Divina Providência ou Acaso?

Hoje (29/11/2016), na verdade, ontem, porque já passa bem de meia-noite, tive um dia assim meio de cão. Senti-me mal o dia inteiro – e o sentimento ainda não foi embora.  Apesar de já serem três da manhã de 30/11/2016 (e o telefone estar setado para me acordar às 5h30), não consigo dormir.

Sei que o sentimento está ligado à queda do avião em que estava o time da Chapecoense, mas tive alguma dificuldade para definir exatamente por que esse acidente me pegou assim tão mal. Pelo jeito, pegou muita gente mal. O William Waack, que apresentou um brilhante Jornal da Globo, agora há pouco, estava tão arrasado que nem conseguia falar direito. O Cuca, técnico do Palmeiras, também estava arrasado. Disse, em entrevista, que o título que ganhou domingo, contra o mesmo Chapecoense, perdeu toda a graça, e que o daria de bom grado de volta se pudesse trazer o time do Chapecoense de volta para a vida…

Conversando com a Paloma, minha mulher, e ao mencionar o episódio do goleiro Danilo, que discuto mais adiante, ela me lembrou de coisas que já escrevi, em especial sobre o filme MatchPoint, de Woody Allen. Transcrevo a seguir o que escrevi num artigo com o título “Sorte” (Sorte é o lado bom do Acaso; o lado mau é o Azar):

O filme MatchPoint, de Woody Allen, começa com uma cena instigante: um jogo de tênis, em que a bola vai de um lado para outro da quadra e volta, várias vezes, até que bate na parte de cima da redinha e sobe – e a cena é congelada com a bolinha no alto. Uma voz, em off, diz:

“O homem que disse ‘Prefiro ter sorte a ser bom’ tinha uma visão profunda da vida. As pessoas têm medo de enfrentar o fato de que uma parte grande de nossa vida depende da sorte. É assustador imaginar que tanto, em nossa vida, escapa, ou pode escapar, do nosso controle. Há momentos numa partida de tênis em que a bola bate no topo da rede, e, por uma fração de segundo, pode ir para frente ou cair para trás. Com um pouco de sorte, ela vai para frente, e você ganha o jogo. Mas nem sempre isso acontece. Há vezes em que ela cai para trás, e você perde.”

(https://liberal.space/2006/06/04/sorte/; cito a mesma passagem em outro artigo, este sobre o que se chamou na época de “A Tragédia da Escola do Realengo” – que é o título do artigo: https://liberal.space/2011/04/09/a-tragedia-da-escola-do-realengo/.

Por que essa citação é relevante à minha condição hoje? Por duas razões:

Primeiro, porque ela nos lembra de que temos muito pouco controle sobre nossa vida e de que nossa vida está sempre por um fio. A citação fala em “Sorte”. Prefiro, aqui neste artigo, falar em “Acaso”, que cobre tanto a Sorte, seu lado bom, como o Azar, seu lado mau (Vide, a propósito, outro artigo meu: “Desemprego e Informática: Sorte e Azar”, https://liberal.space/2007/09/07/desemprego-informatica-sorte-e-azar/).

Segundo, porque uma coisa que pode parecer, num momento, a melhor coisa que aconteceu em nossa vida (“a maior sorte”!), pode, na sequencia, vir a se tornar parte de uma cadeia causal que põe fim em nossa vida (“o maior azar”).

A classificação da Chapecoense para a final da Copa Sul-Americana certamente deve ter parecido, para os jogadores do time, a melhor coisa que poderia ter acontecido em sua vida – e com alguma razão. No entanto, essa classificação colocou os jogadores do time em uma sequência causal que os matou – a quase todos.

Fico pensando, especialmente, naquela magnífica defesa do Danilo (o goleiro) no finzinho do jogo contra o San Lorenzo, que colocou o Chapecoense na final. Milagrosa, a defesa, foi como muitos a qualificaram. Foi sorte, disseram outros, porque a bola bateu no pé dele e se desviou do destino certo que tinha, o gol. Sorte??? Hoje sabemos que, se a bola tivesse entrado no gol, o Danilo e seus colegas estariam ainda vivos – fora da final da Copa Sul-Americana, mas vivos. O que parece, num momento, a melhor coisa, a maior sorte, pode parecer, dali a pouco, a pior coisa, o maior azar.

