Somos Nós Tão Reformados Como Imaginamos?

[Artigo publicado em O Estandarte, jornal oficial da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, Outubro de 2016, p.27, em comemoração aos 499 anos da Reforma Protestante, que se comemoram neste dia 31 de Outubro de 2016]

Qual a principal contribuição da Reforma que, importante no século 16, ainda hoje é igualmente relevante?

Lutero, monge se transformando em teólogo, perguntava-se o que deveria fazer para ser salvo. A resposta da Igreja Católica não mais o convencia. E percebeu que, para encontrar uma resposta mais convincente, teria de responder, antes, uma questão mais fundamental e mais ampla, mais epistemológica do que teológica:

“Com base em que eu decido o que devo crer e como devo viver como cristão?”

A grande contribuição e o maior mérito de Lutero estão em ter levantado claramente essa importante questão e ter dado a ela uma resposta ousada e radical.

Lutero conhecia a resposta da Igreja Romana de sua época a essa questão: Não é você que decide: é a Igreja; e a Igreja decide com base na Bíblia e na Tradição. A Tradição incluía as decisões aprovadas pelos grandes Concílios, as Bulas e Encíclicas Papais, o Direito Canônico, etc..

Mas Lutero insistia. E se não for claro o que a Bíblia e a Tradição dizem? E se a Bíblia ou a Tradição ensinar uma coisa num lugar e algo diferente, em outro? E se a Bíblia ensinar uma coisa e a Tradição, outra? Em casos assim, quem decide como interpretar a Bíblia e a Tradição e escolher a resposta certa?

Lutero conhecia a resposta da Igreja Romana de sua época também a essa questão: Quem decide é a Igreja, através de sua Hierarquia, em última instância o Papa.

Lutero reconhecia que a resposta da Igreja Romana fazia certo sentido. Afinal de contas, foi a Igreja que definiu o cânon do Novo Testamento; que decidiu quais resoluções de quais Concílios mereciam ser homologadas; que sempre escolheu a interpretação correta da Bíblia e da Tradição e a forma de compatibiliza-las.

Mas em seu tratamento da questão das Indulgências a Igreja Romana exagerou na dose – e isso levou Lutero a questionar a sua autoridade, incluindo a autoridade dos Concílios e do Papa. Uma igreja que disponibiliza lugares no céu para quem se disponha a comprar um pedaço de papel aqui na terra não pode estar certa… Suas dúvidas se expandiram: uma igreja que ensina que você está salvo se frequentar a missa, confessar-se, cumprir as penitências impostas, valer-se dos sacramentos como meios de graça, etc., independentemente de sua fé e de sua conduta moral, não pode estar certa…

Lendo a Bíblia, na intimidade de sua cela monacal, Lutero gradualmente concluiu que ele, e as demais pessoas, não precisavam fazer nada para ser salvos, porque o que era necessário fazer Cristo já havia feito. A salvação era um presente, um “dom gratuito” de Deus, originada em sua graça. Daí vem o sola gratia. Mas um presente precisa ser aceito para surtir efeito – e a aceitação vem pela fé. Daí o sola fides.

A partir dessa convicção, Lutero encontrou a resposta para a pergunta epistemológica, mais fundamental e mais ampla: Quem diz isso? A Bíblia! Daí vem o sola scriptura.

Mas… a Bíblia interpretada por quem?

Aqui vem a resposta ousada e revolucionária de Lutero: A Bíblia interpretada por mim, por cada um dos crentes, porque, segundo a Bíblia, todos somos sacerdotes, e, como tais, temos pleno direito de decidir, cada um de nós por si, sem depender de mais ninguém, mas com a iluminação do Espírito Santo, o que a Bíblia de fato ensina em questões de fé e conduta.

A resposta de Lutero a essa questão solapou a autoridade (que ela pretendia exclusiva) da Igreja Romana. A única fonte de autoridade não é a Igreja, é a Bíbliamas cada um decide por si (com a iluminação do Espírito Santo) o que a Bíblia diz e ensina, sem necessidade de concílios e do Papa.

Foi com base em sua resposta a essa questão que Lutero, diante de autoridades políticas e eclesiásticas (entre as quais estava o enviado especial do Papa), teve coragem de dizer, na Dieta de Worms (1521), em que se decidia o seu destino, que não se retrataria do que havia dito e escrito. Que bom que alguém preservou suas magníficas palavras:

A menos que eu seja convencido, pela Escritura e pela razão, de que estou errado (pois não reconheço a autoridade de papas e concílios, porque eles se contradizem uns aos outros), minha consciência me diz para ficar sujeito à Palavra de Deus. Ir contra a consciência não é nem certo, nem seguro. Por isso, não posso e não devo me retratar de nada. Aqui estou, aqui permaneço, pois nada mais há que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.”

Essa tese de Lutero é profundamente subversiva, mesmo que Lutero, os luteranos e as demais alas da reforma histórica ou magistral não a tenham levado muito a sério.

Primeiro, a ideia de que cada um tem direito de interpretar a Bíblia como achar certo solapa (antes do fato) a tese de que os protestantes devam formular confissões que oficialmente interpretam a Bíblia para eles.

Segundo, a ideia de que cada um dos crentes é um sacerdote pleno aponta na direção oposta àquela que levou a propostas sofisticadas e rígidas para a organização da igreja e a elaboração da liturgia do culto, sugerindo, quem sabe, um modelo de comunidades eclesiais simples, com múltiplas formas de organização e cultos bem mais livres e espontâneos, em que qualquer um pudesse dar testemunho de como “a palavra” o havia transformado.

Terceiro, que necessidade há de um clero diferenciado e profissional? Se todos somos sacerdotes, não há por que separar alguns para pregar a palavra, ministrar os sacramentos, instruir os demais, atender aqueles que precisam de apoio espiritual, psicológico ou mesmo material, gerir a comunidade. Isso pode ser feito de forma natural por todos, em rotatividade, ou por qualquer um dos irmãos que se sinta movido a tal.

Quarto, num contexto em que se reconhece a liberdade do crente e se pratica o amor cristão, as ideias anteriores não precisam necessariamente conduzir a cismas e divisões, mas, pelo contrário, podem levar a uma comunidade cristã livre, diversificada, inclusiva, tolerante…

A história posterior do Protestantismo mostra que este não tomou as ideias de Lutero suficientemente a sério. Nem os próprios luteranos. Menos ainda nós, calvinistas.

Ao completarmos 500 anos da data em que os protestantes celebram a ousadia e a coragem de Lutero, data a ser celebrada daqui a um ano (em 31/10/2017), não teria chegado a hora de nos tornarmos, como ele, mais ousados e corajosos?

Eduardo Chaves

Salto, 31 de Agosto de 2016
Transcrito aqui em 25 de Outubro de 2016, depois de publicado em O Estandarte.

Hume: O Crítico da Religião

[ O artigo “Hume: O Crítico da Religião” foi publicado no Suplemento Cultural de O Estado de São Paulo, Vol II, em 17 de Outubro de 1976, São Paulo, SP ]

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A religião (assim como, mutatis mutandis, também a ciência, por exemplo) por ser estudada e analisada a partir de várias perspectivas. Como fenômeno social que é, pode ser objeto de estudo por parte da sociologia. Como algo que, positiva ou negativamente, afeta um grande número de pessoas em suas estruturas psíquicas básicas, cai também dentro do domínio da Psicologia (Individual e Social). E assim por diante. Com tudo, guase todas as religiões, já extintas ou ainda existente, possuem um “corpo doutrinário”, isto é, um conjunto de proposições e enunciados (“doutrinas”) que deve, totalmente ou pelo menos em sua maior parte, ser objeto de crença por partes dos adeptos e seguidores. A análise crítica deste elemento proposicional encontrado em quase todas a religiões é de natureza predominantemente filosófica, caindo dentro do âmbito da chamada filosofia da religião.

Embora David Hume (1711-1776) tem escrito um livro intitulado A Historia Natural da Religião (1757), no qual propõe sua teoria a respeito das origens das religiões e discute vários fatores (sociais, psicológico etc.) que levam a maioria das pessoas a assumir uma postura religiosa, sua maior preocupação com a religião se definiu em termos de uma crítica filosófica às principais tentativas feitas nos séculos XVII e XVIII de se justificar racionalmente as doutrinas centrais do cristianismo. Esta crítica se encontra em sua maior parte, nos capítulos X e XI do seu livro Uma Investigação acerca do Entendimento Humana (1748) e em um de seus livros mais famosos, Diálogos acerca da Religião Natural (publicado somente em 1779, após sua morte), embora em seu primeiro o mais importante livro, Um tratado da Natureza Humana (1739-1740), já houvesse vários índices do que estava por vir.

Grande parte dos teólogos e filósofos dos séculos XVII e XIII afirmavam – ecoando São Tomás de Aquino – que há somente duas maneiras de se justificar doutrinas religiosas ou posições teológicas: através de um apelo à razão humana ou através de um apelo à revelação (isto é, basicamente, um apelo à Bíblia). John Locke, por exemplo afirmou isto, defendendo sua posição no livro IV de Um Ensaio acerca do Entendimento Humano. Estas duas maneiras, porém, se reduziam, basicamente, a uma só, a primeira, para grande parte dos filósofos e teólogos deste período pela seguinte razão: se alguém procura justificar uma doutrina religiosa ou uma posição teológica através de um apelo o fato de ela ver sido revelada por Deus na Bíblia, pode se muito bem redargüir afirmando não haver razões para aceitar a Bíblia como revelação divina. Para que o apelo à Bíblia possa ser persuasivo, é necessário que seja acompanhado de argumentação que mostre ser a Bíblia realmente revelação divina (“a palavra de Deus”, como se costuma dizer).

A resposta geralmente dada no período em questão, a este tipo de problema, afirmava que o caráter revelacional da Bíblia, sua origem divina, era comprovada (“garantindo”, dizia-se) pelos inúmeros que supostamente acompanharam estas revelações. Já São Tomás quatro séculos antes afirmava que “a autoridade da escritura é divinamente confirmada por milagres” (Summa Contra Gentiles, I: 9: 2), e John Locke reitera: “Os santos de antigamente ao receberem revelações divinas, … receberam também sinais externos que tinham o propósito de convencê-los de que Deus era o autor destas revelações” (Ensaio, IV; 19: 15). Na ausência destes, sinais nada poderia servir para distinguir revelações divinas de fantasias alucinatórias. Obviamente, Locke está pressupondo que a crença na ocorrência desses milagres seja racionalmente justificável.

– “A razão”, afirma ele “deve ser nosso juiz supremo e nosso guia em tudo” (Ensaio, IV: 19: 14) – , pois de outra forma o argumento não seria muito convincente.

Foi com este cenário em vista que Hume escreveu sua obra de crítica à religião. Sistematizando os resultados desta crítica teremos:

a) em primeiro lugar Hume apresentou um argumento objetivamente mostrar a irracionalidade de crença na ocorrência de milagres, eliminando assim a suposta justificação racional para aceitação da Bíblia como revelação divina;

b) em segundo lugar Hume procurou mostrar que os tradicionais argumentos para existência de Deus (o argumento ontológico, o cosmológico, e o teológico, ou do desígno) eram inconvincentes e que, portanto, não existia justificação lógica e racional para se acreditar que Deus – O Deus do cristianismo tradicional – existisse: a crença em sua existência seria, portanto, gratuita. É interessante notar que nem Locke nem outros defensores do cristianismo deste período, atentaram à natureza circular desta argumentação: a ocorrência de milagres atesta, segundo eles, a genuinidade da Bíblia como revelação divina; com tudo só sabemos da ocorrência desses milagres através de relatos encontrados na própria Bíblia!

c) em terceiro lugar ao discutir o problema do mal Hume sugeriu que a existência do sofrimento no mundo é incompatível com a existência do Deus do cristianismo tradicional, isto é, com a existência de um ser que tudo sabe e pode e que também é infinitamente bom. Se este argumento for aceito a crença em Deus deixa de ser simplesmente gratuita e torna-se irracional a menos que se negue a existência do mal e do sofrimento do mundo. Assim sendo, após tentar destruir os argumentos para existência de Deus Hume apresenta um argumento para não existência desse mesmo Deus.

d) Em quarto lugar Hume deu, em A História Natural da Religião, sua resposta à pergunta que naturalmente vem à mente do leitor: se a crença em Deus é na melhor das hipótese, gratuitamente, e, a hipótese pior, irracional, porque é que tanta gente tem acreditado e ainda acredita em Deus?

Por razão de espaço, e também de relevância, omitiremos nesta apresentação a discussão que um faz dos argumentos tradicionais para existência de Deus, embora a maior parte dos Diálogos seja dedicada a este problema. Omitiremos, também, sua análise das origens e das causas da crença em Deus. Falaremos brevemente sua discussão de milagres e do problema do mal, concluindo com algumas observações a respeito do significado histórico de sua crítica à religião.

Ao discutir milagres Hume não procura mostrar como muitos outros críticos do cristianismo tentaram fazê-lo, que os milagres de que a Bíblia não podem ter ocorrido, por serem impossíveis. Seu principal argumento procura mostrar que, mesmo que milagres sejam possíveis, e ainda que tenham realmente ocorridos, uma pessoa racional, que proporciona suas crenças à evidências existentes para elas nunca terá razões suficientemente fortes para acreditar que realmente ocorrido. Em outras palavras: milagres não são impossíveis são meramente incríveis.

O argumento de Hume é baseado no fato de que um evento, para qualificar como milagre, precisa ser o que ele chama de uma “violação das leis da natureza”. Leis da natureza são, para Hume, generalizações baseadas em instâncias uniformes (isto é, sem exceção) de conexões causais observadas. Se vemos um evento de um tipo “A” constantemente acompanhado por um evento de um outro tipo “B” e se nossa experiência desta conjunção é uniforme, i. e., não admite exceção então teremos uma “lei universal”: cremos que sempre que tivermos um evento tipo “A” um evento do tipo “B” acontecerá. Ou, para usar as palavras do próprio Hume. “Há algumas causa que são inteiramente uniformes e constante na produção de seus efeitos, e nenhuma instância foi até agora encontrada quem indicasse qualquer irregularidade em sua operação. O fogo sempre queimou, e a água sempre sufocou, a toda criatura humana. A produção de movimento através de impulsos e gravidade é uma lei universal que até agora não admitiu nenhuma exceção” (Investigação, cap. VI).

Se somos, pois, informados do acontecimento de um milagre, i.e., da ocorrência de um evento que contraria toda a nossa experiência até o presente – digamos que sejamos informados de que uma pessoa, já morta e enterrada há alguns dias, esteja novamente viva -, devemos proporcionar nossa crença à evidência. De um lado temos evidência uniforme de que pessoas, uma vez morta e enterrada permanecem mortas. De outro lado, temos experiências de que relatos e testemunhos que nos são comunicados freqüentemente são inexatos ou mesmo falsos. Pessoas às vezes deliberadamente, nos tentam enganar, dizendo-nos mentira. Outras vezes estas pessoas estão, elas próprias, enganadas a respeito do que relatam, e, conseqüentemente, nos dizem mentiras, embora não intencionalmente. Visto, pois, que nossa experiência tem mostrado, até aqui, que mortos não ressuscitam, e também nos tem mostrado que pessoas muitas vezes são enganadas ou tentam nos enganar a respeito do que relatam, é muito mais provável ser por algum motivo falso o que nos esteja sendo relatado do que haver acontecido algo sem nenhum precedente em nossa experiência. Conseqüentemente Hume concluiu: “Nenhum testemunho é suficientemente forte para estabelecer a ocorrência de um milagre, a menos que o testemunho seja de tal natureza que sua falsidade seja ainda mais miraculosa do que o fato que ele procura estabelecer” (Investigação, cap. X).

O problema do mal, como ele é colocado no capítulo X dos Diálogos, se apresenta, de forma sistematizada, da seguinte maneira:

(1) Deus é um ser onipotente, onisciente infinitamente bom;

(2) Um ser onipotente e onisciente pode eliminar todo mal e sofrimento do mundo, e sabe como fazê-lo;

(3) Um ser infinitamente bom deseja eliminar todo o mal e sofrimento do mundo;

(4) Se Deus existe, não há mal e sofrimento no mundo;

(5) No mundo há mal e sofrimento;

(6) Conseqüentemente Deus não existe.

Do ponto de vista forma, não resta a menor dúvida de que este argumento é impecável. Resta saber se suas premissas são verdadeiras. A primeira nada mais é do que parte da definição tradicional do Deus do cristianismo. A segunda premissa é aceita pela maioria dos teólogos. A quinta é indiscutível. A quarta segue das três primeiras. A mais vulnerável das premissas é, portanto, a terceira. Se esta for rejeitada, a quarta premissa também terá que sê-lo, e o argumento inteiro cai por terra.

Em suas tentativas de refutar esse argumento a grande maioria dos teólogos tem se baseado em consideração da seguinte natureza. Não é verdade, dizem eles, que um ser infinitamente bem queira, necessariamente, eliminar todo o mal e sofrimento da face da terra. Isto porque freqüentemente os males e sofrimentos que ocorrem são resultantes de bens de valor tão grandes que, na contagem final, ver-se-á que é preferível que estes bens existentes mesmo com os males e sofrimentos que podem decorrer deles conseqüentemente, um ser infinitamente bom não desejará eliminá-lo a existência do livre arbítrio humano é geralmente considerado um desses bens. Por outro lado argumenta-se também, males e sofrimentos freqüentemente resultam em bens de alto valor, que deixariam de existir se não houvessem estes males e sofrimentos. Em um mundo sem dor não haveria compaixão, caridade, solidariedade. Em um mundo em que ninguém jamais encontrasse dificuldades não haveria coragem, heroísmo, etc. Um ser infinitamente bom pode muito bem pesar estas virtudes acima de todas as outras, e não deixar, portanto, eliminar os males e sofrimentos que as trazem à tona. Assim por diante teólogos tem oferecido teodicéas (“justificações de Deus”) que procura explicar porque Deus teria permitido a existência de males e sofrimentos no mundo. Contra estas teodicéas vários argumentos humanos poderiam ser apresentados, todos eles mostrando que a terceira premissa deve ser aceita, mas isso vai além deste artigo.

Qual o significado desta crítica à religião para a história do pensamento cristão? Hume é a primeira figura de destaque na história intelectual moderna a fazer um ataque devastador sobre a religião e a teologia. Embora mesmo alguns teólogos (como, por exemplo, William de Ockham e Martinho Lutero) houvessem, antes de Hume, afirmado que doutrinas religiosas e posições teológicas não podem ser justificadas racionalmente, e embora os Deistas do século XVIII houvessem rejeitado a racionalidade da crença na revelação, nunca uma figura de destaque na história intelectual moderna avia, sistematicamente rejeitado ambas as maneiras tradicionais de se justificar doutrinas e posições religiosas, razão e revelação concluindo não só que inexistem boas razões para se crer nas principais doutrinas do cristianismo mas afirmando também existir razões para não se crer nelas. Se alguém concorda que não haja justificação racional para crença religiosa, esta pessoa deve ou rejeitá-las, como Hume o fez, ou, segundo Kierkegaard, regozijar-se em sua irracionalidade. Se alguém discorda da posição de Hume, esta pessoa precisa refutar suas críticas, como teólogos católicos romanos têm tentado fazer, ou então, como teólogos protestantes liberais têm feito, procurar uma nova maneira de se encarar a religião tirando a ênfase de seu aspecto cognitivo e a colocando em seu aspecto moral ou experiencial. Por causa disto, a crítica Humeana à religião se coloca em uma das mais importantes junções na historia do pensamento cristão.

Campinas, Outubro de 1976
© Copyright by Eduardo Chaves
Last revised: May 02, 2004

Transcrito aqui em Salto, 15 de Junho de 2016

Theologia

Uma das grandes lições que tive acerca da teologia veio de Schleiermacher (Daniel Ernst Friedrich Schleiermacher), teólogo alemão, influenciado pelo Pietismo da família em que nasceu (no início do terço final do século 18, na cidade de Breslau, na Prússia, hoje Wroclaw, na Polônia) e pelo Romanticismo dos círculos em que cresceu, floresceu, amadureceu e morreu (no primeiro terço do século 19, na cosmopolitana Berlim). Ele nasceu em 1768 e morreu em 1934.

Eu, e muita gente boa me acompanhou nessa ideia, sempre acreditei que teologia fosse a reflexão e o discurso acerca de Deus – God Talk, como dizem os americanos com toda a simplicidade que a língua inglesa americanizada permite. Algo bastante pretensioso esse negócio de refletir sobre Deus. Como diria Voltaire, como pode o homem, essa porcariazinha que habita um cantinho insignificante de um magnífico e, possivelmente infinito universo, presumir conhecer a Deus, o suposto criador de toda esse maquinário?

