal (aos 14 anos!) e que continuou padre durante toda sua vida. Por outro lado, repete as afirmações, mais confiáveis, que coloco no corpo deste texto, que assinalam que ele era originalmente católico, sobrinho de um padre, podendo até ter estudado em escolas católicas até os 14 anos, mas que nunca foi padre, e que muito cedo se converteu ao Protestantismo, afiliando-se à Igreja Reformada Holandesa nas ilhas do Sul da Ásia. Por fim, o artigo sobre Almeida da Wikipedia Brasil tenta (sem sucesso) compatibilizar as informações contraditórias afirmando (falsamente) que a Igreja Reformada Holandesa era, na época, muito mais próxima da Igreja Católica do que do Igreja Reformada (de origem suíça). O artigo sobre Almeida na Wikipedia USA é muito mais confiável e começa dizendo, com todas as letras: “João Ferreira Annes de Almeida  . . . (1628–1691) was a Portuguese Protestant pastor” [João Ferreira Annes de Almeida . . . (1628-1691) era um pastor Protestante Português]; vide https://en.wikipedia.org/wiki/João_Ferreira_de_Almeida. A informação de que ele era pastor vai além do que me permito dizer. É preciso, por outro lado, registrar que, por ocasião do Sínodo de Dort ou Dordrecht (1618-1619) já não havia qualquer dúvida de que a Igreja Reformada Holandesa não só não era católica mas era radicalmente calvinista. Nessa ocasião, os seguidores de Jacob Arminius (os Arminianos, como vieram a ser chamados), que se consideravam calvinistas, mas não endossavam os cinco princípios representados pela palavra TULIP, que sintetizavam o calvinismo mais tradicional, foram expulsos da Igreja. Vide a esse respeito https://pt.wikipedia.org/wiki/Sínodo_de_Dort. Também é oportuno registrar que em 1619 os Holandeses capturaram Jakarta (à qual deram o nome de Batávia) e tornaram o que é hoje a Indonésia uma colônia holandesa. Jakarta passou a ser a sede da Companhia Holandesa das Ilhas Orientais no Oriente (a sede principal continuando em Amsterdam). Isso explica porque um português convertido ao Protestantismo, não encontrando ambiente propício no eminentemente católico Portugal, possa ter escolhido ir viver na Protestante Indonésia. Jakarta fica, como é sabido, na Ilha de Java, que, por sua vez, pertence ao conjunto de ilhas que constituem a Indonésia, e é hoje a capital desse país. Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_Holandesa_das_Índias_Orientais.

[9] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Teodoro_de_Beza.

[10] Se Almeida realmente se tornou um pastor Protestante, pode ter sido em um seminário reformado que ele tenha adquirido esse conhecimento. Mas acho duvidoso que ele tenha sido um pastor. Vide a discussão da Nota 7.

[11] Chama-se hoje de “Baixa Crítica” a tentativa de fazer crítica textual dos manuscritos bíblicos com o objetivo de chegar, tanto quanto possível, próximo do texto original, diante do fato de muitos desses manuscritos, muitas vezes, conflitam entre si. O adjetivo “Baixa” veio a ser empregado para designar esse tipo de crítica para contrasta-la com a chamada “Alta Crítica”, que envolvia o estudo da composição literária dos livros bíblicos, sua autoria, data, ocasião e propósito, bem como sua relação uns com os outros, as circunstâncias históricas (o “Sitz im Leben”) em que emergiram, os fatores históricos que governaram sua transmissão, sua relação com outros registros históricos existentes fora da Bíblia, seu agrupamento em unidades maiores (como o Pentateuco ou os Evangelhos Sinóticos), e, finalmente, sua escolha para fazer parte do cânon.

[12] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Texto_massorético.

[13] Vide: https://pt.wikipedia.org/wiki/Textus_Receptus.

[14] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Reina-Valera.

[15] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Texto_Crítico. Vide também acima as referências na Nota 2.

[16] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Bíblia_de_Lutero.

[17] Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Bíblia_do_Rei_Jaime.

[18] Vide a referência contida na Nota 14.

[19] As informações contidas nesta seção foram baseadas principalmente no artigo “Almeida Revista e Corrigida”, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Revista_e_Corrigida. Vide também https://www.bible.com/pt/versions/212-arc-almeida-revista-e-corrigida. Também utilizei diversas edições da A-RC publicadas no Brasil, que sempre contêm uma Introdução que explica e contextualiza aquela edição.

[20] Vide http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/as-traducoes-da-sbb/almeida-revista-e-corrigida/.

[21] As informações contidas nesta seção foram baseadas principalmente no artigo “Almeida Revista e Atualizada”, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Revista_e_Atualizada. Também utilizei diversas edições da A-RA publicadas no Brasil, que sempre contêm uma Introdução que explica e contextualiza aquela edição.

[22] Para as informações dos últimos parágrafos vide http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/as-traducoes-da-sbb/almeida-revista-e-atualizada/.

[23] As informações desta seção foram baseadas principalmente no artigo “Versão Revisada Segundo os Melhores Textos”, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Versão_revisada_segundo_os_melhores_textos.

[24] As informações desta seção foram baseadas principalmente no artigo “Almeida Corrigida Fiel”, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Corrigida_Fiel.

[25]    Vide https://pt.wikipedia.org/wiki/Tradução_Brasileira e http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/as-traducoes-da-sbb/traducao-brasileira/.

[26] As informações desta seção foram baseadas principalmente em artigos-apresentação disponíveis em http://www.mundocristao.com.br/produto/750, https://www.lojasemear.com.br/item/Nova-Biblia-Viva.html e também  http://www.espacodocristao.com.br/biblia/jovens/nova-biblia-viva/.

[27] Os parágrafos anteriores dependem de material encontrado em http://www.sbb.org.br/a-biblia-sagrada/as-traducoes-da-sbb/nova-traducao-na-linguaguem-de-hoje/.

[28] As informações desta seção foram baseadas principalmente no artigo “Nova Tradução na Linguagem de Hoje”, em  https://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Tradução_na_Linguagem_de_Hoje.

[29]    As informações desta seção foram baseadas principalmente em artigo “Nova Versão Internacional”, disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Nova_Versão_Internacional.

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Escrito em São Paulo e Salto, SP, de 21 a 25 de Dezembro de 2015, e publicado no Dia de Natal de 2015, por Eduardo Chaves, Professor de História da Igreja da Faculdade de Teologia de São Paulo da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (FATIPI).