Como saber? Não há como. Essas coisas dependem de nosso Weltanschauung, Worldview, Visão de Mundo…

Isto me traz a ainda um outro artigo que escrevi, há quase exatamente três anos, perto do Dia de Ação de Graças de 2013, com o título  “Dia de Ação de Graças / Thanksgiving Day (em comemoração do dia que está chegando)”:

Aqui vai um trecho surpreendente de um livrinho de Schopenhauer, que tem o título não menos surpreendente de “Especulação Transcendente sobre a Aparente Intencionalidade do Destino do Indivíduo”. ( . . .)

“Ao olhar para trás sobre o curso de nossa própria vida, a gente constata que encontros e eventos que, quando se deram, pareciam fruto do acaso, vieram a se tornar aspectos estruturantes de uma história de vida não-intencional, através dos quais as potencialidades do nosso caráter foram tomando forma e se transformando em realidade. Ao se dar conta disso, é difícil resistir à conclusão de que o curso de nossa biografia se assemelha ao enredo de uma obra de ficção habilmente construída. E a gente fica apenas imaginando quem pode ter sido o autor desse enredo tão surpreendente!”

[Arthur Schopenhauer, “Transcendent Speculation upon an Apparent Intention in the Fate of the Individual”, apud Joseph Campbell: A Fire in the Mind — The Authorized Biography, by Stephen and Robin Larsen].

(Tradução minha; ênfases acrescentadas: https://liberal.space/2013/11/19/dia-de-acao-de-gracas-thanksgiving-day-em-comemoracao-do-dia-que-esta-chegando/)

 É a sensação que Schopenhauer descreve no final da citação que leva as pessoas a acreditar na “Divina Providência”. Ao final do jogo contra o Rosário Central Danilo se ajoelhou no gramado e elevou suas mãos aos céus. Possivelmente estava agradecendo a Deus a vitória – e aquela defesa “providencial” no finzinho do jogo. Será que a Divina Providência, ao “levar” (ou “deixar”) o Danilo a fazer a defesa, tinha um plano macabro de encerrar a carreira e a vida dele e de seus colegas de clube dali uns dias? Se tinha, por que usar um mecanismo assim tão maquiavélico e macabro?

Nesse último artigo citado menciono um conceito que criei, o de “Provincidência”:

É isso que eu tenho em mente quando falo em Provincidência: encontros e acontecimentos que, quando aconteceram, a gente considerou apenas fruto de coincidência, obra do acaso, mas que, em retrospectiva, vistos em contexto, parecem fazer parte integrante, essencial mesmo, de um plano ou desígnio que, por ser tão sofisticadamente elaborado, não pode ser explicado simplesmente como fruto de coincidência ou obra de acaso, só podendo ser visto como um enredo cuidadosamente elaborado pela Divina Providência…

No caso do Danilo, porem, parece que temos uma “Provincidência às Avessas”: um evento que, quando ocorreu, ele aparentemente considerou como decorrente da ação da Divina Providência (como parte de “um enredo cuidadosamente elaborado”) mas que, em retrospectiva, parece-nos preferível considerar simplesmente como parte do Acaso (Azar, não Sorte), porque um Deus que agisse assim dessa forma maquiavélica e macabra não é um Deus em que a maioria das pessoas gostaria de acreditar.

Em São Paulo, 29/30 de Novembro de 2016.

A Visão Religiosa do Mundo – 1

Nenhum de nós pediu para nascer… Nascemos porque um homem e uma mulher, nossos pais, um dia transaram — de preferência, de comum acordo, ou, então, um forçando o outro; de preferência, com amor, mas também pode ter sido sem… Desse relacionamento nós surgimos.

Tendo nascido assim por causa de uma decisão às vezes mal tomada, às vezes tomada só por um de nossos pais, é legítimo perguntar: a vida tem algum sentido imanente (“imanente” aqui querendo dizer “além do(s) sentido(s) que nós mesmos procuramos imprimir a ela”)?