Schleiermacher redefiniu a teologia. Ela não é sobre Deus — é sobre o homem em sua busca de algo ou alguém que lhe falta, o infinito que se contrapõe à sua finitude, o ilimitado que contrasta com as suas limitações, o infalível que torna horrível suportar as suas falhas, o independente que se opõe à sua dependência, o eterno que torna a sua mortalidade tão difícil de enfrentar… Desde sempre e em todo lugar o homem buscou algo ou alguém que é maior do que ele, mais poderoso, mais sábio, mais bondoso, quem sabe todopoderoso, onisciente, perfeitamente bom… A teologia é o relato reflexivo dessa busca do homem por um deus, um ens perfectissimum. Uma busca que o homem continua a fazer, sem poder ter certeza de que será bem sucedida. Só com esperança (do verbo esperançar, mais do que esperar, como diria Paulo Freire).

Ludwig Feuerbach concluiu, corretamente, a partir da tese de Schleiermacher, que a teologia, se é isso, não é Teologia, mas, sim, Antropologia Filosófica, com “a” maiúsculo, o estudo da busca, por parte do homem, daquilo ou daquele que o homem, não sendo, nunca se conformou em não ser…

Voltaire, que aparentemente sempre tinha um dito apropriado para qualquer situação, teria dito que, se Deus não existisse, seria necessário inventa-lo, porque o homem não conseguiria viver sem ele… A teologia é a tentativa do homem de entender por que sempre buscamos, ainda que inventando-os, os nossos deuses.

Eduardo Chaves, em Salto, 4 de Fevereiro de 2016. Transcrito da página Theologia, no Facebook, que pertence a meu sobrinho Vitor Chaves de Souza e a mim (vide https://web.facebook.com/Theologia-117032235029806/)

“I Call Myself a Liberal”

1. Mote

No início de seu conhecido e justamente celebrado Ensaio sobre o Homem: Epístola II, Alexander Pope, poeta inglês (1688-1744), considerado por muitos o maior poeta britânico do século XVIII e, em todos os séculos, segundo apenas em relação a Shakespeare, afirma o seguinte (minha tentativa de tradução é fornecida na sequência):

“Know then thyself, presume not God to scan;
The proper study of mankind is man.
Placed on this isthmus of a middle state,
A being darkly wise and rudely great:
With too much knowledge for the sceptic side,
With too much weakness for the stoic’s pride,
He hangs between, in doubt to act or rest;
In doubt to deem himself a god or beast;
In doubt his mind or body to prefer;
Born but to die, and reasoning but to err;
Alike in ignorance, his reason such,
Whether he thinks too little or too much:
Chaos of thought and passion, all confused;
Still by himself abused, or disabused;
Created half to rise, and half to fall;
Great lord of all things, yet a prey to all;
Sole judge of truth, in endless error hurled:
The glory, jest, and riddle of the world!”

“Conhece-te a ti mesmo, não presumas contemplar a Deus;
O estudo apropriado para quem é humano é o homem.
Colocado entre água dos dois lados, como um istmo,
Um ser obscuramente sábio e rudemente grande:
Com conhecimento demais para satisfazer o cético,
E fraqueza demais para justificar o orgulho do estoico,
O homem fica entre os dois, em dúvida se age ou se descansa;
Sem ser capaz de decidir se é um deus ou uma besta;
Se prefere sua mente ou seu corpo;
Nascido para morrer, é capaz de raciocinar, mas erra;
Caso pense de menos, ou venha a pensar demais,
Sua razão sempre encontra, em qualquer caso, a ignorância:
É um caos de pensamento e paixão, misturados e confusos;
Ele próprio se abusa, mas, por outro lado, também se desabusa;
Criado para subir, ele, por outro lado, frequentemente cai;
Senhor de todas as coisas, ele se torna presa de todas elas;
Único juiz da verdade, vive enrolado em erros intermináveis:
A glória, a pilhéria, o enigma do mundo!”

Ao ler esta estrofe de Pope, colocada como mote de um livro intitulado Anatomy of Love (de Helen Fischer [1]), lembrei-me de um artigo que comecei a escrever há algumas semanas e acabei deixando inacabado em meio às vicissitudes que um professor encontra no fim do ano, lendo trabalhos, avaliando provas, participando de bancas de Trabalhos de Fim de Curso e de Dissertações de Mestrado. O artigo tinha o título que agora dou a este trabalho, que, espero, complete e enriqueça o que vinha escrevendo. O mote, encontrei-o hoje (5 de Dezembro de 2015), quando os trabalhos dos alunos estão lidos, as provas avaliadas, as notas entregues… Só me falta uma banca de Mestrado, daqui a dois dias. Sinto-me, portanto, com tempo para concluir o que vinha procurando elaborar – para mim mesmo, para meus alunos, e para outros que possam se interessar pelo que penso ou pelo que seja o Liberalismo Teológico.

2. Preâmbulo

Meu orientador de Doutorado, William Warren Bartley, escreveu uma vez um artigo chamado “I Call Myself a Protestant” (“Por que me Chamo um Protestante”) – junto com três outros intelectuais, a saber: Philip Scharper, cujo artigo se chamou “What a Modern Catholic Believes” (“O que um Católico Moderno Acredita”; o famoso filósofo Walter Kaufmann, cujo artigo se chamou “The Faith of a Heretic” (“A Fé de um Herege”) e explicava por que ele havia abandonado o Cristianismo pelo Judaísmo; finalmente, Arthur A. Cohen, cujo artigo se chamou “Why I Choose to Be a Jew” (“Por que Escolho ser Judeu”). O artigo de Bartley, em especial, é muito interessante. Influenciou-me bastante quando o li, na década de setenta, em que, imaginava eu, eu deixava de ser um protestante histórico para me tornar, digamos, um protestante cultural, do tipo genérico, sem marca. [2]

Considero o artigo de Bartley um antecedente importante do fantástico artigo-depoimento de Rubem Alves, que transcrevi em meus blogs Liberal Space e Theological Space, ao qual ele deu o título de “Confissões de um Protestante Empedernido” [3]. É nesse artigo que Alves explica que ele, quando perguntado se ainda se considerava protestante (algo que acontecia com certa frequência), respondia sempre que sim – “sou, porque fui”, explicava.

Ambos, Bartley e Alves, foram amigos meus – grandes amigos, em convivência com os quais, e na leitura dos quais, aprendi muito e sempre me senti muito bem.

Acordei, no dia 11/11/15, quando comecei a escrever este artigo, determinado a escrever um artigo com o título “I Call Myself a Liberal” (“Por que me Chamo um Liberal”). Liberal em sentido teológico, não político – embora as duas liberalidades estejam a meu ver relacionadas. Para entender essa relação basta lembrar que o liberalismo político, com sua ênfase em liberdades e direitos, começou e floresceu com a afirmação da liberdade de consciência, de pensamento, de expressão – em especial na área da religião. O liberal político exigia, primeiro e acima de tudo, o direito de pensar livremente em relação a questões religiosas ou teológicas: pensar livremente queria (e quer) dizer pensar divergentemente, pensar diferente, pensar o que muitos (mesmo a maioria) consideram heresia…

Em meu artigo “Meu Credo Liberal” (que não especifica se o “liberal”, no caso, é teológico ou político), republicado recentemente em meu blog Liberal Space [4], explicito, no Item 1 do Bloco I:

“I. Convicções Básicas: 1. Defendo o direito de cada um pensar livremente, de escolher suas opiniões e seus pontos de vista, suas crenças e seus valores, e de os abandonar, sempre que achar que deve, e espero que os abandone, quando neles achar falhas ou quando encontrar alternativas mais adequadas à sua maneira de ver o mundo e a vida.” [5]

Um liberal teológico é, acima de tudo, um protestante. O equivalente católico é, em geral, chamado de modernista – como foi o caso de Alfred Loisy. A Igreja Católica, na segunda metade do século 19 e na primeira metade do século 20, condenou o Modernismo, não o Liberalismo, enquanto as denominações protestantes conservadoras condenavam o Liberalismo. As diferenças são sutis, mas importantes. Mas não vou discuti-las aqui.

Ao (tentar) elucidar por que me chamo um liberal estarei, portanto, em termos, também elucidando (espero) por que me chamo um protestante. Assim, este meu artigo se relacionará, basicamente, com os artigos de Bartley e de Alves que menciono no início.

3. Fé e Certeza

Comprei recentemente (Amazon, Kindle) um livro chamado Faith Without Certainty: Liberal Theology in the 21st Century, de Paul Rasor [6]. Vou começar discutindo (de certo modo) sua tese principal: a de que, para o liberal, a fé não envolve certeza… Foi esse livro que me motivou a escrever este artigo neste momento. Estou no mês final de uma disciplina (História da Igreja IV) em que o tema é história da igreja e do pensamento cristão no Século 20. Esclareço que, em relação a séculos anteriores, é mais fácil falar em “doutrina cristã” (ou, como prefere Adolf von Harnack, nos “dogmas do Cristianismo”) porque neles há razoável clareza e, por vezes, até consenso, acerca quais são essas doutrinas e esses dogmas. O Século 20 é bem mais complicado. Exceto no caso de certos grupos bem delimitados (Protestantismo Fundamentalista e, talvez, pelo menos até o Vaticano II, Catolicismo Romano), é bastante difícil determinar quais são as doutrinas ou os dogmas cristãos que a igreja espera que todo cristão aceite. E há, no Protestantismo, além dos mencionados Fundamentalistas, os Evangélicos (Conservadores, Pós-Conservadores, Progressistas, Pós-Modernistas), os Carismáticos (ou Avivados), os Pentecostais, e os  Liberais. Os Liberais parecem estar mais acomodados ultimamente, mas não estão mortos – talvez estejam apenas se fingindo de mortos enquanto os outros brigam… Tanto que o livro de Rasor, mencionado atrás, propõe-se discutir uma teologia liberal para o Século 21 – isto é, para o terceiro século de existência do Liberalismo, que surgiu com Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher, no início do Século 18. A primeira edição de Der christliche Glaube nach den Grundsätzen der evangelischen Kirche [“A Fé Cristã Segundo os Princípios da Igreja Evangélica”] de Schleiermacher foi publicada em 1821-1822 e lhe granjeou o título de “Pai da Teologia  Liberal”. Por isso, no tocante ao Século 20 (e ao 21) prefiro falar mais em “pensamento cristão” – talvez fosse melhor falar em “pensamento dos cristãos”, ou, quem sabe, melhor ainda, em “pensamento daqueles que se chamam cristãos” (assim conectando esta questão com a questão do início).

4. Fé, a Esperança e o Amor

Em um artigo publicado em meu blog Liberal Space, com o título de “A Fé, a Esperança e o Amor” [7], teci uma série de comentários sobre essa noção de “fé sem certeza”, muito antes de ler o livro de Paul Rasor.

Comecei, no artigo, discutindo o que afirma o autor da Carta aos Hebreus (Paulo, ou qualquer outro, não faz diferença), quando diz, em conhecida e celebrada passagem, que “a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem ” (Hebreus 11:1).

Observei naquele artigo que eu concordava, em parte – e, mesmo assim, apenas mais ou menos – com o que disse o autor de Hebreus nesse versículo.

Concordo que a fé tenha que ver com estados de coisas que “se esperam” – mais do que isso, que “se desejam” (talvez ardentemente) – mas cuja realidade (ou facticidade ou historicidade) nossos meios de percepção e investigação não são capazes de confirmar. Paul Tillich, em Dynamics of Faith, prefere falar em estados de coisas que consideramos tão importantes que os identificamos como nosso “interesse maior” (ultimate concern) [8].

A fé, portanto, teria que ver, acima de tudo, não com a “certeza” e a “convicção”, como afirma o autor de Hebreus, mas com a “esperança” e o “desejo” – com a esperança revestida de desejo que contém nosso interesse maior. Ou seja: o objeto da fé não é qualquer coisa…

Assim, concordo com o autor do trecho bíblico em que a fé tem que ver com a esperança (e com o desejo, que ele não menciona), mas discordo dele ao não achar que a fé tenha que ver com a certeza e a convicção. O lugar da fé na vida das pessoas (seu Sitz im Leben) não é o terreno em que se cultiva a certeza (como na matemática) ou mesmo a convicção baseada na evidência (como na ciência empírica): é o terreno difícil e pantanoso da dúvida. Longe de ser incompatível com a dúvida, a fé só nasce em terreno que a dúvida arou, preparou e cultivou.

A fé é a esperança de que determinado estado de coisas exista ou venha a acontecer, ainda que não tenhamos certeza de que ele exista ou venha, ou até mesmo possa, acontecer, ou ainda que não tenhamos convicção alicerçada em evidência de que esse estado de coisas exista ou vá ou mesmo possa acontecer, ou ainda mesmo quando a evidência, em vez de confirmar nossa esperança, pareça apontar na direção contrária…

A esperança que alicerça a fé tem de ser suficientemente forte para sustenta-la. Ela tem de ser uma esperança fundamentada no desejo – desejo que, por sua vez, é alimentado pelo amor. (O amor é a dimensão que se relaciona com o “interesse maior”, ou “ultimate concern”, de Tillich). O amor, o desejo, a esperança precisam ser suficientemente fortes para nos levar à ação. Uma ação que, sem ignorar a dúvida, prossegue como se a dúvida não estivesse lá – da mesma forma que o combatente, ainda que ferido, continua a lutar, como se não estivesse ferido. A ação decorre da fé. . .

Mal comparando, talvez, usemos uma analogia.

Você ama alguém. Realmente ama. E, naturalmente, deseja e espera que esse alguém corresponda ao seu amor. Mas não tem certeza, não tem evidência “clara, distinta e inequívoca” de que o seu amor seja correspondido. Mas se o amor é suficientemente forte para sustentar uma esperança também forte, você age – age como se o amor que você deseja e espera estivesse de fato no outro coração. Se não agir, você provavelmente nunca irá descobrir. É só agindo, como se, que você vai poder descobrir. Você poderá descobrir, quando tudo vier a ser revelado, e você vier a conhecer a outra pessoa como se conhece a si próprio, que sua fé e sua esperança não foram em vão, e que o seu amor era, na realidade, correspondido. (Essa é a coragem da fé, de que fala Tillich.)

Ou, então, pode descobrir que não era. Esse é o risco da fé. A fé não só nasce da dúvida: ela sempre envolve risco. O risco é a outra face da moeda cujo anverso é a coragem.

É o amor (traduzido como interesse último) que nos dá coragem e que faz com que o risco da fé compense.

Resumindo, até aqui: a fé é, de um lado, a esperança de que aquilo que se deseja seja verdadeiro, e, quando se trata de agir, a ação que se desenrola como se aquilo que se deseja fosse de fato verdadeiro. A fé, portanto, está sempre consciente do risco de que sua esperança seja em vão – e, por isso, não é um ato corriqueiro e trivial: é uma decisão que envolve coragem: a coragem de agir (e ser) como se a realidade fosse aquilo que desejamos e esperamos que seja. A fé exige coragem porque o desejo e a esperança estão sempre em luta com a dúvida.

5. A Epistemologia da Fé

Meu sobrinho, Vitor Chaves, doutor em Ciências da Religião pela UMESP (Rudge Ramos), comentou, ao ler algumas dessas observações minhas postadas no Facebook, pensando (ele) em Tillich, que “a dúvida não é o oposto da fé, ela é parte integrante da fé que reconhece no mistério a dimensão existencial da vida; o oposto da fé é a idolatria, pois esta absolutiza as coisas finitas e passageiras.”

O livro em que Tillich discute essas questões é Dynamics of Faith. Na Seção 5 (Faith and Doubt) do Capítulo I (What Faith Is), Tillich de fato diz uma série de coisas muito interessantes que corroboram e estendem o que escrevi [9].

Publiquei, em meu blog Liberal Spaces, há algum tempo, dois artigos em que discuto a “Epistemologia da Fé”: “Epistemologia da Fé – 1” [10] e “Epistemologia da Fé – 2” [11]. O leitor interessado poderá achar a discussão interessante.

O que é a fé?

Esta é a questão que Tillich discute no primeiro capítulo de Dynamics of Faith e que eu discuto no primeiro dos dois artigos recém-mencionados.

Uma forma de abordar essa questão é perguntando se a fé é um modo de descobrir ou desvelar ideias ou insights que não somos capazes de descobrir pela experiência e pela razão — uma espécie de intuição sobre assuntos transcendentes, talvez sinônimo de revelação… — ou se ela é um modo de validar epistemicamente crenças que a experiência e a razão (i.e., a ciência e a filosofia) não conseguem validar — uma espécie de método transcientífico capaz de justificar nossa crença em enunciados que a ciência e a filosofia não são capazes de validar.

Em outras palavras: a fé opera no chamado “contexto da descoberta” ou no chamado “contexto da validação”? [12]

Ou, ainda:

É a fé uma defesa da não-necessidade de validar a crença em determinados enunciados que a razão (argumentação lógica e evidência empírica) não consegue validar, e, portanto, uma defesa da necessidade de commitment ou engagement (como sugere Bartley), de um “mergulho na irracionalidade” (como propôs Tertuliano), de um “salto no escuro” (como sugeriu Kierkegaard)? Tertuliano, um dos Pais da Igreja, afirmava “credo quia absurdum” (“creio porque é absurdo”), creio exatamente porque é absurdo (vale dizer, incrível). Em outras palavras: se aquilo em que se crê fosse justificado epistemicamente pela razão humana, pela lógica e pela evidência, a fé seria desnecessária. Ela só se torna justificável, enquanto fé, quanto seu objeto é absurdo (ou “loucura”, como preferiu Paulo, o apóstolo).

Ou, ainda:

É a fé um mero “fazer de conta”, no plano da ação (e nem tanto da crença), um viver as if (como se): a decisão de viver como se a vida tivesse sentido, como se o bem e a justiça valessem a pena, como se a honestidade compensasse (e o crime não), etc. [13]?

Ou, ainda:

É a fé confiança pessoal, um relacionamento interpessoal baseado em confiança (trust) em outra pessoa? Algo equivalente ao fato de que eu confio em determinadas pessoas, dou-me a elas, passo a depender delas, mesmo sem ter evidência suficiente de sua confiabilidade. (A gente às vezes se casa com quem mal conhece, toma aviões dirigidos por pessoas que desconhece, acredita que os mecânicos fizeram a manutenção correta nos aviões, acredita que as empresas vão nos entregar os produtos que compramos pela Internet, etc.).

Ou, por fim:

É a fé confiança em si próprio e aceitação de si mesmo (mais ou menos a tese de Heródoto Barbeiro, que ouvi em um programa da CBN)?

Boa parte das pessoas hoje (talvez a maioria) parece-me não acreditar que a fé se esgote na crença de que um Deus (parecido com o Deus cristão descrito na Bíblia) exista. A maioria das pessoas parece estar interessada em defender um tipo de fé que transcende a questão religiosa e não se esgote na questão de Deus (ou até mesmo não a envolva). A questão de Jesus e da redenção nem chega a ser discutida, talvez em respeito a um sentimento ecumênico que transcenda os limites do Cristianismo…

Quase todo mundo parece ser a favor da fé (de algum tipo de fé), quase todos se declaram pessoas de fé (em algum sentido do termo). Pouquíssimos acham que a fé não é necessariamente uma coisa boa – nem mesmo quando entendida como confiança em si e aceitação de si. (Se eu sou um crápula ou um criminoso, a situação parece ficar pior se eu acreditar em mim mesmo e me aceitar como sou…)

Por outro lado, não é incomum a situação de gente que diga o que foi relatado de uma atriz no mesmo programa de que o Heródoto Barbeiro participou: “Eu quero crer, oro toda noite para crer, para que eu venha a ter, ou receba, fé, mas…”

É a fé algo que cada um de nós decide ter ou não ter, voluntariamente? É um ato de decisão pessoal? Se é, por que tantas pessoas aparentemente querem crer, querem ter fé, e não conseguem? Se não é um ato de decisão pessoal, porque tantos cristãos condenam tantas pessoas por não terem fé?

É aceitável, ainda hoje, a doutrina da Reforma Protestante do Século 16 (e, antes, de Agostinho, no Século 4-5), de que a fé não é uma realização humana, mas, sim, um dom divino (uma graça)? Nesse caso, os incréus não poderiam ser responsabilizados por sua descrença, nem os crentes pela sua fé. A estes Deus teria graciosamente dado a fé, àqueles ele a teria negado. Essa doutrina desemboca na doutrina da dupla predestinação.

Protestantes mais “soft” introduziram uma inovação: Deus daria a fé a alguns, mas não graciosamente: os recipientes precisariam primeiro crer que isso era possível e desejar que isso fosse feito. Essa inovação é complicada: além de sugerir que Deus dá a fé apenas a quem de alguma forma já crê, ela parece fazer da própria fé uma obra, negando a doutrina da justificação sola gratia

Enfim, coisa complicada essa questão da “epistemologia da fé”. Mas ninguém disse que seria simples…

Para complicar ainda mais…

Numa discussão que tive no Facebook, envolvendo principalmente parentes (meu irmão, meu sobrinho e minha mulher), relatada no segundo artigo sobre a epistemologia da fé, meu irmão (três anos mais novo), Flávio Chaves, lembrou o pensador inglês G. K. Chesterton, que (segundo ele) disse:

“Amar significa amar o que é difícil de ser amado, do contrário não seria virtude alguma; perdoar significa perdoar o imperdoável, do contrário não seria virtude alguma; fé significa crer no inacreditável, do contrário não seria virtude alguma. E esperar significa esperar quando já não há esperança, do contrário não seria virtude alguma.”

Eu, pessoalmente, gosto muito de Chesterton — pensador inglês que era católico, não anglicano. Ele escreveu também vários romances policiais deliciosos, em que demonstra uma capacidade de raciocínio invejável. Tenho todos eles. Tendo a concordar com ele. Fé, mesmo, para ser realmente fé, tem de ser em algo em que não se pode acreditar com base em argumentos racionais e evidência empírica. Não é preciso ter fé, por exemplo, para admitir que Jesus realmente nasceu no Século I na Palestina. Mas para admitir que ele nasceu de uma virgem, entretanto, é necessário ter fé. Não preciso de fé, por exemplo, para admitir que Jesus tenha morrido numa cruz. Mas para admitir que sua morte expiou os pecados do mundo, ou que ele tenha ressuscitado dentre os mortos, ou que, depois de ressurreto, tenha ascendido aos céus, onde estaria, ainda hoje, à mão direita de Deus, é necessário ter fé – muita fé, eu diria, mais do que muita gente boa é capaz de ter.

Minha mulher, Paloma Chaves, pareceu-me defender a tese de que a fé substitui ou supre a necessidade de justificar a crença em determinados enunciados que a argumentos racionais e evidência empírica não conseguem validar.

Meu sobrinho, Vitor Chaves de Souza, o teólogo, fez referências a Paul Tillich e a Miguel de Unamuno. Segundo o primeiro, a fé estaria mais próxima preocupação (“concern”) fundamental (“a state of being ultimately concerned“) do que de algo que possamos chamar de crença. Miguel de Unamuno teria sugerido a fé está mais próxima de desejar algo que se sabe não existir do que de desejar algo que se espera que exista…

Sugeri, no contexto, que a fé é uma decorrência e uma expressão de nossa finitude, de nossa limitação, do reconhecimento de que, por mais que esse fato nos frustre (porque gostaríamos “de ser como deuses”), não somos capazes de saber tudo e de conhecer tudo, não capazes de eliminar a ignorância (o desconhecimento) nem a dúvida (o conhecimento parcial, incompleto, imperfeito, falível).

A fé se faz presente quanto reconhecemos nossa finitude, nossa limitação, nossa mortalidade – e nos apanhamos desejando e esperando que alguém ou alguma coisa, que transcenda nossa finitude e limitação, que possa estar em controle do leme, impedindo que nossa vida seja uma sequência infindável de coincidências e acasos que um dia se encerre como uma trágica “cortina final”, a nossa morte, pondo fim a uma tragicomédia sem enredo e, por isso, sem sentido.

A fé se faz presente quando esperamos que haja algo além daquilo que conhecemos – que haja algo que transcenda nossa experiência falível e existência finita. Reconhecer nossa finitude é reconhecer que somos finitos, que temos fim.

O Judaísmo e o Cristianismo, por exemplo, diferentemente das religiões gregas, não acreditam na imortalidade da alma: acreditam na ressurreição do corpo. Isso quer dizer que o Judaísmo e o Cristianismo reconhecem, de forma radical, a finitude humana: a morte, o fim humano, é realmente um fim. Não é a morte só do corpo, ficando a alma viajando por aí, atormentando os outros, ou se reencarnando em outro corpo. É realmente o fim. Só um milagre poderá fazer com que, depois desse fim, sobrevenha um novo capítulo em que voltamos a participar. O Judaísmo e o Cristianismo acreditam no milagre da ressureição do corpo. Têm fé (esperança?) de que, um dia, o nosso ser, nosso eu, com corpo e tudo o mais, será reconstituído. Existe alguma base para se crer nisso (além do fato de que a Bíblia o diz)? Estou convicto de que não. Se quem crê (espera) está certo, ou não, só se saberá se a crença (esperança) for verdadeira. Se não for, o nosso fim é verdadeiramente o fim, o fim final, o fim sem follow-up, o fim sem capítulo subsequente – e a nossa finitude é uma finitude sem transcendência. É bom crer que a nossa morte não é o fim de tudo – que haverá um follow-up eterno em que o bem, o certo, a justiça serão recompensados, em que os conflitos, as guerras, o sofrimento, o mal deixarão de existir, em que o lobo conviverá pacificamente com o cordeiro e nos olhos não haverá nenhuma lágrima. Talvez por ser tão bom crer nisso que eu tenho medo de realmente crer — e prefira ficar no nível da fé-esperança… Segundo Paulo, há três virtudes básicas: a fé, a esperança, e o amor. Será que 2/3 delas não bastam?”

A Paloma cutucou de novo:

“Não crer por medo? Medo por ser algo tão bom? Quantas coisas tão boas temos recebido ainda em vida? Por que não as receberíamos depois da morte? Quantos milagres temos “vivido em vida”? Por que não os poderíamos ‘viver depois da morte’”?

Retruquei:

“Sabe quando você tem medo de acreditar em algo porque “it is too good to be true“? Sei que, muitas vezes, mesmo sem a crença, “it is true“. Tenho provas irrefutáveis disso (você sabe). Mas não aceito a validade de argumentos indutivos. O que já aconteceu muitas vezes no passado, pode não acontecer no futuro, exatamente em relação ao que, no esquema total das coisas, mais parece importar…”

O Vítor comentou:

“Bem lembrado sobre Paulo, tio. ‘Fé, esperança e amor’. Talvez sejam três virtudes básicas da humanidade, independente de cultura ou religião. Pra mim, até então, de forma breve, fé seria a preocupação mais decisiva e a decisão certa diante da preocupação; esperança, a paciência na vida e o trabalho constante para mudar; e amor, a aceitação do outro e de si mesmo. Parecem-me virtudes que somam qualidades positivas e nos fazem viver e conviver melhor. Se isto vai garantir uma vida após a morte? Talvez sim, talvez não… O medo da morte não pode ser o único motivo para viver estas virtudes básicas. Se de repente não houver nada após a morte, é melhor viver o paraíso aqui com a gravidade e a beleza destas virtudes (ou 2/3 delas) e esperar pela surpresa insondável da vida, do que antecipar um inferno aqui :-)”.

Retruquei:

“Obrigado por mais uma vez participar, Vitor. Concordo com você. Não sou mais, hoje, daqueles que acham que é ‘tudo ou nada’, ‘all or nothing at all’ (como cantava o incomparável ‘ol’ blue eyes’). Já fui. Hoje acho que 1/3 é melhor do que 0; 2/3 melhor do que 1/3; e que 3/3 talvez seja o ideal. Mas ainda sou suficientemente protestante/presbiteriano/calvinista para confessar que não acho que a fé seja simplesmente uma decisão da vontade: quero acreditar, vou acreditar, acredito. Na doutrina bíblica (na interpretação calvinista) a fé é dom, é graça, não é uma realização intelectual e conativa minha. Bela discussão para o nosso www.theologia.com.br…”

Ozimar Pereira voltou a participar:

“Talvez precise estudar um pouco mais, mas há linhas no Cristianismo que dizem que não há fim. A morte é apenas uma passagem e a vida apenas um de muitos estágios. Fé é acreditar nisso e não esperar um ressurgimento do pó no dia do Juízo Final… Enfim…”

Respondi:

“Pelo que sei, há tendências no Cristianismo que acreditam que, na nossa morte, apenas o corpo morre, e a alma (dos salvos, naturalmente) vai direto para os céus, ter com Deus (algo assim). Acredito que essa tendência tenha surgido em contextos influenciados pela doutrina da imortalidade da alma. Se a alma é imortal, apenas o corpo morre. E a alma, quando morre o seu corpo, tem de ficar em algum lugar. Como os cristãos majoritariamente rejeitam a doutrina da transmigração de almas (reencarnação), inferiu-se que a alma dos salvos vai direto para o céu e a dos condenados direto para o inferno. Não encontro base bíblica clara para essa doutrina. Há várias referências que dizem que os que morreram estão “dormindo”, mas isso não me parece base suficiente. Por outro lado, há passagens no Velho e no Novo Testamento que sugerem que somos pó e (quando morrermos) voltaremos a ser pó (sem fazer salvaguarda alguma para a alma). Os Testemunhas de Jeová, se bem me lembro, batem firme nessa tecla.”

Enfim. Uma discussão interessante.

6. Alexander Pope

É nesse contexto que entra o poeta que citei no início… Segundo Alexander Pope, no que ele diz e no que ele deixa explícito, “o estudo apropriado para quem é humano é o homem”, não Deus… E não devemos tentar nos conhecer imaginando que estamos vendo, em nós, a imagem de Deus. Na verdade, não conseguimos nem mesmo nos conhecer direito. A pouca sabedoria que somos capazes de alcançar é cheia de pontos obscuros e chega logo a pontos em que temos de admitir ignorância, por mais que imaginemos saber. Somos cheios de dúvidas, mesmo no tocante a nós, que deveríamos conhecer melhor do que ninguém: seremos basicamente bons ou basicamente maus, parentes dos deuses ou dos animais? Nossa mente domina o nosso corpo ou são nossos instintos mais básicos que condicionam o que desejamos, o que pensamos, o que consideramos certo? Será que a razão não passa de racionalização, será que nossas ideias mais nobres não são determinadas mais por nossas paixões do que por nossa razão? Será que não caímos até mesmo quando imaginamos subir?

7. O Liberalismo Teológico: Entendimento

Um dia desses (17/8/2015) publiquei em meu blog Liberal Space um artigo com o título “Elucubrações Perigosas” [14]). Recebi uma resposta interessante (que, infelizmente, não cabe aqui citar e discutir). Quando a recebi (em 7/9/2015) já havia postado no meu perfil no Facebook um post (o que fiz em 5/9/2015) que veio a se tornar um artigo no blog Liberal Space com o título “A Teologia Liberal” [15]. Esse post / artigo (que transcrevo, abaixo, no essencial) sugere, de certo modo, uma resposta a algumas das questões que eu havia levantado no artigo anterior (“Elocubrações Perigosas”) e que foram objeto de consideração pelo meu comentarista. Por isso o transcrevo aqui, nos sete parágrafos a seguir.

“Uma das principais contribuições da Teologia Liberal do fim do Século 19 e começo do Século 20, iniciada por Friedrich Schleiermacher, foi uma verdadeira Revolução Copernicana — independentemente de se aceitar ou não a tese.

Segundo a Teologia Liberal, a religião, em geral, e o Judaísmo e o Cristianismo, em particular, não representam, na realidade, movimentos de Deus na direção do homem (revelação, redenção, etc.), mas, sim, movimentos na direção oposta, do homem em busca de Deus, daquele que é finito (em poder, em conhecimento, em bondade) em busca do infinito (em poder, em conhecimento, em bondade). A religião, entre outras palavras, não é a busca que Deus faz do homem — mas a busca de Deus (ou de um deus) por parte do homem.

A religião, por conseguinte, não é a erupção do sobrenatural na ordem natural, mas a tentativa da ordem natural de transcender a si própria e irromper naquilo que lhe (digamos) “sobrejaz” — que seria o sobrenatural. É a busca que faz o imanente de uma ordem transcendente que explique o que aqui acontece e lhe dê sentido.

É por isso que Rubem Alves (O que é Religião?) e outros definem a religião (sagrada ou secular) como uma busca de sentido para a vida.

Consequentemente, nessa visão, os chamados livros sagrados, entre os quais a Bíblia, não contêm a palavra de Deus, mas, sim, a palavra humana que relata essa busca de Deus por parte do homem. Como palavra humana, nem sequer se cogita que o relato possa ser inerrante ou infalível.

Aí está o maior desafio que a Teologia Liberal colocou à Teologia Tradicional. Ela não estava no apontar erros ou incoerências particulares de fato ou de valor na Bíblia (embora isso fosse feito), mas, sim, no esforço de “dessupernaturaliza-la”, de “desdiviniza-la” – naturalizando-a e humanizando-a.

Como é que a Teologia Tradicional enfrenta um desafio desses?”

8. O Liberalismo Teológico: Legado

No artigo “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”, publicado em meu blog Liberal Space [16] em 4/7/2015, discuto o pensamento de Ernst Schleiermacher, Ernst Troeltsch e Adolf von Harnack, que (exceto pela ausência de Albrecht Ritschl) são os principais teólogos liberais do Século 19. Não vou resumir aqui o que disse sobre cada um deles naquele artigo. Mas vou transcrever aqui a última seção do artigo, em que resumo o que chamei de  “O Legado da Teologia Liberal”.

Dado o caráter da Teologia Liberal, especialmente como revelado nos autores discutidos naquele artigo, não é difícil entender a ameaça que ela colocava (e ainda coloca) ao Cristianismo Ortodoxo. O Liberalismo Teológico se caracteriza, a meu ver, por uma série de teses, a saber:

  • O Cristianismo não é uma religião única e totalmente diferente de outras: na verdade, ele é uma religião histórica, como todas as outras;
  • A evolução histórica do Cristianismo se deu em contato com o seu ambiente, contato através do qual ele deu e recebeu, influenciou e foi influenciado, numa dialética de acomodação;
  • O Cristianismo, como religião, não se baseia numa revelação de Deus para o homem, mas, sim, na busca do homem pelo infinito;
  • Conhecer a Deus é, na realidade, conhecer os sentimentos que levam o homem a tentar transcender sua limitação, sua dependência, sua finitude;
  • O núcleo essencial do Cristianismo está localizado na mensagem ética de Jesus que afirma que o amor a Deus se expressa no amor ao próximo;
  • A ética cristã não consiste de uma série de princípios ascéticos que determinam o afastamento do mundo, mas, sim, numa disposição e intenção pura voltada para implantar a unidade espiritual entre os homens e para criar uma rede básica de serviço ao próximo;
  • No Evangelho simples de Jesus (em contraposição à ortodoxia complexa do Catolicismo) dogmas e doutrinas não têm lugar, sendo substituídos pelo amor a Deus que se expressa no serviço ao próximo.

9. A Fé: Escolha Humana ou Dom Inexplicável?

Num artigo intitulado “A Fé e as Obras”, publicado no meu blog Liberal Space [17] em 2/9/2015, relato uma discussão que é relevante como seção final (antes da Conclusão) deste artigo mais amplo.

Um amigo meu no Facebook, Wilson Cavalcanti, católico, transcreveu, em um post, um trecho da Carta de Tiago (capítulo 2, versículos 14-26), me pedindo que, como representante da tradição protestante (em especial da tradição reformada, ou calvinista, ou presbiteriana), me pronunciasse sobre o assunto. Esclareceu que a posição de Tiago lhe parecia, como bom católico, bastante razoável.

A passagem que ele cita (apenas para facilitar) é a seguinte:

A FÉ SE MOSTRA NA PRÁTICA

  1. Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não tem as obras? A fé seria capaz de salvá-lo?
  2. Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia;
  3. Se então algum de vós disser a eles: “Ide em paz, aquecei-vos” e “Comei à vontade”, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adianta isso?
  4. Assim também a fé: se não se traduz em ações, por si só está morta.
  5. Pelo contrário, assim é que se deve dizer: “Tu tens a fé, e eu tenho obras! Mostra-me a tua fé sem as obras, que eu te mostrarei a minha fé a partir de minhas obras!
  6. Tu crês que há um só Deus? Fazes bem! Mas também os demônios creem isso, e estremecem de medo.
  7. Queres então saber, homem fútil, como a fé que não se traduz em obras é vã?
  8. Se o nosso pai Abraão foi declarado justo, será que não foi por causa de suas obras, a ponto de oferecer seu filho Isaac sobre o altar?
  9. Como estás vendo, a fé concorreu para as obras, e as obras completam a fé.
  10. Foi assim que se cumpriu a Escritura que diz: ‘Abraão teve fé em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça’, e ele foi chamado amigo de Deus”.
  11. Podeis ver, pois, que alguém é justificado com base naquilo que faz e não simplesmente pela fé.
  12. Não foi a prostituta Raab, da mesma forma, considerada justa em virtude de sua ação, quando hospedou os que vinham reconhecer a região e os fez regressar por outro caminho?
  13. Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta.

A seguir, o que comentei…

Esse é um tema controvertido, em que a Igreja Católica e as principais Igrejas Protestantes em geral diferem em alguns aspectos considerados (por elas mesmas) importantes.

Como historiador da doutrina, como historiador do pensamento cristão, vou discuti-las sem me posicionar pessoalmente em relação às questões envolvidas.

Nenhum dos lados (católicos e protestantes) nega que o ser humano, pecador, precisa de FÉ em Cristo (na eficácia da morte de Cristo na cruz) para ser considerado (imputado) justo – isto é, para ser justificado (salvo ou redimido).

A controvérsia surge em relação ao papel das OBRAS no contexto da justificação (salvação ou redenção) do ser humano, criando a questão chamada de “a fé e as obras”.

Antes de ir adiante, deixe-me esclarecer que a questão “da fé e das obras” pode ser suscitada em dois contextos.

O primeiro é o mencionado: o contexto das pré-condições para a justificação (salvação ou redenção) do ser humano. Como diz a história relatada em diversos lugares nos três primeiros Evangelhos (de forma não muito coerente): “o que devo fazer para alcançar a vida eterna?” (vide Mateus 19:16 [um moço], Marcos 10:17 [um homem], Lucas 18:18 [certo homem de posição]).

O segundo é o contexto que poderia ser chamado das pós-condições da justificação (salvação ou redenção): o que fazer (ou como viver) depois da justificação (salvação ou redenção), ao longo da vida cristã? Esse contexto é às vezes chamado de o contexto da santificação (em contraposição ao contexto da justificação).

Nesse segundo contexto, nenhum dos dois lados nega que é preciso manter (preservar) a FÉ e exibir boas OBRAS.

A controvérsia, portanto, se situa basicamente em relação ao papel das obras (o da fé ninguém nega) no contexto da justificação (salvação ou redenção).

A Igreja Católica em regra está mais próxima da posição de Tiago (e da posição do próprio Jesus nos Evangelhos – vide as passagens mencionadas), afirmando que, para a justificação (salvação ou redenção) do ser humano, são necessárias as duas coisas: fé E obras. Essa posição parece sensata e correta, especialmente diante do que diz Tiago (e do que diz Jesus nos Evangelhos: “segue os mandamentos, … vende o que tens e dá aos pobres”, e, depois, “vem e segue-me” – esta última exigência parece corresponder à fé; as duas primeiras, às obras).

As Igrejas Protestantes foram muito influenciadas pela tese de Lutero (oriunda em Paulo e defendida, antes de Lutero, por Agostinho, e, depois de Lutero, por Calvino) de que, por causa da queda (do pecado original) de Adão e Eva, a natureza humana ficou tão corrompida (depravada, é o termo que por vezes usam) que o ser humano não consegue fazer absolutamente nada para, por seus próprios méritos, conseguir ser justificado (considerado justo): nem fazer boas obras (seguir os mandamentos, ajudar os pobres, etc.) e, o que é mais surpreendente, nem mesmo ter fé. A sua justificação se dá exclusivamente por decisão e pela ação de Deus – é um ato unilateral da graça divina. A doutrina protestante (de boa parte deles) é da justificação exclusivamente pela graça divina (sola gratia) – embora às vezes se diga que seja “justificação pela fé” (sola fide), algo que comentarei na sequencia. (Como é que pode ser “sola gratia” e ao mesmo tempo “sola fide” é um problema sério – a menos que seja “só” pelas duas coisas).

Nesse contexto surge outro problema sério: se a justificação se dá exclusivamente por decisão e pela ação divina, sem participação humana, por que alguns são justificados (salvos ou redimidos) e outros não? A resposta protestante é complicada e os principais reformadores, Lutero e Calvino, diferem um pouco um do outro, em termos de ênfase e sensibilidade. Mas de forma resumida a resposta protestante é a seguinte:

  • Todos os seres humanos são pecadores (pela ação de Adão e Eva, cuja culpa é transmitida aos seus descendentes – doutrina do pecado original);
  • O pecado original contaminou de tal maneira o ser humano que sua natureza ficou totalmente corrompida, tornando-o absolutamente incapaz de obter, por seus próprios méritos, a sua justificação (salvação ou redenção);
  • Assim, todos os seres humanos merecem a condenação eterna (em outras palavras, merecem padecer no inferno para todos os tempos – a chamada doutrina das “penas eternas”);
  • No entanto, Deus, em sua infinita soberania, e em decorrência de sua perfeita bondade (misericórdia, etc.), decidiu (escolheu, elegeu) salvar alguns seres humanos dessa agonia eterna e enviou seu filho para morrer na cruz, e, por sua morte, expiar os pecados dos escolhidos ou eleitos, justificando-os (salvando-os, redimindo-os) e dando-lhes, por assim dizer, um novo começo, um novo nascimento, uma nova vida.