Alguns nascem em berço esplêndido: em lares ricos, em lares de pessoas cultas, em lares em que se respira cultura sofisticada. Em lares assim, o acesso ao desenvolvimento das mais variadas competências e à construção dos mais sofisticados conhecimentos é relativamente fácil. Outros nascem em condições bem adversas: basta mudar o sinal das características anteriores para obter uma descrição apta dessa situação. Ainda outros, talvez a maioria, nascem em condições intermediárias: nem tão boas, nem tão ruins, ou uma mistura das duas coisas.

Sendo assim, é legítimo perguntar: por que isso acontece assim?

Depois de nascidos, uns (muitas vezes independentemente de sua origem) progridem, destacam-se dos demais, se tornam bem sucedidos: “dão certo”, como costuma dizer Viviane Senna (qualquer que seja o empreendimento pelo que optem). Outros (mais uma vez sem relação necessária com sua origem) não progridem, por vezes até andam para atrás, destacam-se com o sinal invertido: não pelo seu sucesso, mas pelo fracasso que persiste em visitá-los. “Dão errado”. Ou, como novamente diz a Viviane, tornam-se “seres humanos bonsai”: não se desenvolvem, ficam para sempre mirrados, um arremedo de seres humanos plenamente desenvolvidos.

Sendo assim, é legítimo perguntar: por que isso acontece assim?

Três vezes eu disse: “é legítimo perguntar”. A essas perguntas, claramente genuínas e legítimas, o ser humano tem dado, ao longo de sua história, (pelo menos) dois tipos de resposta.

Um tipo de resposta, o mais comum, parte do pressuposto de que a realidade (o cosmos, a vida em geral, a vida de cada um de nós) tem um sentido transcendente, isto é, tem um sentido que se origina além ou fora dessa realidade.

O outro tipo de resposta, menos comum, por não ver justificativa no pressuposto do primeiro tipo de resposta, imprime sentido apenas imanente à vida: a nossa vida só tem sentido quando nós mesmos conseguimos revesti-la de sentido.

O primeiro tipo de resposta é responsável pelo surgimento das religiões. O segundo tipo de resposta se encontra em casa na filosofia – em especial na filosofia de cunho mais naturalista, mais cético, mais racionalista, mais humanista.

O primeiro tipo de resposta – a visão religiosa do mundo – parte do pressuposto de que a realidade (o cosmos, a vida, a nossa vida) tem uma finalidade metafísica (sobrenatural) que é lhe atribuída por um ser – ou um conjunto de seres – cuja existência está fora dessa realidade, e que, portanto, a transcende (donde o sobrenatural). Alguns dos que defendem esse tipo de resposta assumem até mesmo que os deuses – talvez o maior dentre eles, ou, quem sabe, um deus aprendiz – tenham criado essa realidade, como parte de seus desígnios, frequentemente considerados inescrutáveis ou insondáveis.

Tendências mais céticas, mas ainda dentro desse primeiro tipo de resposta, relutam em reivindicar muito conhecimento desses desígnios. Tendências mais crédulas, porém, não hesitam em reivindicar conhecimento bastante significativo dos desígnios divinos (que, no caso, não seriam tão inescrutáveis e insondáveis assim). Com base em supostas evidências de ordem e propósito encontradas na realidade, ou com base em supostas revelações de natureza genérica (feitas, pelo que se acredita, para todos os que se propuserem aceitá-las, ou, então, somente para alguns eleitos), os proponentes desse primeiro tipo de resposta acreditam ter resolvido, em grande parte, o mistério da vida humana (e até mesmo o mistério do universo como um todo). Dentre esses, uns chegam ao extremo de credulidade representado pela convicção de que não só conhecem os supostos desígnios superiores (divinos), mas são capazes de influenciá-los através de sacrifícios, oferendas, preces e orações de vários tipos. No extremo dessa posição estão os que são capazes de se convencer (e, por incrível que pareça, de convencer os outros) de que têm canais privilegiados de comunicação permanente com os autores desses desígnios (os deuses): não só falam com eles em oração, mas ouvem respostas e comunicados específicos (profecias, leis, instruções, etc.), através de ideias ou outras informações que repentinamente aparecem em suas cabeças, ou através de sonhos, ou através de mensageiros especiais (anjos, por exemplo), ou através de sinais que apenas eles são capazes de decodificar e interpretar.