É isso. Fim da história. É essa a doutrina da justificação exclusivamente pela graça (sola gratia).

Há vários problemas evidentes nessa doutrina – o maior deles sendo a aparente injustiça, da parte de Deus, de escolher e eleger apenas alguns para se beneficiar da morte sacrificial de seu filho. Por que não todos? (Os calvinistas mais radicais afirmam que Deus escolheu (elegeu) e predestinou alguns para a salvação e outros para a perdição eterna – esta a chamada doutrina da “dupla predestinação”, que tem causado tanta celeuma entre protestantes, em geral, e presbiterianos, em particular). E contendem que isso não envolve injustiça alguma porque todos estavam condenados: salvar alguns (mesmo que não todos) já é evidência insofismável (segundo eles) do amor incomensurável de Deus, e da vitória de sua graça sobre uma justiça inexorável (que exigiria que todos fossem condenados). Acho pouco convincente o argumento.

Aqui entram algumas tentativas de amenizar a crueza da doutrina da justificação pela graça – acrescentando a dimensão “fé”. Nessa versão amenizada, Deus enviou seu filho para, pela sua morte sacrificial, justificar (salvar ou redimir) TODOS os pecadores (não apenas os eleitos). Mas, para se beneficiar do sacrifício de Jesus, o ser humano tem de crer (ter fé) em sua eficácia. Assim, a justificação é, sem dúvida, pela graça (sola gratia), mas também  MEDIANTE a fé (sola fide) – há um jogo com as preposições “por” e “mediante”, embora no Latim elas inexistam (usa-se simplesmente o chamado caso Ablativo). Quem tiver fé na eficácia do sacrifício de Jesus é justificado (salvo ou redimido), tem seus pecados expiados (“lavados pelo sangue do Cordeiro” – Vide Apocalipse 7:14). Quem não tiver essa fé, está (merecidamente) perdido. A fé se torna, consequentemente, importante – na verdade, essencial. (Muitos calvinistas ortodoxos consideram essa saída uma heresia, chamando essa solução de pelagiana ou arminiana – a primeira uma heresia condenada pela Igreja Católica, lá atrás, a segunda condenada pela Igreja Reformada ou Presbiteriana, no Século 17 – Sínodo de Dort, na Holanda, em 1619 [18].

Parece um bom remendo – ainda que não (pelo menos na aparência) perfeitamente compatível com tudo o que a Bíblia e os reformadores clássicos de linha calvinista afirmam.

[Quando falo em “remendo”, tenho em mente um remendo no sentido lógico, mais do que no sentido cronológico, pois ele já vem de longe, lá das cartas paulinas. Haja vista o que diz Paulo em Efésios: “Pois pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus” (2.8).]

Mas aí surge uma outra série de questões: e a decisão de acreditar ou não, de ter fé ou não, é inteiramente do ser humano? Se for, parece que o ser humano tem, afinal, por essa decisão, alguma participação (algum mérito) na sua justificação (salvação ou redenção). Se não for, o problema continua… Por que Deus dá fé a alguns e não a outros?

Alguns reformadores parecem ter defendido a tese de que a fé (crer ou não crer, eis a questão), como decisão unilateral do ser humano, é necessária, mas não configura participação (mérito) em sua justificação (salvação ou redenção). É apenas um “ato passivo” (parece meio contraditória a noção) de aceitação. A justificação (salvação ou redenção) continua ação (obra) exclusiva de Deus. Essa posição é por vezes chamada de monergista (ergo – ação; mono – de um só, a saber, Deus).

Os mais radicais dos calvinistas, monergistas até a medula, afirmam que mesmo a fé é um dom de Deus e que, quando Deus, pela sua graça, dá esse dom de fé a alguém, este alguém não tem como recusa-lo, não tem como resistir a Deus – esta a doutrina da “irresistibilidade da graça”; e, aceitando o dom da fé, como não teria alternativa, também não tem, depois, a possibilidade de abrir mão dele – a doutrina da “perseverança [inevitável] dos santos”. Complicado.

Outros cederam um pouco e admitiram que a doutrina de que o pecado original produziu a total corrupção (depravação) da natureza humana era exagerada, e admitiram que o arbítrio humano continuou livre para aceitar ou rejeitar o dom (gratuito) de Deus e que essa aceitação ou rejeição configura uma participação, ainda que pequena, do ser humano em sua própria justificação (salvação ou redenção). Essa posição é por vezes chamada de sinergista (ergo – ação; sim – com, em grego), pois envolveria um certo nível de cooperação entre Deus e o ser humano – a participação deste seria bastante minoritária, embora, segundo os sinergistas, inegável. Assim, a fé é uma realização (ou obra) humana – donde a justificação vem pela graça, mediante a fé [19].

Essa explicação toda não esclarece, porém, a questão original. OK, a fé pode ser vista como uma obra, mas e as chamadas “boas obras”, propriamente ditas, o cumprir os mandamentos, o ajudar os pobres, os órfãos, as viúvas, etc. Como ficam? São necessárias para a justificação (salvação ou redenção)? Para os protestantes, em geral, a resposta é, claramente, não. MAS, segundo eles, essas boas obras seguem, naturalmente, a justificação (salvação ou redenção), decorrem dela, pois esta “regenera” o ser humano, faz com que ele “nasça de novo”, dá-lhe uma nova natureza, etc., que, embora não o torne perfeito, sem pecado, o capacita (sempre com a assistência indispensável do Espírito Santo) a viver uma vida santificada, que implica o cumprimento dos mandamentos, a disposição de ajudar os outros, etc.

É isso. Tentei ser o mais claro possível navegando por uma questão complicada. Provavelmente vai haver algum protestante (possivelmente da variedade “evangélica”) que discorde de minha interpretação da questão, mas, se isso ocorrer, estou disposto a defender minha interpretação dessa delicada questão.

Fim da transcrição livre (editada e modificada aqui e ali).

10. Conclusão

Escrevi um artigo longo, aproveitando vários outros artigos escritos anteriormente, para explicar por que me considero, hoje, e, de certo modo, desde 1965 (com alguns momentos meio longos de interrupção em que não me considerei, teologicamente, nada), um liberal do ponto de vista teológico. Aqui resumo minhas conclusões para aqueles que possam ter se perdido nos meandros da discussão. [O fechamento está meio desordenado e pretendendo organiza-lo melhor futuramente. Blogs nos dão essa enorme vantagem em relação ao texto impresso, a de poder mexer no texto à vontade, algo que faço “liberalmente”, mas sempre deixando o devido registro. Aprendi isso com Popper.]

Considero-me liberal, em primeiro lugar, porque (olhando em retrospectiva) concordo, basicamente, com as teses poeticamente levantadas por Alexander Pope no Século 18.

Considero-me liberal, em segundo lugar, porque, quando fiz meu Doutorado, concentrei-me em outra figura britânica nobre do Século 18, David Hume, escocês que também, à sua maneira (não era poeta, mas filósofo, e um filósofo que pretendia lançar as bases das Ciências Humanas, da mesma forma que Isaac Newton teria feito em relação às Ciências da Natureza), procurou mostrar que o ser humano deve estudar as coisas relacionadas ao homem e ao ambiente humano (a sociedade) e natural (a natureza) em que o homem vive. Segundo ele, o ser humano não tem condições de se aventurar além daquilo que nos é dado na experiência – exceto para discutir o significado (arbitrário, porque definido pelo homem) de palavras e outros símbolos (como os usados nas Matemáticas). Diz ele, nos dois parágrafos finais do seu livro An Inquiry Concerning Human Understanding (Uma Investigação Acerca do Entendimento Humano), publicado em 1748:

“Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica escolástica e indagarmos:

Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto, lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões” [20].

Fui influenciado profundamente pela crítica à metafísica e à teologia que David Hume fez – crítica essa que influenciou também a Emanuel Kant, o mais famoso dos filósofos alemão (no Século XVIII e desde então). Minha tese teve o título David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of the Christian Thought. O longo título expressa bem o conteúdo.

O Fideísmo Irracionalista e a Teologia Liberal foram os dois principais modos em que o Pensamento Cristão procurou responder à crítica devastadora de Hume, a partir do Século XIX.

Nunca consegui ter nenhuma simpatia para com posturas irracionalistas como a do Fideísmo Irracionalista à la Kierkegaard – embora sempre tenha tido simpatia filosófica pelos céticos, como Pierre Bayle e Hume. Mas Hume era (como também Bayle, que ele admirava muito) um “cético mitigado”, como ele mesmo se descrevia – um cético razoável, como eu prefiro descreve-lo.

Assim, sempre tive preferência pelo Liberalismo Teológico. Iniciei-me nele através de Rudolf Bultmann, por volta do ano de 1965, quando eu cursava o segundo ano do Seminário Presbiteriano de Campinas. Relato essa história no artigo mencionado na Nota 16, especialmente nas Seções 4 e 5.

Houve um momento, cerca de 25 anos depois, em que me questionei seriamente se o Liberalismo ainda era uma teologia cristã – ou se se tratava, como sugeriu o expoente mais interessante do movimento fundamentalista, John Gresham Machen, em seu livro Liberalism, de 1923, que vim descobrir muito mais tarde, realmente de uma nova religião (ou, pior, um humanismo ateu disfarçado de religião).

Foi nesse contexto que, em 1990, escrevi um artigo que, para fim foi muito importante como marco de referência, com o título How Far Can a Doctrine Change Without Becoming Something Else? (Até que Ponto uma Doutrina Pode Mudar Sem que se Torne Alguma Outra Coisa?), apresentado na Second Assembly of the World’s Religions, em Los Angeles, naquele mesmo ano. Vide, nesse contexto, o meu artigo mencionado na Nota 16, Seção 2, para o relato do episódio e as referências ao artigo de 1990, tanto em sua publicação original, impressa, como em sua transcrição digital em meu blog Liberal Space.

Depois de um bom tempo, já lá se vão outros 25 anos, à medida em que voltei a estudar, e a estudar melhor, os grandes autores liberais, em especial Schleiermacher, Troeltsch e Harnack, convenci-me de que o Liberalismo era, sim, uma tentativa legítima e válida de “acomodar” (como dizia Troeltsch) o Cristianismo a uma nova cultura, naturalista e secular, filha do Iluminismo, como é a nossa. (Em geral ignoro o chamado Pós-Modernismo — em outro artigo esclarecerei por quê).

A alternativa ao Liberalismo seria, como já disse, o Fideísmo Irracionalista que via a fé como “Um Salto no Escuro”, que eu não conseguia aceitar, e o Fundamentalismo, que, por rejeitar as mudanças que eu havia aceitado de coração, sempre me pareceu repugnante em suas versões mais clássicas e pouco convincente em suas versões aparentemente mais “racionalistas” e modernosas, entre discípulos de Charles Hodge (e até mesmo o próprio, que, morto há bem mais de cem anos, continua vivo em certos círculos teológicos — e que eu, convenhamos, até gosto bastante de ler).

E aqui estou — meio humeanamente cético mas, também, sempre disposto a buscar e investigar; e nunca (espero) dogmático e intolerante, como frequentemente são os que já se acham donos da verdade.

NOTAS

[1]  W. W. Norton & Company, New York, 1992. O livro tem um subtítulo: A Natural History of Mating, Marriage, and Why We Stray. O título e subtítulo, na minha interpretação para o Português, deveriam ser: Anatomia do Amor: Uma História Natural do Sexo e do Casamento e das Razões Por Que Nos Desviamos dos Padrões. A tradução para o Espanhol, porém, optou por traduzir o título e o subtítulo como: Anatomía del Amor: Historia Natural de la Monogamia, el Adulterio y el Divorcio. O título da tradução para o Português (Editora Eureka, 1995) seguiu o da tradução para o Espanhol: Anatomia do Amor: A História Natural da Monogamia, do Adultério e do Divórcio. Consta que uma nova edição, completamente revista e expandida, está para ser colocada em venda, em Inglês, em Fevereiro de 2016. Vide, na Amazon, o URL http://www.amazon.com/gp/product/0393285227.

[2] Os quatro artigos foram originalmente publicado na revista Harper’s Magazine, no ano de 1959 (nos meses Maio, Fevereiro, Abril e Março, respectivamente). Tenho-os republicados no livro Essays of Our Time, editado por Leo Hamalian & Edmond L. Volpe (McGraw-Hill Book Company, New York, 1960). A tese de Bartley foi expandida e elaborada em seu magnífico livro The Retreat to Commitment (“A Retirada para o Comprometimento”), (Alfred A. Knopf, New York, 1962; Chatto & Windus, London, 1964; 2nd edition revised and expanded, Open Court Publishing Company, La Salle, 1984). O livro foi traduzido para o Alemão com um título, para nós, mais sugestivo: Flucht ins Engagement: Versuch einer Theorie des offenen Geistes (“Fuga Para Dentro do Engajamento: Uma Teoria Tentativa do Espírito Aberto”), (Szczesny, München, 1962). Em Alemão houve uma segunda e edição,  publicada em 1964 com o mesmo título e pela mesma editora, e uma terceira edição, publicada em 1987, agora pela editora Mohr Siebeck, Tübingen, que tem um subtítulo curiosamente diferente, para justificar mais material incluído: Die Einheit Der Gesellschaftswissenschaften (“A Unidade das Ciências Sociais”).

[3] Tempo e Presença, Publicação do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), Número 169, Julho de 1981, pp.22-26. O artigo está transcrito em dois de meus blogs: Liberal Space e Theological Space; vide http://liberal.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves (no primeiro caso) e https://theological.space/2015/10/07/confissoes-de-um-protestante-obstinado-depoimento-de-rubem-alves/ (no segundo).

[4] “Meu Credo Liberal”: http://liberal.space/2015/10/12/meu-credo-liberal/.

[5] Vide também http://liberal.space/about-2/, para uma versão anterior do Credo. (As modificações são poucas e pequenas).

[6] Skinner House Books, Boston, 2005.

[7]  “A Fé, a Esperança e o Amor”: http://liberal.space/2014/03/15/a-fe-a-esperanca-e-o-amor/.

[8] Vide Paul Tillich, Ultimate Concern: Tillich in Dialogue, editado por D. Mackenzie Brown (Harper Books, New York, 1965, 1970).

[9] Vide Paul Tillich, Dynamics of Faith (Harper Books, New York, 1957). Vide também Paul Tillich, The Courage to Be (Yale University Press, New Haven, 1952).

[10] “Epistemologia da Fé – 1”: http://liberal.space/2010/05/29/epistemologia-da-fe-1/.

[11] “Epistemologia da Fé – 2”: http://liberal.space/2010/05/31/epistemologia-da-fe-2/.

[12] Essa distinção foi colocada e valorizada por Karl R. Popper em The Logic of Scientific Discovery (publicado em Alemão como Logik der Forschung em 1934 e apenas muito depois traduzido para o Inglês e para outras línguas, como o Português, no caso como Lógica da Pesquisa Científica) e em Conjectures and Refutations (coletânea de artigos publicada  originalmente em Inglês e rapidamente traduzida para outras línguas, como o Português, sob o título Conjeturas e Refutações). Para Popper, o maior epistemólogo e filósofo da ciência do século 20, e orientador do doutorado de meu orientador de doutorado (e, portanto, meu “avô intelectual”…), “o contexto da descoberta” é irrelevante para a epistemologia (embora relevante para a história, psicologia e sociologia da ciência); para a epistemologia apenas importa “o contexto da validação” (também chamado de “o contexto da justificação”). A chamada “epistemologia genética” de Jean Piaget é, no entender de Popper, um contrassenso – embora a expressão “psicologia genética” faça sentido.

[13]  Compare-se Hans Vaihinger, Die Philosophie des Als Ob (“A Filosofia do Como Se“), de 1911.

[14] “Elucubrações Perigosas”: http://liberal.space/2015/08/17/elucubracoes-perigosas/.

[15] “A Teologia Liberal”: http://liberal.space/2015/09/07/a-teologia-liberal/.

[16] “Literalismo, Hermenêutica e Liberalismo”: http://liberal.space/2015/07/04/literalismo-hermeneutica-e-liberalismo/

[17]  “A Fé e as Obras”: http://liberal.space/2015/09/02/a-fe-e-as-obras/.

[18] Vide http://www.monergismo.com/textos/credos/sinodo_dort_witt.htm e,  também, http://www.mackenzie.br/7057.html.

[19] Vide na Internet várias discussões dessa controvérsia, entre elas a seguinte, para selecionar apenas uma, que não é objetiva, mas partidária: http://textosdeteologiaefilosofia.blogspot.com.br/2013/02/monergismo-versus-sinergismo-por-norman.html.

[20]  Confira http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/hume.html#22.

Em Salto, 5-6 de Dezembro de 2015.

Casamento (Sexo e Família) na Doutrina Católica

Vou resumir e superficialmente comentar aqui neste artigo (que terá prosseguimento em pelo menos mais um) a doutrina católica do casamento – que a Igreja prefere chamar de matrimônio.

O tratamento doutrinal do casamento parece mais um tratado jurídico (porque a questão é discutida exaustivamente no direito canônico) do que um ensaio teológico, mas vamos lá. Vou me basear especialmente num compêndio chamado The Teaching of the Catholic Church: A Summary of Catholic Doctrine, editado por George D. Smith, 2 vols. (Macmillan Company, New York, 1964). A discussão do “Sacramento do Casamento Cristão” está no segundo volume (pp.1062-1100). Comprei esse compêndio em 1971.

A Igreja Católica considera o casamento a primeira bênção que Deus deu ao homem, ainda no Jardim do Éden, ao criar-lhe uma companheira. A finalidade primeira e principal do casamento, na doutrina católica, é permitir a preservação e o crescimento da raça humana (“Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”; Gênesis 1:28, 2a edição, Bíblia de Genebra). Essa finalidade teria sido realizada, mesmo que o “primeiro casal” não tivesse pecado (e nos envolvido a todos nós em sua queda), em cujo caso a raça humana teria sido sem pecado.  [p.1062].

Em um primeiro parêntese, é estranho que, apesar de o compêndio sublinhar que a mulher foi criada para ser uma companheira do homem, e não para lhe dar filhos, o companheirismo entre o homem e a mulher (“Não é bom que o homem esteja só”; Gênesis 2:18, 2a edição, Bíblia de Genebra) não é considerado uma finalidade principal do casamento. A Bíblia de Genebra fala, porém, em “auxiliadora”, não em “companheira”. A NTLH diz: “Não é  bom que o homem viva sozinho. Vou fazer para ele alguém que o ajude como se fosse a sua outra metade”. A noção de “auxiliadora” (“ajudadora”) está presente. Mas é curiosa a menção à “outra metade”. Fim do parêntese).

A Igreja Católica vê, já no relato da Criação em Gênesis, a  promessa de um Redentor que viria da descendência da mulher e feriria a serpente na cabeça (Gênesis, 3:15). Logo, a Igreja vê, já nos capítulos iniciais do Velho Testamento, a profecia da vinda de Cristo e o prenúncio da Igreja, “o corpo místico de Cristo”, que sucederia ao povo de Abrahão. Isso lhe permite afirmar que, na instituição do casamento, além da “finalidade natural” de popular a terra, havia também o propósito de que as crianças nascidas fossem criadas no temor de Deus e, portanto, viessem, oportunamente, a contribuir para o crescimento da Igreja e, assim, “permitir que o número dos eleitos venha a ser completado” [pp.1062-1063]. Traços do pensamento de Agostinho aqui nessa referência a um “numerus clausus” dos eleitos.

O casamento terreno é, assim, entendido como um “sinal” ou um “símbolo” que representa a união de Cristo com a sua Igreja, o seu “corpo místico” (união essa que seria indissolúvel). Aproveitando a deixa, o compêndio, que é dedicado a leigos, admite que essa doutrina, apesar de “etérea e misteriosa”, é inegavelmente verdadeira, e (curiosamente) traz, embutida em si, a advertência de que “um católico casado, ou que esteja contemplando o casamento, deve ter em mente que essa doutrina implica que “uniões irregulares, novos casamentos adulterinos [enquanto o ex-cônjuge está vivo], e controle da natalidade são erros demonstráveis com base nos princípios da ética natural”. Esses erros podem até ser chamados de “sacrílegos”, posto que “violam a significação celestial da união de Cristo com a Igreja”. É por isso que a Igreja envolve as “núpcias terrenas” no “rito sagrado” da Missa, fazendo delas um sacramento [pp.1063-1064].

Aproveitando mais uma vez a deixa, o compêndio afirma que Cristo (o compêndio nunca diz Jesus) revogou a permissão mosaica do divórcio, tornando o casamento indissolúvel [p.1065].

Para aqueles que possam ter alguma dúvida ou ressalva quanto ao caráter sacramental do casamento ou quanto à interpretação dos textos bíblicos, o compêndio diz, taxativamente: “A voz e o ensino vivos da Igreja são supremos na determinação da revelação cristã: sem essa voz, nem mesmo o Novo Testamento poderia ser aceito como a palavra inspirada de Deus” [p.1065].

Qual é exatamente o “sinal” ou “símbolo” que constitui o sacramento do casamento? A resposta é mais uma vez taxativa: “É simplesmente o contrato validamente celebrado entre um homem e uma mulher comprometendo-se a viver como marido e mulher, contrato esse que existe e é considerado sagrado desde o início da raça humana” (!). Cristo “elevou esse contrato à dignidade de um sacramento”. Por isso, um contrato válido de casamento celebrado entre dois cristãos é um sacramento; se não houver o contrato, não há o sacramento e, por conseguinte, não há o casamento. [p.1066].

A realização de um sacramento, porém, exige um “ministro”. Em última instância, Cristo é o ministro. A Igreja tem, tradicionalmente, considerado o sacerdote oficiante como o ministro, por delegação de Cristo. Mas uma reflexão teológica mais profunda leva à conclusão que são as partes contratantes os verdadeiros ministros do sacramento! É por isso, afirma o autor, que a Lei Canônica admite, em certos casos, que o casamento pode ser contratado e o sacramento recebido sem a presença de um sacerdote. Surpreendente.  [p.1067].

(Outro parêntese. O autor do compêndio confessa não haver clareza quando Cristo transformou o casamento em sacramento. Pode ter sido nas bodas de Caná da Galileia ou, então, quando ele teria declarado o casamento indissolúvel. [p.1067]. Fim do parêntese.).

Qualquer casal formado de cristãos validamente batizados pode receber validamente o sacramento do casamento – a menos que haja algum impedimento. (Os impedimentos serão discutidos adiante). O autor liberalmente admite que não católicos, desde que tenham sido batizados validamente, e que não sejam objeto de algum impedimento, podem celebrar validamente o contrato sacramental. Casamentos de não recipientes de um batismo cristão válido não são válidos. [pp.1068,1070].

A liberalidade parece ir embora, porém, quando o autor afirma: “Uma consequência vital do fato de que o casamento de cristãos é um sacramento é que tudo que diz respeito a ele precisa ser regulado pela Igreja” – não pela autoridade civil. Essa ressalva é importante especialmente no contexto do divórcio, que é admitido pelas autoridades civis de muitos países. A Igreja Católica considera o divórcio prévio de um dos que pretendem contrair matrimônio um dos impedimentos ao casamento mencionados atrás. A autoridade civil está livre, porém, para regular unilateralmente (i.e., sem a interferência da Igreja) questões relacionadas a herança e sucessão [pp.1069-1070].

[A continuar]

Em São Paulo, 4 de Dezembro de 2015

Família, Casamento e Sexo (na Visão do Cristianismo, em Perspectiva Histórica)

1. Introdução

Coloco no título deste artigo três termos que apontam para três conceitos relativamente importantes, tanto historicamente como no presente, em várias áreas de investigação, ou investigação: sociologia, antropologia, psicologia, filosofia (ética), biologia social, etc. – e, naturalmente, na teologia. Vou tentar abordá-los de forma transdisciplinar, i.e., sem maior preocupação com a forma em que cada uma dessas disciplinas os trataria. Mas meu interesse está na discussão se haveria uma “visão bíblica”, ou uma “visão cristã”, oficial, mandatória, desses três conceitos. Meu tratamento da questão certamente vai parecer superficial (e até mesmo errôneo) ao especialista (inclusive ao exegeta bíblico e ao teólogo) – mas esse é o preço que estou acostumado a pagar por ser um generalista convicto.

À pessoa comum, não viciada por especialidades acadêmicas, a relação entre os três conceitos pode parecer óbvia e evidente: em condições normais, em sociedades razoavelmente tradicionais e/ou conservadoras, famílias são constituídas por casamentos e sexo é admissível apenas em um relacionamento “gâmico”, isto é, confinado ao casamento. A essa pessoa comum que estou imaginando, uma família, no sentido mais estrito do termo, aquele em que ela é geralmente qualificada como nuclear, é constituída por um homem e uma mulher casados (um com o outro) – e, naturalmente, por seus filhos, gerados em seu relacionamento sexual lícito, isto é, confinado aos limites do matrimônio. (Só muito recentemente, em sociedades mais liberais, como a nossa, atual, aqui no Brasil, filhos ditos naturais, i.e., nascidos fora do casamento e, em alguns casos, tecnicamente adulterinos, começam a ser vistos, até mesmo pelo Direito, como parte normal da família, em igual condição com os filhos ditos legítimos (até mesmo no processo de sucessão/herança). O mesmo se dá em relação à companheira, antigamente chamada de concubina, em relação à mulher dita legítima da qual o marido está separado de fato – ou mesmo sem que isso aconteça!)

2. A Visão do Velho Testamento

Mesmo a pessoa comum que estou imaginando, porém, desde que seja minimamente bem informada, não ignorará um certo número de fatos que apontam para além ou para fora desse entendimento. Ela saberá, por exemplo, que, antigamente, ou, se ela conhece bem a Bíblia, desde os primórdios da história da humanidade, as coisas não eram bem assim. É verdade que ela apontará para o fato de que a Bíblia, em seu relato da criação, assinala que:

  • Deus criou o homem e a mulher [1];
  • Deus determinou que eles fossem “fecundos”, se “multiplicassem”, e “enchessem a terra” (o que implica sexo) [2].

Curioso que, embora cristãos (especialmente os evangélicos conservadores da atualidade) façam frequentes referências à família, e até à “primeira família” [3], os dois primeiros capítulos de Gênesis omitem totalmente qualquer referência ao conceito de família, da mesma forma que omitem o conceito de casamento [4], falando apenas em homem, mulher e (implicitamente) em sexo (para fim procriativo).

Na verdade, já que estou fazendo referência a Gênesis, há certas questões, geralmente levantadas por incréus e céticos, que incomodam os evangélicos conservadores:

  • Se o relato bíblico é verdadeiro, e a raça humana começou com um só casal, Adão e Eva, Caim, filho dos dois, e assassino de seu irmão, Abel, deve ter gerado sua prole (que a Bíblia admite que ele teve) de forma incestuosa, pois ele só pode tê-la gerado com uma irmã (de pai e mãe) ou com a própria mãe (algo que me parece muito pior);
  • Quando a Bíblia começa a falar em família, ela o faz em termos de uma família patriarcal, em que um pater familias (em regra com mais de uma mulher, em geral com uma oficial e outras oficiosas, consentidas ou mesmo arrumadas pela oficial – algo geralmente chamado de poliginia) comanda um clã composto não só por suas mulheres e seus filhos (incluindo, em posição secundária, as filhas, embora essas, quando casadas, passassem a pertencer a outro clã), mas também por noras, às vezes genros, netos, às vezes irmãos, sobrinhos, primos, etc. – algo muito distante da chamada “família nuclear” que se defende hoje);
  • O Velho Testamento admite o divórcio (mais precisamente: o repúdio da mulher por parte do homem – não vice-versa, a noção de adultério masculino sendo meio deixada de lado por causa da poliginia) em alguns casos específicos, e, além disso, também não proíbe a união posterior de um divorciado com uma outra mulher, ou seja, aceita também a poliginia sequencial e não apenas a simultânea ou concorrente.

3. A Visão do Novo Testamento

Isso dito, passemos ao Novo Testamento.

Ali Jesus demonstra ser mais condescendente do que os demais judeus em relação ao adultério, ou ao casamento em série, e afirma que o Velho Testamento admitiu o divórcio por causa da natureza humana (pelo menos a contaminada pela “queda”). De certo modo, Jesus relativiza, ao aparentemente radicalizar, o adultério, afirmando que mesmo o “adultério mental” seria adultério de fato, tão problemático quanto o real. (Jimmy Carter, um cristão conservador “nascido de novo”, admitiu, em entrevista à revista Playboy, ter cometido “adultério mental”). O Novo Testamento também fala explicitamente em noivado (“prometimento”), casamento (bodas), etc. A Igreja Católica afirma que Jesus “sacramentou” o casamento por ter realizado numa festa de casamento o seu primeiro milagre (transformar a água em vinho – milagre esse pelo qual eu tenho especial simpatia).

Mas passemos a Paulo. Em suas epístolas, em especial na primeira carta aos Coríntios, Paulo chega às raias do escolasticismo ao discutir família, casamento e sexo.

Paulo, no meu entender, afirma as seguintes teses, que, de certo modo, condicionam todo o ponto de vista cristão posterior:

  • O asceticismo sexual (abstinência sexual total) é preferível a uma vida de que o sexo faça parte, mesmo que seja uma vida matrimonial regularmente estabelecida;
  • Nem todo mundo consegue viver de forma totalmente asceta (abstinente) no tocante ao sexo (isto é, ficar sem “fornicar” e sem casar);
  • O casamento foi instituído (mais ou menos como o divórcio, na opinião de Jesus), por causa da natureza humana (pelo menos a contaminada pela queda), para legitimar a prática do sexo, que seria legítima quando realizada entre casados (entre si, naturalmente) – apesar da superioridade do asceticismo ou abstinência sexual total;
  • No entanto, Paulo enfatiza, mais de uma vez, que é preferível não casar a casar (pois o sexo, mesmo quando legítimo, é, no mínimo, uma distração indefensável diante da necessidade de evangelizar o mundo e o iminente fim desse mundo);
  • Sexo fora do casamento (mesmo antes e depois) é sempre ilegítimo e deve ser caracterizado como o pecado da “fornicação” (se envolve apenas pessoas não casadas) ou do “adultério” (se pelo menos um envolvido é casado com outra pessoa);
  • Pode haver, entre cristãos casados, separação (em caso de adultério ou abandono), mas não divórcio, e os separados não podem casar de novo ou manter relações sexuais com outros parceiros (seria adultério), só tendo a opção, caso desejem manter relações sexuais, de reatar com o cônjuge de que se separaram;
  • O casamento de uma pessoa cristã com uma pessoa não-cristã (o chamado “jugo desigual”) não é um casamento real ou perfeito, porque, se a pessoa não-cristã se separa, a pessoa cristã, assim abandonada pela não cristã, pode se casar de novo;
  • Relações sexuais homossexuais não são admitidas em hipótese alguma e, muito menos, alguma forma de “casamento” entre eles, nem sequer se admitindo a hipótese de que um deles seja cristão, ou mesmo que ambos o sejam (porque a principal, quiçá única, finalidade do casamento é a procriação);
  • (Mais implícito do que explícito), a família cristã é constituída pelo casamento (entre cristãos, naturalmente) e é composta pelo marido, o cabeça do casal e chefe da família, a mulher e os filhos (mulher e filhos sendo sujeitos e obedientes ao marido e pai).

Em suma: Paulo é, dentro do Novo Testamento, o responsável pelo legalismo casuísta que sempre dominou a visão cristã da família, do casamento e do sexo – e pela visão negativa do sexo e do próprio casamento (porque amarrou um ao outro). Esse fato causou sérios problemas aos pensadores cristãos posteriores, em especial Agostinho, como veremos (ainda que meio por cima).

4. A Visão da História da Igreja

A Igreja Católica Romana seguiu quase à risca a doutrina paulina – com algumas ênfases especiais (com as quais, imagino, Paulo, se consultado, claramente estaria de acordo), propostas especialmente pelos Pais da Igreja, em especial os latinos: Tertuliano, Jerônimo e Agostinho.

Resumo a doutrina católica nos seguintes itens:

  • Virgindade, asceticismo e abstinência total, são, no tocante ao sexo, o estado indubitavelmente preferido, como prova a exigência (teórica, não necessariamente prática) de que padres, bispos, monges, freiras, papas, etc. sejam celibatários; se tiveram uma vida sexual ou matrimonial anterior, devem se abster totalmente de qualquer atividade sexual depois de assumir seu ofício;
  • O casamento foi instituído por Deus e sacramentado por Jesus (no milagre de Caná da Galileia) para legitimar o sexo em sua função procriativa, para aqueles que não conseguem se manter puros, sendo (o casamento) indissolúvel e não devendo ser usado exclusivamente para legitimar o prazer do sexo e para cimentar o companheirismo (razão pela qual métodos anticoncepcionais “não naturais” não são admissíveis, só se admitindo, como método anticoncepcional, entre os casados, a abstinência sexual temporária e, talvez, o coitus interruptus) [5]  [6];
  • Sexo antes ou depois do casamento, ou de qualquer maneira fora dele, é ilegítimo – sendo ilegítimo mesmo dentro do casamento, se acompanhado de “concupiscência” (leia-se tesão, prazer), Jerônimo chegando a afirmar que o marido que ama sua mulher demais comete adultério quando com ela mantém com ela relações sexuais;
  • A doutrina católica não admite o casamento “misto”, isto é, com não católicos (e muito menos com não cristãos);
  • Embora a doutrina católica não admita o sexo por prazer e mero companheirismo, a Igreja Católica, talvez de forma meio dividida, tentou promover uma visão do casamento em que, apesar de o sexo ser dever conjugal (isto é, obrigação do casal), o casamento, em seus aspectos não-sexuais, se alicerça no companheirismo, nos prazeres puros e simples da vida, na amizade cristã, para que nenhum dos parceiros se sinta estimulado a buscar companheirismo ou prazer fora do casamento (como acontece nos casamentos “negociados”), assim aumentando o risco de adultério (mesmo depois de uma separação ou mesmo de divórcio, onde admitido, um novo relacionamento sexual ou mesmo um novo casamento será sempre considerado adulterino, pelo menos enquanto o ex-cônjuge viver);
  • Sendo o casamento católico indissolúvel, não pode haver divórcio, mas apenas anulação ou separação de fato, a primeira admitindo um casamento subsequente, a segunda, não, porque o vínculo conjugal continua e ele é sempre indissolúvel;
  • Relacionamentos sexuais com pessoas do mesmo sexo, ainda que se concentrem mais no periférico ou assessório do que no central ou essencial (isto é, ainda que não envolvam propriamente o coito) são inadmissíveis;
  • A família, em sentido estrito (nuclear), é composta pelo marido, pela mulher e pelos filhos que porventura tenham, e ela deve ser preservada contra ataques de qualquer forma, diretos ou indiretos;
  • Por isso, combatem-se a poligamia (poliginia, poliandria), o divórcio, a homossexualidade, o sexo fora do casamento (ainda que entre solteiros), a prostituição, etc., além, naturalmente, de casamentos consanguíneos e outras formas não-consanguíneas de incesto – e até mesmo a leitura (ou, pior, escrita) de pornografia.

5. Conclusão (Temporária)

É mais ou menos isto que eu queria dizer neste primeiro artigo sobre o assunto (outros virão). Como disse atrás, a discussão foi razoavelmente superficial, mas clara, para alimentar discussão. Não comprovei uma série de afirmações, embora possa comprovar, “on demand”, a maior parte delas. E passei por cima de distinções mais sofisticadas.

Também não discuti a visão protestante da família, do casamento e do sexo, porque, exceto por deixar de lado a sacramentalidade do casamento, por admitir que o clero possa se casar, e por admitir o divórcio (vide até mesmo a conservadora Confissão de Fé de Westminster), no resto difere pouco da visão católica. Na minha modesta opinião, naturalmente. Vide, por exemplo, os Puritanos.

Cristãos protestantes liberais, porém, nos últimos tempos (150 anos, mais ou menos), são quase que unanimemente favoráveis ao divórcio e a novos casamentos, bem como a relacionamentos sexuais fora do casamento por parte de pessoas solteiras, divorciadas ou viúvas, irrespectivamente de seu sexo (essa tendência sendo bem mais recente). Muitos deles (protestantes liberais) também são favoráveis a uma noção estendida de família que aceita como família os relacionamentos estáveis, inclusive homossexuais, em cujo caso nada obstaria a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

6. Notas

[1] Se Deus criou primeiro o homem e depois a mulher, ou os dois ao mesmo tempo, é, para esse tipo de “pessoa comum”, em geral indiferente, sendo apenas uma questão de exegese de Gênesis 1 e de Gênesis 2. Gênesis 1:26-27 afirma que “… disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. . . . Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. O texto aqui parece sugerir que os dois foram criados ao mesmo tempo, sem maiores firulas. Gênesis 2, porém, narra a criação, primeiro do homem (2:4-17), depois da mulher (2:18-25), e acrescenta alguns detalhes curiosos sobre como eles foram criados (o homem do pó da terra, a mulher da costela do homem, etc.).

[2] Vide Gênesis 1:28. Gênesis 2:24 contém este muito explorado versículo: “Por isso deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne” (versículo literalmente citado em Efésios). O versículo seguinte, num aparente non sequitur, observa que os dois “estavam nus, e não se envergonhavam”. (O non sequitur é eliminado se a gente se lembrar que, para tornar-se “uma só carne”, o casal em geral prefere ficar pelado). Também há um aparentemente anacronismo em falar em deixar pai e mãe exatamente quando se mencionam pessoas que não tiveram nem um, nem outro, mas deixemos isso para lá.

[3] A “primeira família” seria aquela de Adão e Eva, naturalmente e seus filhos (um dos quais, um assassino fratricida). Há um certo sentido em que cristãos poderiam desejar chamar a família de Jesus a “primeira família” – mas a questão é complicada, não só porque José não é considerado o pai verdadeiro (biológico) de Jesus (apesar de o Novo Testamento se referir a ele, em mais de um lugar, como o pai de Jesus, sem qualquer qualificativo).

[4] Rubem Alves, com seu jeito pitoresco e não raro irreverente de dizer as coisas, afirma o seguinte: “No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembleia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: ‘E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar…’”. Fico imaginando a cena… Vide sua crônica “Sobre Casamento”, transcrita em “Rubem Alves | Blog Não-Oficial”, no URL https://rubemalves.wordpress.com/2008/04/16/rubem-alves-sobre-casamento/. O texto foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo de 20 de março de 2007, com o título de “A Praga”, a propósito de uma afirmação do Papa Bento XVI (tinha de ser ele) de que “o segundo casamento é uma praga”. Vide http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2003200706.htm/. [Em decorrência dessa observação papal, e à despeito da refutação que dela fez o meu caro amigo, hoje falecido, decidi, no ano seguinte, por via das dúvidas, terminar com o meu segundo casamento e partir para o terceiro. 🙂 ]

[5] A Igreja Católica Romana mais tradicional não admite sequer que um casal legitimamente casado tenha relações sexuais apenas pelo prazer que elas proporcionam. Para ela, a finalidade do sexo é procriar, ponto final – razão pela qual os mais tradicionais se opõem até mesmo ao recurso ao coitus interruptus como método anticoncepcional. As chamadas “carícias preliminares” também são desincentivadas por esses católicas mais tradicionais. Elas só devem ser usadas na justa medida necessária para viabilizar o ato sexual procriativo. Agostinho se esforçou por encontrar alguma alternativa a elas, mas há consenso de que não foi bem sucedido. [Acrescentado em 3/12/2015: Vide, abaixo, Post Scriptum 2 de 2/12/2015].

[6] Depois de haver concluído o artigo básico encontrei, escondido em minha biblioteca aqui no sítio, um livro, que devo ter adquirido por volta de 1967 ou 1968, que, lendo apenas agora, achei fantástico: The Natural History of Love, de Morton M. Hunt (Minerva Press, 1959). Depois de  uma breve introdução, no capítulo 1, e da discussão, nos capítulos 2 e 3, “[d]a história natural do amor” na Grécia e na Roma pagã, respectivamente, o autor o discute essa história, no quarto capítulo, durante os cinco ou seis séculos iniciais do Cristianismo. Ele discute dois movimentos sobre os quais quase nada se fala nos textos regulares de História da Igreja: o chamado “casamento continente” (isto é, “sem incontinência” ou sem descontrole) e o chamado “casamento espiritual”. No primeiro caso, trata-se de um casamento mesmo, em que dois cristãos, ambos virgens, resolviam casar e, no ato do casamento, celebravam também um “pacto de castidade” – total. Em tudo o mais, eram casados, menos em relação ao sexo. A prática aparentemente foi instituída por um cidadão chamado Amon e sua noiva, cujo nome não é fornecido. No segundo caso, não se trata de uma casamento real, mas de algo que pretendia caracterizar o relacionamento entre um homem e uma mulher castos como “casamento espiritual”. Os casados “espiritualmente”, neste caso, eram um ocupante do clero (padre e até mesmo bispo) e a virgem (denominada “agapeta” – termo derivado da palavra grega “agape” que designa amor não erótico) que lhe prestava serviços domésticos, morava em sua casa, e, pelo que consta, até mesmo compartilhava a sua cama – mas de forma totalmente casta. Isso era visto pelo padre ou bispo como uma forma de fortalecer o espírito contra tentações… Dentro do monasticismo, há relatos de casas masculinas e femininas que se uniram, os irmãos e as irmãs praticando essa forma arriscada de fortalecimento do espírito contra a carne. Bispos mais realistas e de mais bom senso oportunamente conseguiram que essa prática fosse declarada herética – mas ela custou para desaparecer. Conta o livro que, depois da condenação da prática, um padre que prezava muito a companhia de sua “agapeta” optou por castrar-se a ter de se livrar da companheira. Outros, porém, menos corajosos, venderam suas virgens como escravas – comportamento que hoje parece menos cristão do que aquele que ele procurava solucionar. Todas as referências foram retiradas do capítulo 4 da fonte citada – que é um tesouro de informações interessantes, raramente contidas em outros textos de História da Igreja.

7. Post Scripta

A. POST SCRIPTUM 1 DE 2/12/2015

Como assinalo acima, sempre considerei Paulo o grande culpado pela visão negativa do casamento e do sexo que o Cristianismo carregou consigo ao longo de seus dois milênios de existência. Paulo não tem como negar que o sexo é uma realidade da vida humana (e animal) sem a qual basicamente acaba a vida humana (e animal) na face da terra. Além disso, há, para os que levam a sério a história da Criação em Gênesis, o mandamento do versículo 28 do primeiro capítulo, que na Bíblia de Genebra (2a edição) é traduzido como “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”. (Na NTLH o versículo é traduzido como: “Tenham muitos e muitos filhos; espalhem-se por toda a terra e a dominem”.) Além disso, a natureza humana (pelo menos depois da queda) é tal que o sexo é uma força potente a condicionar a ação das pessoas. Paulo parece ser um asceta – solteiro virgem ou viúvo abstinente depois da viuvez. “Quero que todos os homens sejam tais como também eu sou”, afirma na primeira carta aos Coríntios (7:7 – 2a edição da Bíblia de Genebra). Mas é suficientemente realista para concluir que poucos serão como ele (nem todos têm “esse dom” de asceticismo e abstinência sexual). Admite, assim, o sexo, desde que canalizado e disciplinado dentro do casamento. Para aqueles que “não se domin[a]m”, afirma, “que se casem; porque é melhor casar do que viver abrasado” (7:9, mesma edição; na NTLH: “Se vocês não podem dominar o desejo sexual, então casem, pois é melhor casar do que ficar queimando de desejo”).

O casamento, assim, é visto por Paulo como o único canal legítimo para o sexo – mas o casamento é apenas para “os fracos”, aqueles que não conseguem controlar seu desejo sexual. Muito melhor seria se todos fossem como ele, que imodestamente se coloca como modelo, e se mantivessem virgens, ou, se viúvos, abstinentes sexuais.

Paulo, porém, assume uma posição que alguns Pais da Igreja, em especial Agostinho, vão rejeitar, como se verá adiante (no Post Scriptum seguinte). Ele afirma que, uma vez casados, nenhum dos cônjuges deve negar sexo ao outro, quando (e sempre que) o outro quiser (mulheres cristãs, atentai!). Essa é a norma. Eis o que ele diz na primeira carta aos Coríntios 7: 3-6 (NTLH): “O homem [casado] deve cumprir o seu dever como marido, e a mulher deve também cumprir o seu dever como esposa. A esposa não manda no próprio corpo [!]; quem manda é o marido [!]. Assim também o marido não manda no seu próprio corpo; quem manda é a sua esposa. Que os dois não se neguem um ao outro, a não ser que concordem em não ter relações por algum tempo a fim de se dedicar à oração [!]. Mas depois devem voltar a ter relações, a fim de não caírem nas tentações de Satanás por não poderem se dominar. Não digo isso como uma ordem, mas como uma sugestão”. (Compare-se 7:35: “Eu estou dizendo isso porque quero ajudá-los. Não estou querendo obrigar ninguém a nada” [NTLH] Que bom.).

Muitos autores têm procurado abrandar um pouco a dureza da posição de Paulo nessas passagens da carta aos Coríntios (apesar do “não estou querendo obrigar ninguém a nada”), chamando atenção para o fato de que a ética sexual que ele recomenda é uma “ética interina“, visto que ele acredita que o fim do mundo está muito próximo (vide 7:29 [“não nos resta muito tempo”], 7:31 [“este mundo, como está agora, não vai durar muito”].

No entanto, isso não alivia muito a dureza da posição paulina, pois Paulo chega a dizer que, exatamente por causa da exiguidade de tempo para cumprir a tarefa de ir por todo mundo e evangelizar a toda criatura (Marcos 16), “daqui em diante os casados devem viver como se não tivessem casado” (primeira carta aos Coríntios, 7:29 [NTLH] – minha ênfase). A vida de casado traz muitos problemas (7:28), esclarece ele, e, além disso, tanto o homem casado quer agradar sua mulher como esta quer agrada-lo (7:33), e, por isso, os casados são “puxado[s] para duas direções diferentes” (7:34): agradar o cônjuge e dedicar-se ao trabalho de Deus. “O solteiro”, não: ele “se interessa [somente] pelas coisas do Senhor porque quer agrada-lo” (7:32).

B. POST SCRIPTUM 2 DE 2/12/2015

Hoje fui reler Agostinho, especialmente A Cidade de Deus, capítulo XIV, em que ele discute em detalhe essas questões, para cotejar sua posição com a de Paulo.

Algumas observações preliminares:

a) Agostinho não pode ser interpretado como propondo uma “ética interina”, porque viveu nos séculos IV e V e, portanto, sabia que o fim do mundo não estava tão próximo como Paulo acreditava em meados do  século primeiro – Paulo provavelmente morreu por volta de 66 AD;

b) Agostinho é bem mais radical do que Paulo em sua ética sexual: ele chega muito próximo de considerar a prática do sexo pecaminosa, só não afirmando isso por causa do “sede fecundos” (Deus não iria comandar aos seres humanos que fizessem algo que só se pode fazer pecando);

c) Agostinho é mais imaginativo e criativo do que Paulo ao interpretar as passagens bíblicas, chegando, por vezes, às raias do pitoresco.

Quanto à primeira observação, é preciso fazer uma ressalva. Agostinho acreditava (como Paulo, antes dele, e como vieram a acreditar Lutero e Calvino, depois dele) na predestinação dos salvos (eleitos) e dos condenados (que ele hesita em chamar de rejeitados, porque, fazendo alguma ginástica mental, na qual é mestre, ele prefere dizer que foi o homem que rejeitou a Deus, não o contrário). Além disso, Agostinho acreditava que o número dos eleitos é pré-determinado e fixo. Assim, ele também era partidário de uma “ética interina”: o comando dado ao primeiro casal humano de de “ser fecundo, crescer e multiplicar-se”, e que é aplicável à sua posteridade, só faz sentido, depois da queda, enquanto o número dos eleitos não estiver ainda preenchido. Uma vez preenchida a cota, o ser humano fica desobrigado de cumprir esse comando, porque daí o fim do mundo estará iminente. O problema é que ninguém sabe quando a cota será preenchida. Mas Agostinho achava que estava muito próximo o dia.

Quanto à segunda e a terceira observações, Agostinho enfrenta alguma dificuldade para lidar com a questão, que ele mesmo se propõe, acerca de como seria a vida conjugal de Adão e Eva no Paraíso se eles não tivessem pecado e tivessem continuado como Deus os criou. Teriam eles relações sexuais ou eles se seriam fecundos e se multiplicariam de alguma outra forma? Um problemão para quem considera o sexo como algo quase pecaminoso…

A solução de Agostinho, detalhada em A Cidade de Deus, capítulo XIV, e no seu tratado Casamento e Concupiscência, é, no mínimo, criativa e engenhosa. No Paraíso, Adão e Eva não tinham o que nós hoje chamamos desejo sexual ou tesão (lascívia, concupiscência, volúpia, etc. são os termos bíblicos e teológicos normalmente empregados no contexto – o termo mais técnico é libido). Por isso viviam nus sem ter vergonha (Agostinho constrói muito em cima desse aspecto do relato bíblico). Mas eles sabiam que tinham de ser fecundos e multiplicar-se – e certamente sabiam como proceder para chegar a isso. Não tendo desejo sexual e tesão, como os nossos primeiros pais iriam conseguir que seus órgãos sexuais ficassem prontos para exercer a tarefa reprodutiva (o problema maior é o do homem, mas crédito seja dado a Agostinho que se preocupa também com a prontidão para o ato reprodutivo do órgão sexual feminino). É aqui que entra em jogo a imaginação e criatividade de Agostinho. Não podendo depender do desejo sexual, nossos primeiros pais, no Paraíso, tinham de ativar seus órgãos sexuais para o ato reprodutivo por um exclusivo ato de vontade (sem envolver emoções, sentimentos, desejos). Não estando contaminados pelo pecado ainda, e estando ainda de posse de sua natureza não corrompida, eles podiam controlar seus órgãos sexuais por meros atos da vontade da mesma forma que nós, hoje, controlamos os movimentos de, digamos, nossos braços, nossas mãos, e nossos dedos. Assim, por mera volição, seus órgãos sexuais ficariam prontos. (A modéstia de Agostinho o impede de explicitar mais, mas é evidente que se trata da imprescindível ereção masculina e da recomendável lubrificação feminina).

Mas a criatividade agostiniana vai além. Ele acredita que, no Paraíso, teria sido possível que Adão impregnasse Eva sem penetrá-la, apenas deixando que sua semente escorresse para dentro dela sem que ela perdesse a sua virgindade (em o que seria um prenúncio da “virgindade perpétua” de Maria?). Especula Agostinho: se o sangue menstrual pode escorrer de dentro da virgem para fora sem desvirgina-la, o sêmen masculino pode escorrer de fora para dentro dela pelo mesmo canal, passando pelo pequeno orifício existente no hímen das virgens, tudo isso sem desejo e sem tesão – por meros atos da vontade. E eles poderiam fazer isso sem se esconder, porque não haveria por que sentir vergonha, pois esse ato seria equivalente (no Paraíso) ao ato de, voluntariamente, estender o braço e fazer uma carícia no rosto do outro.

Mas agora, caídos, fora do Paraíso, como os cristãos que se acreditam eleitos devem proceder? Outro problemão. Agostinho, que foi bastante devasso em sua mocidade (a dar crédito ao seu próprio relato em suas Confissões – na realidade ele parece ter sido bem menos devasso do que mais tarde imaginou ou inventou), sabia que, hoje, com sua natureza corrompida pelo pecado original, o ser humano é incapaz de controlar seu corpo (incluindo seus sentimentos e desejos), em especial seus órgãos sexuais, por meros atos da vontade, como nossos primeiros pais teriam sido capazes de fazer no Éden. Hoje, com a natureza que temos, é impossível (ele admite) manter o tipo de relações sexuais que Adão e Eva teriam tido (ou tiveram) no Paraíso, antes de pecar.

A posição de Agostinho destaca várias nuances, mas vou sublinhar apenas três:

a) Como a cota dos eleitos deve estar próxima de ser preenchida, nada impede que “os fortes” se dediquem à virgindade e ao asceticismo sexual. Ele próprio, certamente “um forte”, depois de se converter, virou asceta e, pelo que consta, convenceu seu filho, Adeodato (tido com uma “concubina”, antes da conversão), a fazer o mesmo.

b) Para “os fracos”, sempre há o casamento. Mas mesmo dentro do casamento, Agostinho recomenda a abstinência – se não total (como no caso do “casamento continente”, já mencionado), pelo menos tão rapidamente quanto possível, antecipando ao máximo o momento em que o casal perde o interesse sexual um pelo outro. [Acho uma lástima que ele tentasse estimular e apressar o desinteresse sexual do casal dentro casamento…]

c) Enquanto não chega o momento da abstinência total dentro do casamento, o sexo deve ser praticado com o mínimo de desejo e tesão indispensável para a consumação do ato procriativo – que é a única finalidade legítima para esse tipo de “conjunção carnal”. Assim, nada de carícias preliminares, nada de rodeios desnecessários, nada de sofisticação e variedade nas posições: coisa simples, básica, e rápida (como diz a mulher citada no Post Scriptum seguinte).

Por enquanto, é isso. Não vou conseguir parar, agora que comecei…

C. POST SCRIPTUM DE 3/12/2015:

Mudança de cena rápida. Salta-se do século V para o século XXI.

Para aqueles que não acreditam que essas ideias causam dor e sofrimento, e, por cima, consciência de culpa em quem as desconsidera mas acha que deveria leva-las a sério, eis o que afirma, em uma consulta publicada hoje (3/12/2015), uma mulher casada, de 35 anos. A consulta está no Blog de Regina Navarro Lins, psicanalista, hospedado no site do UOL, na seção “Mulher”, na subseção “Comportamento”, e pode ser conferida em http://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2015/12/03/meu-marido-e-um-homem-maravilhoso-mas-o-sexo-com-ele-e-uma-tragedia/. A mulher atribui a causa daquilo que ela considera a tragédia de sua vida sexual ao fato de o marido ser evangélico.

“Meu marido é um homem maravilhoso, mas o sexo com ele é uma tragédia!” [Título da matéria].

“Hoje criei coragem e resolvi contar meu caso. Tenho 35 anos, sou casada há 13, tenho dois filhos e uma relação estável. Meu marido, 45 anos, é um homem maravilhoso: trabalhador, não deixa nada faltar em casa e é um pai exemplar. Mas como na vida nada é perfeito, nosso relacionamento na cama é uma tragédia. Não consigo me realizar no sexo; as nossas relações são rápidas e superficiais. Não há preliminares. Pelo fato de ele ser evangélico, trata o sexo apenas para reprodução. Tenho desejos normais de transar de todas as formas. Sexo oral nem em sonho; ele considera isso pecado. Acredita que será castigado e não aceita de jeito nenhum. Já conversamos várias vezes sobre isso, e não existe a possibilidade nenhuma de ele aceitar e mudar. Não sei o que eu faço. Fico irritada, mal humorada, deprimida, feia… não sei o que é gozar numa relação; não quero morrer gozando apenas na masturbação. Não quero deixar meu casamento por causa disso, mas também não quero seguir com essa vida de secura. O que eu faço? ” [Sublinhado acrescentado por mim, EC].

Artigo escrito em Salto, em 29 de Novembro de 2015, e revisto várias vezes em dias subsequentes, tendo-lhe sido acrescentados esses três PS em 2 e 3 de Dezembro de 2015, respectivamente.

 

Exegética, Hermenêutica e Sermônica

[ Artigo transcrito aqui a partir de meu blog “Liberal Space” (http://liberal.space) e do meu blog História da Igreja (http://historiadaigreja.info)]

1. Preambulatoria

Lembro-me com um desgosto enorme do fato de ter precisado ler, quando no primeiro ano do Seminário, um longo livro de John A. Broadus chamado On The Preparation and Delivery of Sermons. O livro foi concluído em 1870 (data do copyright original) e publicado no ano seguinte. Vai fazer, portanto, 150 anos. Eu o li numa tradução brasileira (O Preparo e a Entrega de Sermões), feita por Waldemar W. Wey (o WWW original, pelo jeito) e publicada pela Casa Publicadora Batista em 1960 – mais de 50 anos atrás, mas apenas quatro anos antes do momento em que o li.

Disse que li o livro com grande desgosto por várias razões.

    • Meu interesse em estudar teologia (que se mantém até hoje) sempre foi muito mais acadêmico do que pastoral. Queria encontrar respostas para minhas perguntas (perguntas que ainda persistem, e, lamento dizer, persistem sem resposta, na maioria dos casos), não me preparar para o exercício de um ofício na igreja. Naquela época, o único jeito plausível de estudar teologia era se declarando interessado em se preparar para o ministério pastoral. Logo, não estava nem um pouco interessado em como preparar e apresentar sermões (detesto o termo “entrega” como tradução do Inglês “delivery” – prefiro “apresentação”).
    • Estava lendo constrangido. A leitura do livro fora considerada obrigatória pelo meu professor de Homilética, o Rev. Adauto Araújo Dourado, um grande “entregador de sermões”. E eu, infelizmente, sempre fui muito “caxias” em relação às coisas consideradas meus deveres (antigamente ainda mais do que hoje). Procurava sempre cumpri-los à risca. Logo, pus-me a ler o livro, assim que fui informado da obrigatoriedade da tarefa. Não digo que estava lendo obrigado, porque há sempre formas alternativas de se desobrigar de obrigações que nos são impostas. Digo que eu lia o livro constrangido, e nunca é bom ler um livro dessa forma.
    • Meu pai me ensinou, e por muitos anos eu cumpri bem o princípio ensinado, que nunca se deve abandonar uma tarefa, uma vez iniciada. É possível, em muitos casos, rejeitar uma tarefa que alguém tenta nos impor. Mas, uma vez aceita, deve-se ir até o fim com ela: desistir, nunca. Logo, não abandonei a leitura do livro uma vez iniciada (como frequentemente o faço hoje).

Se a leitura obrigatória tivesse sido de um livro, não de “sermônica” (termo que prefiro hoje ao tradicional “homilética”), mas de exegese ou hermenêutica, eu o teria lido com prazer. Na verdade, com o maior prazer, se fosse de hermenêutica, e apenas com prazer simples, se fosse de exegese. O exegeta bíblico é um scholar, um erudito, um profissional que se preocupa com pormenores e detalhes linguísticos, que conhece muito bem as línguas bíblicas e as correlatas. O hermeneuta bíblico é um teólogo, um profissional que se preocupa muito mais com como conseguir fazer com que a Bíblia ainda fale para hoje, ainda que tenha que “torcer e espremer” um pouco o sentido original do exegeta… O sermonista, porém, é um popularizador… Suas habilidades maiores devem ser a do comunicador, que capta a atenção de uma audiência e não a perde durante os 30 minutos ou mais que dura um sermão. Nas seções seguintes discorrerei um pouco sobre esses conceitos meio ecléticos e, para o público em geral, frequentemente obscuros.

2. Exegese

Faz parte do trabalho de muita gente analisar textos e descobrir o que é que o autor quis dizer com aquilo que escreveu. Há casos em que o trabalho de uma pessoa se resume a isso. É esse o caso do chamado exegeta – isto é, a pessoa cujo trabalho é, basicamente, analisar textos e descobrir o seu sentido original. Mas é muito mais comum que pessoas que têm outras ocupações sejam obrigadas a fazer, de vez em quando, exegese.

Um advogado, por exemplo, faz exegese quando procura analisar um trecho de uma lei – digamos, da nossa Constituição Federal – e descobrir o seu sentido. O artigo 5o de nossa Constituição diz o seguinte, no caput e em seu Incisos XXII e XXIII :

Art. 5O – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

. . .

XXII – é garantido o direito de propriedade;

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”

Primeiro, o advogado pode se perguntar por que o legislador, que já havia garantido o direito à propriedade no caput, se sentiu obrigado a reiterar esse direito no Inciso XXII. Segundo, ele certamente se perguntará o que significa exigir que uma propriedade “atenda a sua função social”. E por aí vai. Ao se fazer essas perguntas e tentar reponde-las, o advogado estará fazendo exegese de um trecho de nossa Constituição. Juristas que se ocupam da Constituição fazem isso quase que o tempo todo.

Um crítico literário, ao escrever uma resenha (que, escrita por ele, só pode ser crítica) de uma obra literária (que, escrita por outrem, pode não ser altamente literária), tem de analisar o texto e tentar encontrar o seu sentido. Ao escrever sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, na tentativa de responder à pergunta se, na cabeça do autor, Capitu era inocente ou culpada, o crítico literário estará fazendo exegese do texto. Se o crítico descobrir, lendo outras fontes, que, uma vez, indagado acerca dessas questão, Machado teria respondido: “Talvez culpada, quem sabe se inocente?”, ele poderá se permitir a conclusão de que o autor não quis deixar a resposta à pergunta clara, explícita e definida, mas optou pela ambiguidade…

E um pastor, antes de elaborar seu sermão, deve escolher um texto bíblico no qual vai baseá-lo e prover a análise do texto com vistas à determinação do seu sentido. (Dizem as más línguas que a maior parte dos pastores decide que o vai dizer e depois procura um texto bíblico ao qual possa amarrar a sua mensagem. O texto, neste caso, é mais pretexto do que texto, propriamente dito).

Exegese, no fundo é isso. Na Exegese, a pessoa principal é o autor do texto. O que é que ele quis dizer para os seus contemporâneos?

3. Hermenêutica

Uma vez feita a exegese de um texto, surge a seguinte indagação: este texto, escrito, muitas vezes, em um tempo e lugar (contexto) muito diferentes do meu, me diz alguma coisa hoje, ele parece ainda fazer sentido para mim anos ou séculos depois de ter sido escrito, ele me ajuda a responder questões importantes que eu tenho hoje, em pleno Século 21?

Se, na Exegese, a pessoa principal é, ele, o autor do texto (“O que é que ele quis dizer para os seus contemporâneos?”) na Hermenêutica a pessoa principal passa a ser eu, não mais o exegeta, mas o intérprete daquele texto (muitas vezes antigo) para a situação atual, para a realidade de hoje.

Pode ser que, em muitos casos, quiçá a maioria, eu, como hermeneuta, não encontre nenhum sentido no texto do qual foi feita a exegese que valha a pena tentar relacionar com as questões e os problemas que hoje nos afligem. A Palavra dos Talentos, nos Evangelhos (Mateus 25:14-30 e Lucas 19:17-27), contada há mais de vinte séculos, pode ser usada, dois mil e tantos anos depois, para justificar a desigualdade socioeconômica de uma sofisticada sociedade capitalista pós-industrial? Ou será os contextos são diferentes demais para tentar fazer essa ponte entre o passado e o presente, entre ele, o autor, e mim, o intérprete do texto para a realidade atual?

O exegeta interessado no assunto procurará analisar o texto bíblico para descobrir o que ele diz acerca do sexo, do casamento, do incesto, das relações “homoafetivas”, que incluem as homossexuais, do divórcio, do casamento múltiplo, simultâneo ou em série, etc. Uma leitura ainda que superficial do trabalho de alguns exegetas atuais mostra que a Bíblia diz muitas e diferentes coisas sobre esses assuntos todos, nem sempre muito fáceis de compatibilizar e tornar coerentes.

O hermeneuta tem a ingrata tarefa de se perguntar se aquilo que a Bíblia diz sobre o assunto, acrescido daquilo que ela relata acerca de alguns dos principais heróis bíblicos, como Abraão, Isaque e Jacó, bem como Davi e Salomão, ainda têm algum sentido para a nossa sociedade, nesse sentido, “pós-moderna”…

O exegeta bíblico procurará descobrir qual era a visão do mundo das pessoas do longo período que a Bíblia abrange. Provavelmente concluirá que, para elas, o mundo era plano, em três andares, com a terra no meio, o céu em cima e o inferno embaixo. Para elas, sobe-se ao céu e desce-se ao inferno. Provavelmente descobrirá que, para o povo bíblico, muitas das doenças cujas causas naturais (biológicas ou mentais) são bem conhecidas hoje, eram atribuídas a possessão demoníaca, sendo curadas se o demônio responsável por ela fosse exorcizado da pessoa.

O hermeneuta mais uma vez tem a ingrata tarefa de se perguntar se essa visão do mundo ainda tem algum sentido para as pessoas do Século 21, e, caso seja afirmativa a resposta, qual é esse sentido.

Hermenêutica, em suma, é esse trabalho de “tradução de sentido” de um contexto para o outro. É relacionar o sentido que o autor procurou imprimir ao texto, lá e então, com as questões e os problemas de minha vida, aqui e agora.

4. Sermônica

Aquele que estou chamando de sermonista é o mesmo para quem John A. Broadus escreveu seu livro. Ele é aquele que prepara e apresenta (prega) sermões num contexto em que sermões, se não exigidos, são esperados.

Quando disse, atrás, que o trabalho do sermonista é o de popularizador e comunicador, não quis menosprezar o trabalho. Boa parte da minha vida exerci essa função, sendo pregador em igrejas, palestrante e conferencista em encontros e congressos, professor em sala de aula. Se tivesse sido advogado, provavelmente teria sido “advogado de júri”, aquele que tem a função de persuadir o júri da inocência de seu cliente… Todos esses sermonistas se baseiam em um texto cuja exegese foi feita por um exegeta e cujo sentido foi transportado para o caso e a situação em pauta por uma hermeneuta. Mas a linguagem da maior parte dos hermeneutas é rebuscada mas seca, cheia de termos difíceis mas sem ritmo, sem poesia, sem emoção… Suas orações são longas, cheio de intercaladas, raramente em ordem direta. É tarefa do sermonista conseguir que a audiência se interesse naquilo que os hermeneutas estão dizendo acerca de um texto não raro escrito em uma língua morta, que pouca gente hoje entende, cujo sentido foi extraído pelo exegeta. . .

Na sociedade espetáculo de hoje, não raro bons sermonistas são bem mais bem-pagos do que hermeneutas e os exegetas da mais alta qualidade.

5. Conclusoria

Enfim. É isso. Como disse, meu interesse maior está, pela ordem, em hermenêutica e em exegese. Como hermeneuta bíblico, tenho refletido muito sobre o livro de Eclesiastes, que parece ter uma visão cética, pessimista, niilista mesmo da vida, que parece muito difícil compatibilizar com outras partes, mais proeminentes, da mensagem bíblica.

Mas ganho minha vida, a maior parte do tempo, como sermonista. Por quase dez anos, preguei em igrejas. Por quase quarenta e cinco anos dei aulas em universidades. Por mais de trinta e cinco anos tenho dado palestras e feito conferências. (Esses anos todos têm sobreposições). Por isso, devo valorizar o prato em que tenho comido. O exegeta e o hermeneuta fazem seu trabalho no back office. Quem aparece no front office, ou sob a luz dos refletores e diante da lente das câmeras é o sermonista. E se ele não conseguir comunicar sua mensagem, os outros dois provavelmente terão trabalhado em vão.

Em São Paulo, 9 de Maio de 2014

[Transcrito no Blog História da Igreja (http://historiadaigreja.info) em 19 de Agosto de 2014]

[Transcrito aqui no Blog Theological Space (http://theological.space) em 11 de Setembro de 2015]

Como É que Eu Sei? O Desafio da Modernidade

[Mais um artigo que publiquei primeiro em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

1. O Conhecimento Face à Dúvida e ao Ceticismo

Consta que Kant, tido como o principal Filósofo da Modernidade, teria um dia escrito que os grandes problemas da Filosofia são (eu adapto):

  • Quem sou?
  • De onde venho?
  • Que faço aqui?
  • Para onde vou?
  • Como é que eu sei?

Desses cinco problemas, o último é o mais básico, porque perpassa os outros quatro — e a si próprio:

  • Como é que eu sei quem sou (se é que de fato eu sei)?
  • Como é que eu sei de onde venho (se é que de fato eu sei que venho de algum lugar)?
  • Como é que eu sei o que faço aqui (se é que de fato eu sei que faço alguma coisa aqui)?
  • Como é que eu sei para onde vou (se é que de fato eu sei que estou a caminho de algum lugar)?
  • Como é que eu sei essas coisas (se é que de fato eu as sei; e se eu as sei, como é que eu sei que sei)?

O problema do conhecimento se tornou uma obsessão para a Filosofia Moderna — a filosofia feita mais ou menos a partir da primeira metade do Século 17. René Descartes é considerado o Pai da Filosofia Moderna, e ele viveu de 31 de Março de 1596 a 11 de Fevereiro de 1650 — quase 54 anos. Ele inventou a “Dúvida Metódica”: colocar em dúvida tudo o que ele achava que sabia. . .

Reconhecer esse fato não implica, de forma alguma, que não tenha havido grandes discussões do problema do conhecimento antes do Século 17. Os gregos, em especial seus dois principais filósofos, Platão (que, provavelmente, nasceu em 428 e morreu em 348, AC, vivendo, portanto cerca de 80 anos) e Aristóteles (que nasceu em 384 e morreu em 322, AC, vivendo, portanto, 62 anos) discutiram muito esse problema — e outros correlatos. Data dessa época a famosa discussão acerca da distinção entre conhecimento (ἐπιστήμη ou γνῶσις) e opinião ou “achismo” (δόξα).

Mas foi no início da Era Moderna que o problema do conhecimento se tornou (para alguns) uma questão (quase) de vida e morte: Como é que eu sei que é a Terra que gira ao redor do Sol e não o Sol ao redor da Terra (como parece aos nossos sentidos e, antes do Século 15, sempre se acreditou)? Consta que Galileu Galilei (1564-1642), quando a Igreja Católica decidiu combate-lo, optou (para escapar da fogueira) por concordar com ela, afirmando continuar a acreditar que era o Sol que girava ao redor da Terra. Mas, para si mesmo, admitiu: “Mas eu sei que é a Terra que se move ao redor do Sol”. . .

Mas a questão epistemológica continuava: “Como é que eu sei que é a Terra que gira ao redor do Sol, quando para os meus órgãos dos sentidos é o Sol que parece girar ao redor da Terra?”. . . Com base em que eu abandono aquilo que eu pareço ver para acreditar numa teoria?

Essa questão foi se radicalizando (embora também essa radicalização tenha raízes gregas). . . Se, neste caso, eu posso deixar de acreditar na minha percepção sensorial, como é que eu sei que aquilo que eu pareço estar vendo na minha frente em qualquer ocasião de fato existe numa realidade externa a mim, e não é um simplesmente um “fantasma”, um “fenômeno”, uma “alucinação” que tem lugar exclusivamente na minha mente? Quando eu sonho, refletiu Descartes, eu imagino estar vendo toda sorte de coisas, pessoas, eventos — mas tudo aquilo está apenas dentro da minha mente, enquanto eu durmo, tranquilo, de olhos cerrados, numa cama confortável. Como é que eu sei que minha vida inteira, com todas as suas atrações, peripécias e perigos não é tão somente um sonho de minha mente, sonho que se desenrola enquanto eu durmo numa caminha simples, numa casa não atraente, e nunca realmente vivenciei, de fato, peripécias e perigos?

O problema vai além. . .

Até o início da Idade Moderna a maioria das pessoas acreditava que algumas coisas (estados de coisas, pessoas, etc.) são belas, outras feias. . . e que essas características, beleza e feiura, existem nas próprias coisas, a distinção entre o belo e o feio sendo real e objetiva. Mas várias pessoas, na Idade Moderna, passaram a acreditar que, de fato, “a beleza está no olho de quem olha. . .”. David Hume (1711-1776), filósofo escocês sobre o qual eu escrevi minha tese de doutoramento, de 1970 a 1972, que, segundo alguns, é o maior filósofo da língua inglesa que viveu até hoje, disse “A beleza não existe nas coisas, mas na mente que as contempla”. (Note-se que ele nem diz “na mente de quem as contempla”).

Mas o problema se estende ainda mais. . .

Até o início da Idade Moderna a maioria das pessoas acreditava que algumas ações são moralmente certas e outras, moralmente erradas, e isto em sua própria natureza, enquanto ação, sendo a distinção, portanto, entre ação moral e ação imoral, objetiva e absoluta (“absoluta” querendo dizer que não varia dependendo do tempo, do lugar, das circunstâncias). Mas várias pessoas, na Idade Moderna, passaram a acreditar que o certo e o errado, na moralidade, não está nas ações em si mesmas, mas, como já se reconhece no tocante aos hábitos alimentares, às vestimentas, e a outros usos e costumes, nos gostos e nas preferencias das pessoas, naquilo que elas optam por favorecer, naquilo que elas consideram atraente ou repulsivo, agradável ou detestável. Bertrand Russell (1872-1970), por muitos considerado o maior filósofo da língua inglesa depois de Hume, e por alguns incautos considerado uma das âncoras morais do Século 20, indagado acerca do que, nas ações de Hitler, ele considerava moralmente condenável, esclareceu que aquilo que o levara a se opor a Hitler era o fato de que ele não gostava do que Hitler havia feito. . . (Fica a implicação intrigante e mesmo revoltante: se uma outra pessoa gostasse do que Hitler havia feito, nada haveria, do ponto de vista moral, filosófico ou racional, que pudesse ser utilizado por Russell para convence-la de que estava, de fato, errada — pois gosto não se discute, de gustibus non est disputandum).

Russell era chamado de “O Hume Moderno”. Concordava com seu mestre que, na moralidade, não existem valores reais, objetivos, absolutos, mas apenas meros gostos e preferencias, explicáveis em termos de nossos sentimentos e sensações de atração ou repulsa.

Hume também está na raiz de uma crença ou postura, bastante difundida no Século 20, de que a razão é uma faculdade preciosa, mas que ela é apenas “instrumental”, isto é: opera apenas no “reino dos meios”, não no “reino dos fins”. Assim, dado um fim qualquer, a razão (da qual faria parte a chamada “razão científica”) tem condições de determinar quais os melhores meios de alcança-lo. Mas a razão, sendo instrumental, não tem condições de avaliar se o fim em questão é bom, correto, digno, ou melhor do que qualquer outro fim. . . Se o fim é o poder a qualquer preço, a razão pode ditar os meios a serem utilizados para que esse fim seja alcançado, mas fica silente quanto aos méritos do fim em si. . .

Se é parte da herança da Modernidade que devemos duvidar até mesmo das coisas que observamos, manter-nos céticos até mesmo acerca daquilo que vemos, quanto maior será a dúvida e o ceticismo dos modernos acerca do inobservável, do invisível, daquilo que, por definição, jaz além da observação dos sentidos? Se o natural cai dentro do reino da dúvida e do ceticismo, o sobrenatural e o metafísico ficam totalmente fora do admissível. Aí se incluem Deus, espíritos em geral, ruins ou bons, a alma humana e sua suposta imortalidade. . . Para ser imortal, a alma teria de existir — e como é que eu sei que ela existe, como é que eu sei que, possivelmente, não é apenas o cérebro e o seu sistema nervoso que explica tudo? E se a alma é apenas o cérebro, ela morre com ele e a questão da imortalidade da alma não faz sentido.

2. E a Fé uma Alternativa Viável?

Diante da defesa, por parte da Filosofia Moderna (com o apoio da Ciência Moderna), da dúvida e do ceticismo em relação à religião, em geral, e ao sobrenatural, em particular, ficou difícil, para os teólogos cristãos, continuar a manter a tese de que a razão tem um papel importante na Teologia Cristã.

A. Razão e Fé em Pé de Relativa Igualdade

Tradicionalmente, tínhamos, na Teologia, pelo menos desde Tomás de Aquino (1225-1274), a defesa de uma síntese entre a Razão e a Fé, ou entre a Razão e a Revelação.

Segundo Tomás de Aquino, há basicamente duas formas de conhecer a Deus — e, consequente, de fazer Teologia. Uma, baseada na razão, outra baseada na revelação. Essa tese era importante para ele porque ela permitia que até mesmo os que viveram muito antes do Cristianismo não tivessem desculpa para não acreditar em Deus. A razão humana, desassistida da revelação, e, por conseguinte, da fé, seria capaz de determinar que Deus existe e quais são suas características negativas essenciais (embora a razão não seja capaz de ir além da existência e da negação de algumas características essenciais: Deus não é material, não é corpóreo, não é mortal, não é falível, não é mau, não é ignorante, não é limitado, etc.). Tomás escreveu uma obra inteira apenas desse tipo de Teologia Natural Negativa: a Summa Contra Gentiles.

Para irmos além desse mínimo, é necessário que Deus se revele — e, felizmente, segundo Tomás de Aquino, ele o fez. Essa revelação está contida na Bíblia, que deve ser entendida como a sua palavra. Para Tomás, a Bíblia pressupõe a razão e nunca vai contra ela — indo, porém, além dela, sem a contradizer. Para ele, em relação à razão, é possível diferenciar três tipos de enunciados:

  • Secundum rationem: aquilo que é racional, pois é derivado da razão;
  • Contra rationem: aquilo que é irracional, pois contraria a razão;
  • Supra rationem: aquilo que é não é nem racional (secundum rationem) nem irracional (contra rationem), porque está além da razão (supra rationem), tendo nós boas razões para aceita-lo.

A revelação se encaixa nessa terceira categoria: o conteúdo da revelação não contraria a razão: se aparentar faze-lo, devemos interpreta-lo de outra forma, de modo a que deixe de contrariar a razão.

Não poderíamos nós, diante de algo que não é nem racional nem irracional, simplesmente suspender o nosso juízo e nem aceitar nem recusar, nem crer nem descrer? Tomás é contra essa postura, por pelo menos três razões:

  • Primeiro, porque o conteúdo da revelação, embora não alcançável pela razão, enriquece e apoia o que nossa razão é capaz de descobrir acerca da moralidade, da vida, etc.
  • Segundo, a epistemologia de Tomás de Aquino deixava aberta a possibilidade de milagres, não os definindo como impossíveis, muito menos como incríveis;
  • Terceiro, porque o conteúdo da revelação traz, consigo, evidências de autoria divina, como por exemplo, os milagres que teriam acompanhado essa revelação. [Tomás não se preocupa com o fato de que o relato dos milagres que autenticariam a origem divina da revelação está contido na própria revelação.]

A epistemologia de Tomás é basicamente aristotélica. Ela parte do pressuposto de que somos capazes de conhecer a essência das coisas, isto é, aquilo que elas são em mesmas e aquilo que elas são capazes de fazer por si próprias. Isso vale também para o ser humano. Se algo acontece na realidade que vai além daquilo que qualquer coisa natural (o ser humano incluído) é capaz de fazer, podemos concluir, com convicção e certeza, que a natureza, deixada a si própria, não seria capaz de produzir aquele acontecimento, que, por conseguinte, só pode ser entendido como milagre — que é definido como uma suspensão (não uma violação) das leis naturais.

Segundo Tomás, portanto, tanto a razão como a revelação são fontes legítimas de conhecimento teologicamente relevante (acerca de Deus, da alma, do que é certo fazer, etc.) que convivem pacificamente, sem que uma contrarie a outra. Embora a revelação não seja secundum rationem, ela não é contra rationem, sendo, portanto, racional em um sentido mais fraco: não é derivada da razão mas também não conflita com ela.

Aqui, nessa posição, embora a razão e a fé sejam ambas fontes de conhecimento teológico, o conhecimento de Deus baseado na razão pode, oportunamente, levar à fé. A razão, assim, pode servir como ponte para a fé. Por isso, por vezes essa posição é chamada de intelligo ut credam: entendo, para poder vir a crer.

Uma consequência dessa forma de ver a relação entre razão e revelação é que Tomás acredita que a verdade é una e rejeita a teoria da “dupla verdade”, que, comum na parte final da Idade Média, postula que algo pode ser verdadeiro na Filosofia, mas falso na Teologia, ou vice-versa.

Essa visão de síntese entre razão e revelação (ou fé) tem outra consequência interessante, esta na área da moralidade. Como a revelação divina não contraria a razão, Deus não pode dar comandos morais que sejam contrários à razão — ainda que eles sejam acima da razão.

Isso faz com que, na Teologia Cristã, tenha surgido a tese de que mesmo o próprio Deus está sujeito à moralidade racional. Assim, um curso de ação não é moralmente certo porque Deus o comande — pelo contrário: Deus o comanda porque esse curso de ação é moralmente certo (numa visão racional). De igual modo, um curso de ação não é moralmente errado porque Deus o proíba — pelo contrário: Deus o proíbe porque esse curso de ação é moralmente errado (numa visão racional). Essa é a famosa controvérsia do prohibita quia mala (a conduta é proibida [por Deus] porque é errada) vs mala quia prohibita (a conduta é errada porque é proibida [por Deus]).

B. A Razão como Serva da Fé

Anselmo de Cantuária (1033-1109), que viveu cerca de duzentos anos antes de Tomás de Aquino, tinha uma visão diferente do papel da razão na revelação, e, por conseguinte, na Teologia. Para ele, a primazia era da Revelação — e a razão não passava de uma serva da fé. Essa visão acabou por caracterizar a Filosofia como a serva, a handmaid, da Teologia. As raízes dessa posição, porém, já podem ser encontradas em Agostinho (354-430).

Para ele, a revelação divina não é algo que se entende automaticamente, bastando ler ou ouvir. É necessário, muitas vezes, que a razão intervenha para esclarecer, elucidar, tornar inteligível a revelação. Por isso o seu lema: fides quaerens intellectum (a fé que busca o entendimento). Karl Barth (1886-1968), já no Século 20, escreveu um interessante livro sobre Anselmo, com esse título em Latim. Um outro título para essa posição é credo ut intelligam: creio para que possa vir a entender.

Aqui, dá-se por pressuposto que a revelação está contida na Bíblia e admite-se a necessidade da razão para entender a Bíblia (não para questiona-la).

No Século 19, o grande teólogo reformado americano Charles Hodge (1797-1878) adotou estratégia metodológica mais ou menos semelhante. Para ele, a Teologia é uma ciência — tão rigorosa como a Física. A diferença entre a Teologia e a Física está no fato de que, nesta, os fatos que ela analisa e sistematiza são dados pela observação, enquanto na Teologia eles vêm prontos, empacotados, como se fosse, na Escritura Sagrada. Dados os fatos, o resto — analisar e sistematizar os fatos — é trabalho exclusivamente da razão.

Eis o que ele diz na primeira página de sua obra monumental, Systematic Theology:

“Da mesma forma que a natureza não é um sistema de química ou de física, a Bíblia não é um sistema de teologia. Encontramos na natureza os fatos que o químico e o físico precisa analisar, e, a partir deles, inferir as leis pelas quais eles são determinados. Da mesma forma, a Bíblia contém as verdades que o teólogo precisa coletar, autenticar, arranjar, e apresentar em seu relacionamento umas com as outras. Aqui se encontra a diferença entre teologia bíblica e teologia sistemática. A tarefa da primeira é descobrir e enunciar os fatos contidos na Escritura. A tarefa da teologia sistemática é, com base nesses fatos, determinar sua relação uns com os outros e com outras verdades cognatas, bem como vindica-los, mostrando sua harmonia e consistência. Essa tarefa não é fácil nem de pequena importância” [pp. 1-2].

“A Bíblia é para o teólogo aquilo que a natureza é para o cientista. É o depósito de fatos. E o seu método para averiguar o que a Bíblia ensina é o mesmo método que o cientista adota para averiguar o que a natureza ensina” [p. 10].

“O verdadeiro método da Teologia é, portanto, o indutivo, que pressupõe que a Bíblia contém todos os fatos ou verdades que foram o conteúdo da Teologia, da mesma forma que os fatos da natureza são o conteúdo das ciências naturais. Também se assume que a relação desses fatos bíblicos um para com o outro, e os princípios neles envolvidos, estão contidos nos próprios fatos, e devem ser deduzidos deles, da mesma forma que as leis da natureza são deduzidos dos fatos da natureza. Em nenhum dos dois casos os princípios derivados da mente são impostos sobre os fatos, mas, de igual forma, tanto na teologia como nas ciências naturais, os princípios ou leis são deduzidos dos fatos e reconhecidos pela mente” [p. 17].

Para realizar a tarefa descrita ao final da primeira citação, as duas teologias, a bíblica e a sistemática, fazem uso imprescindível da razão. Mas a razão, por si só, não seria capaz de descobrir os fatos (“as verdades”) que a Escritura revela. O método da teologia é, para Hodge, tão racional e científico quanto o da química e da física. Tanto uma como as outras fazem uso do método indutivo. Mas a razão não descobre fatos, e muito menos os constrói, seja na teologia, seja nas demais ciências. Nestas a descoberta de fatos é feita pela observação; na teologia, os fatos são revelados por Deus e estão contidos na Bíblia.

C. Fideísmo, ou Credo Quia Absurdum

No início da era cristã um teólogo chamado Tertuliano defendia a tese de que os cristãos não devem pretender que a razão seja capaz de descobrir, desassistida pela revelação, os mistérios do Cristianismo. Para ele, não há nada em comum entre Jerusalém e Atenas, entre a Teologia e a Filosofia. Esta lida com o conhecimento, aquela com a fé.

A fé, para ele, não era um estágio anterior ou posterior ao da razão: era algo totalmente distinto. Quando não se tem como justificar um enunciado por um apelo a evidências, ou não se está interessado em faze-lo, a única alternativa é reconhecer que, se aceitarmos esse enunciado, a aceitação terá de ser cega, totalmente pela fé, como um salto no escuro. Afirmar que determinado enunciado foi aceito pela fé, portanto, não é uma forma justificar a sua aceitação: apenas explica que a aceitação foi feita sem apelo a evidências, ou porque se acredita que elas não existam, ou porque se escolheu não leva-las em conta.

Tertuliano chegou mesmo a dizer, ecoando parcialmente o apóstolo Paulo, que acreditava no Cristianismo porque o Cristianismo era absurdo. Kierkegaard (1813-1855), no Século 19, foi quem afirmou que a fé é sempre um salto no escuro: se houver evidência, se houve apoio da razão, ela deixa de ser fé.

Para os que acreditam assim, que normalmente são chamados de Fideístas, os racionalistas do Iluminismo fizeram ao Cristianismo um grande favor mostrando inexistirem argumentos, evidências e boas razões para sua aceitação. Mostraram, assim, que apenas a fé cega, a fé do tipo “salto no escuro”, explica sua aceitação.

Neste caso, a única resposta à pergunta “Como é que eu sei?” é “Eu não sei” — mas resolvi, de qualquer forma, apostar.

No Século 16 Pascal (1623-1662) resolveu mostrar que a aposta, afinal, não é tão cega, tão racional.

Segundo ele, temos basicamente, a seguinte alternativa: Crer ou não crer.

Se não cremos, existem duas possibilidades: o Cristianismo é falso (ou Deus não existe) ou o Cristianismo é verdadeiro (ou Deus existe). Na primeira hipótese, não ganhamos nada não acreditando; na segunda, vamos nos dar muito mal.

Se cremos, também existem duas possibilidades: o Cristianismo é falso (ou Deus não existe) ou o Cristianismo é verdadeiro (ou Deus existe). Na primeira hipótese, não perdemos nada acreditando; na segunda, ganhamos o “jack pot”, o maior prêmio da casa.

Assim sendo, há, segundo ele, boa razão para se apostar, mesmo cegamente, que o Cristianismo é verdadeiro (ou que Deus existe): não perdemos nada se estivermos errados e ganharemos tudo se estivermos certo. Por outro lado, se apostamos que o Cristianismo é falso (ou que Deus não existe), não ganhamos nada se estivermos certos e perdemos tudo se estivermos errados.

Ainda é tempo de apostar. . .

Em São Paulo, 26 de Março de 2015

Transcrito aqui em 8 de Setembro de 2015

Doutrina, Ortodoxia, Dogmatismo, Intolerância, e Repressão: Tentativas de Engaiolar o Pensamento

[Mais um artigo publicado primeiro em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space), com um título ligeiramente diferente. É uma singela homenagem ao meu dileto amigo Rubem Alves, que havia morrido dias antes de eu escrever o artigo, que aborda temas que  sempre lhe foram caros, vítima que foi (como eu também e tantos outros), na Igreja Presbiteriana do Brasil, da ênfase na doutrina e na ortodoxia, que infalivelmente resultam no dogmatismo, na intolerância e na repressão.]

1. Tecnologia e Religião

Tecnologia e Religião são duas coisas que, à primeira vista, parecem não ter muita relação uma com a outra. No entanto, uma das tecnologias mais importantes para a humanidade, a prensa de tipo móvel (tipografia), criada por Johannes Gutenberg em 1455, por aí, foi inventada com uma motivação claramente religiosa – mais especificamente, cristã.

Em primeiro lugar, é conhecido de muitos o fato de que o primeiro livro impresso por Gutenberg em sua máquina foi a Bíblia.

A alguns isso parecer apenas um fato fortuito, decorrente apenas da popularidade da Bíblia. Mas não é.

Se fomos ler o prefácio que Gutenberg escreveu à sua Bíblia, encontraremos nele uma segunda razão para a tese de que sua motivação, ao inventar a tipografia, era profundamente religiosa. Eis o que ele diz:

“Deus sofre por causa da multidão de almas que sua palavra não pode alcançar. A verdade da nossa religião está aprisionada nas páginas de uns poucos livros copiados a mão, e isso limita e mesmo confina, em vez de esparramar, um tesouro que deveria ser público e estar nas mãos de todo mundo. Vamos quebrar o selo que hoje prende as palavras santas e dar asas à verdade, para que ela possa conquistar, a partir de agora, através da palavra, cada alma que venha ao mundo — palavra não mais copiada lenta e custosamente por mãos que podem ser facilmente paralisadas, mas multiplicada como o vento por uma máquina que nunca se cansa” (apud Ministry in the Digital Age, de David T. Bourgeois).

A intenção de Gutenberg era, portanto, mais do que apenas religiosa: era missionária.

É verdade que ele, aparentemente, concebia o trabalho missionário como se limitando a divulgar a Bíblia . . . ainda por cima em Latim, uma língua que a maioria das pessoas não lia, naquela época. (Na verdade, a maioria das pessoas não lia em nenhuma língua naquela época). O trabalho de Gutenberg teve de ser completado, por exemplo, por Martinho Lutero, que devotou alguns anos de sua vida traduzindo a Bíblia para a língua do seu povo, o Alemão.

2. Teologia e Educação

Apesar de Lutero defender a tese de que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si próprio, segundo a sua consciência, iluminada pela razão (conforme mostrei em artigo anterior neste blog), ele, embora inicialmente fosse ingênuo a ponto de crer que apenas colocando a Bíblia na mão do povo, numa língua que o povo oralmente entendesse, era suficiente, mais tarde percebeu que mais era necessário — e foi adiante: criou escolas ao lado das igrejas luteranas para que crianças e adultos aprendessem a ler, e, assim, pudessem ler a Bíblia. E ele tinha consciência de que, mesmo sabendo decodificar a linguagem escrita, muitos leem, mas não entendem o que leem (vide Atos 8:26-27: “Entendes tu o que lês?”). Por isso, para ele, a Igreja Protestante (em especial a sua, a luterana) tinha um “ministério educacional”, entre outros. Na Igreja Presbiteriana, calvinista, o pastor é até mesmo chamado de o “presbítero docente”… A igreja e, nela, o pastor, devem ajudar o crente a entender o que lê (e até mesmo o que ouve).

Há uma diferença sensível entre afirmar, no estilo Magister dixit, que o Papa ou o clero são os únicos credenciados e autorizados a interpretar a Bíblia, e que, no caso do Papa, sua interpretação, quando feita oficialmente (ex cathedra), e envolvendo questão de fé ou de prática (moralidade), é infalível, e, portanto, inerrante, e afirmar, por outro lado, que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si, mas pode estar errado, e que, portanto, é preciso disponibilizar, portanto, para quem precisar ou desejar, apoios, ferramentas e serviços para que possa entender o que lê (o que ouve, o que vê…).

3. Protestantismo e Ortodoxia

É verdade que, no devido tempo, já começando durante a vida de Lutero e de Calvino, o Protestantismo desenvolveu uma Ortodoxia, uma ideia de qual é a recta doctrina que a Bíblia contém… E a ideia continua a prosperar entre nós…

Rubem Alves escreveu dois magníficos livros sobre esses temas:

Primeiro, Protestantismo e Repressão (publicado em 1979, pela Editora Ática). Cerca de 25 anos depois, em 2005, o Rubem reeditou esse livro com um novo título, mais genérico: Religião e Repressão (publicado agora pela Edições Loyola, editora católica, em coedição com a Teológica).

Segundo, Dogmatismo e Tolerância (publicado em 1982, ironicamente por uma editora católica, a Paulinas).

4. Ortodoxia e Intolerância

Há duas atitudes básicas em relação à verdade: a de quem constantemente a busca, e a de quem acredita que já a encontrou.

O ortodoxo é aquele que acredita que a encontrou e que tem posse dela.

A ideia de que encontramos a verdade não seria tão perigosa se não fosse acompanhada da crença de que somos os únicos a tê-la encontrado e que temos posse exclusiva dela. Quando nos imaginamos os únicos possuidores da verdade – da recta doctrina – e a verdade da qual somos exclusivos possuidores é a única, a tendência é nos tornarmos dogmáticos: rejeitamos a ideia de que a verdade pode ter muitos lados, que é possível vê-la de várias perspectivas, e que, por isso, é preciso sempre continuar a busca-la. . .

Se não adotarmos essa atitude – podemos chama-la de liberal – o resultado é a intolerância. Imaginamos que não devemos tolerar pontos de vista divergentes, porque eles serão necessariamente errôneos, visto que a verdade está exclusivamente conosco.

5. Intolerância e Repressão

Da intolerância para a repressão a distância é mínima. Reprimir aquilo de que discordamos parece até uma virtude para aquele que se acredita dono da verdade – pois seria uma forma de evitar ou extirpar o erro.

Provavelmente foi com base num raciocínio mais ou menos assim que Calvino concluiu que não devia impedir que Michel Servetus fosse queimado numa fogueira.

O Rev. Joás Dias de Araújo, falecido recentemente, escreveu em 1975 um livrinho chamado Inquisição sem Fogueiras, sobre os expurgos que a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) fez nos seus quadros, presentes e futuros, durante a Ditadura Militar, na época ainda em pleno vigor (com um luterano na Presidência da República).

6. Homenagem ao Rubem Alves

Na dedicatória que apôs à cópia de Protestantismo e Repressão que me deu em 1979 (faz 35 anos este ano), o Rubem Alves escreve: “Ao Eduardo, em memória de um passado comum”. A dedicatória vem logo acima do mote do livro, uma linda passagem de Leszek Kolakowski, muito amada pelo Rubem, e que ele citou em mais de um livro:

“Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta a tolerar ideias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela s abster de usar quaisquer meios para atingir o alvo que ela julga correto?”

Rubem Alves ressalta, em sua “Nota Preliminar” que a “Ortodoxia Protestante”, com seus “mecanismos de controle de pensamento e repressão do comportamento, [está] em evidente oposição à tradição ideológica clássica do Protestantismo, com sua ênfase na liberdade de consciência, livre exame e democracia”.

Entre Protestantismo e Repressão, de 1979, e sua reedição como Religião e Repressão, em 2005, Rubem Alves mudou profundamente sua atitude para com a religião… Deixou de trata-la como objeto de um discurso acadêmico, científico, rigoroso, para trata-la mais como poesia, como literatura. . .

Na nota “Trinta Anos Depois” cita Fernando Pessoa e conclui que “somos assim”: sonhamos voar, mas temos medo das alturas, sonhamos com a liberdade, mas preferimos o abrigo seguro das certezas…

Afirma, na mesma nota, que as religiões, em regra, têm tendência de se tornarem gaiolas que procuram prender pássaros que gostam de voar. Em geral, os hereges “são os pássaros que recusam as gaiolas de palavras que os prendem, que falam palavras proibidas”.

Continua ele, em espírito de confissão: “Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava dela. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura”.

Sua nota é um desabafo… Registra que, durante a Ditadura Militar, os grupos protestantes que, no Brasil, “anda[vam] sempre a pé”, “se apressaram a montar na garupa dos militares” – e, além de expulsa-los de seus seminários, resolveram entregar ao poder secular “os seus hereges, sob a acusação de subversão e comunismo”.

Ironicamente, a Igreja Católica que, na época da Reforma, declarou Lutero herege e o excomungou e perseguiu, por pouco não o colocando na fogueira, tornou-se, no Brasil da Ditadura Militar, “uma gaiola com portas abertas”, encarnando, como diz o Rubem Alves, “o espírito libertário que se encontra nas origens do protestantismo”.

Mas o Rubem conta que um dia perguntou a Dom Helder Câmara se não haveria “um lugarzinho” para ele na Igreja Católica… A resposta de Dom Helder foi realista, sem nenhum romantismo: “Não se engane. É tudo igual…”. Triste. A porta da gaiola gradualmente se fechou e calou os que “ensaiavam cantos diferentes”, aos quais se impôs o famigerado “silêncio obsequioso”. Pior do que tapar a boca de alguém é exigir que ele próprio a mantenha fechada. . .

“Para engaiolar a verdade”, conclui Rubem Alves, “é preciso engaiolar a liberdade e o pensamento”.

Que falta ele nos vai fazer.

Data em que escrevi: em São Paulo, 29 de Julho de 2014

Em São Paulo, 20 de Maio de 2015

Transcrito aqui em 8 de Setembro de 2015

De Interpretatione — da Lei e Outros Textos (inclusive a Biblia)

[Mais um artigo que foi publicado primeiro no meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

Excelente artigo de Conrado Hübner Mendes sobre hermenêutica jurídica na Folha de hoje. Espero achar tempo para discuti-lo, como merece, nos próximos dias. Os princípios enunciados não se aplicam, naturalmente, apenas à lei (muito menos apenas à Constituição): aplicam-se a qualquer texto, inclusive à Bíblia e a outros escritos sagrados.

No caso jurídico, o assunto tem sido objeto de acalorada controvérsia nos Estados Unidos, onde, a cada escolha de um novo membro da Suprema Corte. De um lado estão aqueles que acham que os textos, inclusive jurídicos e principalmente constitucionais, de certo modo falam por si mesmos e têm apenas um sentido que aparentemente literal e evidente: os juizes apenas o explicitam e aplicam. Do outro lado estão aqueles que acham que os textos – quaisquer que sejam – sempre admitem mais de uma interpretação, e que, além disso, há, na área jurídica (como em qualquer outra, inclusive na Bíblia), normas que estão em tensão umas com as outras, tensão essa que chega às raias da contradição aberta. O trabalho dos que interpretam a lei, portanto, não é um trabalho semi-mecânico de explicitar o sentido literal da lei e aplicar o que ela diz. Aquilo que a lei diz muitas vezes não é claro, outras vezes duas leis razoavelmente claras conflitam uma com a outra. A constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ordinária raramente é assunto pacífico e incontroverso. Diante desses fatos, quem interpreta a lei muitas vezes participa de sua construção – em outras palavras, legisla no lugar do legislador…

É isso.

O assunto se tornou candente aqui no Brasil em relação à questão da decisão do Supremo de que é possível aplicar a homossexuais o estatuto da união estável – e que, portanto, é cabível (do ponto de vista constitucional) falar em uma família composta por duas pessoas do mesmo sexo e não apenas por um homem e uma mulher.

E, no entanto, a Constituição Federal afirma, no Art. 226, § 3º:

“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Esse dispositivo claramente determina que um homem e uma mulher em união estável sejam considerados uma família, para efeito da proteção do Estado.

Mas preclui ou impede que dois homens ou duas mulheres que vivem juntos de forma continuada e estável sejam também sejam considerados uma família, para efeito da proteção do Estado?

Há gente que pensa que sim. Mas o Supremo disse que não.

De Interpretatione é, naturalmente, o título, em Latim, de um livro famoso de Aristóteles.

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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3105201107.htm

Folha de S. Paulo
31 de Maio de 2011

TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre heróis e demagogos?

CONRADO HÜBNER MENDES

Argumento jurídico não é um detalhe decorativo com o qual enfeitamos preferências políticas, mas raramente será mera repetição do texto legal

Há quase três meses, terminava um importante capítulo do caso da Lei da Ficha Limpa no Supremo Tribunal Federal: o tribunal, por seis votos a cinco, entendeu que a referida lei não se aplica às eleições de 2010. Nesta Folha, no dia 24/3, duas reações vieram à tona.

Eliane Cantanhêde entendeu que a decisão representava “a vitória da lei, da experiência e da técnica jurídica sobre o apelo fácil da demagogia”. Para ela, o grupo dos seis ministros não teria se curvado, tal como os outros cinco, ao “clamor popular e do aplauso fácil”. Teria tido a “coragem de enfrentar as câmeras e as críticas”.

Páginas adiante, o professor Joaquim Falcão nos oferecia leitura mais comedida. Explicava que a controvérsia diz respeito à escolha entre dois artigos constitucionais, que levaram, respectivamente, a duas posições opostas no caso.

Aplicar a Constituição, para ele, é “ato de vontade do ministro. (…) Há flexibilidade interpretativa”.

O contraste entre as duas reações não poderia ser mais ilustrativo. A primeira evoca um mito tão antigo e universal quanto persistente sobre o Estado de Direito.

Segundo esse mal-entendido, caberia ao juiz deixar suas inclinações de lado e respeitar a letra da lei, um ato certo e mecânico. Virtude e preparo técnico, assim, seriam suficientes para que a “verdadeira resposta” seja descoberta nas entrelinhas do texto legal, sem interferência da vontade.

Essa visão é conveniente para os dois lados: de um, o juiz deixa de ser inquirido pelas escolhas interpretativas que faz, pois as apresenta como resultados naturais da técnica jurídica que o público leigo não domina; de outro, o público leigo se vê dispensado da árdua tarefa de ler as decisões, pois, a não ser que o juiz seja desonesto, elas corresponderiam ao comando único da lei. Juízes virtuosos e bem treinados, portanto, bastariam para a saúde dessa engrenagem.

Há poucos dias, de forma unânime, o STF determinou a extensão da união estável para casais homossexuais. Celebramos o avanço, uma custosa e demorada vitória dos direitos individuais sobre a inércia crônica e mal fundamentada do Congresso. Sobretudo mal fundamentada.

O STF está dividido no primeiro caso e unido no segundo. Cabe agora refletir sobre o significado dessa diferença e acompanhar como o Congresso reagirá nos dois casos.

Não foi o bem que venceu o mal, nem a técnica jurídica que prevaleceu sobre o casuísmo medroso, populista ou intolerante. A “letra da lei”, em ambos os casos, não é tão óbvia. Ao contrário, ela acaba de ser (e continuará a ser) escrita pelo próprio tribunal, por mais curioso que isso possa parecer.

Não teremos um debate maduro sobre nossa jurisprudência constitucional enquanto não percebermos essa característica elementar.

Rejeitar aquele confortável mito do juiz que faz valer a “letra da lei” traz desafios importantes para a prática do jornalismo judicial, da pesquisa acadêmica e para o exercício da própria cidadania. Decisões do STF podem e devem ser elogiadas ou criticadas, mas há maneiras mais ricas de fazê-lo.

Argumento jurídico não é, por certo, um detalhe decorativo com o qual enfeitamos nossas preferências políticas, mas raramente será, por outro lado, mera repetição do texto legal. Somente avaliando os argumentos que os ministros apresentaram em cada caso, entre tantos outros casos da agenda do Supremo Tribunal Federal, poderemos avançar na discussão. E os “derrotados” merecem tanta consideração quanto os “vitoriosos”.

CONRADO HÜBNER MENDES, doutor em filosofia do direito pela Universidade de Edimburgo (Escócia) e doutor em ciência política pela USP, é professor licenciado da Direito GV.

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Em São Paulo, 31 de Maio de 2011

Transcrito aqui em São Paulo, 8 ed Setembro de 2015