O segundo tipo de resposta – a visão secular da realidade – não vê fundamento para esses edifícios teóricos: consideram-nos castelos construídos no ar. Os que a adotam não conseguem encontrar evidência que comprove que esses edifícios teóricos – admitidamente belos – sejam mais do que mitos e literatura, produtos da fértil imaginação humana. Com base na evidência disponível, argumentam que tudo indica que não nascemos com nenhuma finalidade metafísica atribuída a nós por um ente transcendente e sobrenatural (ou um conjunto deles). Propõem, em lugar da resposta do primeiro grupo, que o único sentido que a vida possui é aquele que nós mesmos atribuímos a ela – reconhecendo que alguns não conseguem lhe atribuir nenhum.

Em regra os proponentes do segundo tipo de resposta acreditam que os proponentes do primeiro tipo se iludem, são vãos e pretensiosos, e que, a despeito de suas profissões de humildade, têm mania de grandeza, pois se julgam tão importantes a ponto de acreditar que a divindade não só faz macrogestão do universo, mas microgere a sua vida (não permitindo, por exemplo, que nem mesmo um fio de cabelo caia de sua cabeça sem a intervenção divina), monitorando em microdetalhes o que acontece em sua vida, ouvindo-lhes os reclamos, dando-lhes informações privativas sobre assuntos de interesse, protegendo-lhes os bens (inclusive humanos: cônjuge, filhos). E eles se vêem, em alguns casos, como agentes dessa microgestão. São delegados divinos, imaginam-se.

Por isso, atribuem a tudo um sentido religioso, sagrado, cósmico, eterno. As coisas mais miúdas e comezinhas da vida assumem sentido religioso e sagrado. Proíbe-se que se coma isso ou aquilo. Fazem-se jejuns (não dietas), às vezes prolongados. O faquir indiano dos jejuns acrescenta à fome a dor de uma cama de pregos. Proíbe-se que se vista assim ou assado. Mulheres muçulmanas cobrem até o rosto em público. Proíbe-se que, em determinados dias (sextas-feiras, sábados ou domingos), se faça qualquer coisa que não seja religiosa. Considera-se impura a mulher durante o seu ciclo menstrual. Determina-se como uma casal deve se comportar, um em relação ao outro. Paulo, no Novo Testamento, exorta as mulheres: “E vós, mulheres, obedecei a vossos maridos…”

Por falar nisso, um casamento, dentro dessa visão, não é um simples arranjo (contrato entre duas pessoas) que procura viabilizar a consecução de seus objetivos comuns, tornando-as mais felizes. O casamento é sacralizado, sacramentado, investido de sentido religioso, cósmico, eterno, místico: não um acordo terreno (um contrato) que pode ser revogado de comum acordo ou mesmo unilateralmente, dando-se causa, mas uma aliança feita nos céus, para todo sempre (inclusive para uma suposta vida futura que estaria por vir, depois desta – o “celeste porvir”). Romper unilateralmente o contrato matrimonial, nesse caso, não é apenas trair a confiança do cônjuge: é pecar contra a ordem divinamente estabelecida, é ofender a Deus, é (a menos que Deus [sic] perdoe) condenar-se ao eterno fogo do inferno. Pior: é mostrar-se aberto para questionar as demais pedras do edifício – algo a ser coibido de toda e qualquer maneira.

A religião procura dar um sentido favorável e positivo (para o crente) a tudo o que acontece — investindo tudo de uma aura sobrenatural. As coisas vão indo mal e você está, digamos, no fim da fila nesta vida? Ah, mas os últimos serão os primeiros! O incrédulo enriquece e o crente permanece pobre? Ah, mas é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Alguns são pobres de espírito? Ah, mas também deles é o reino dos céus — que, pelo jeito, é o reino dos pobres em matéria e em espírito. Ao exigir o sacrifício, ao exigir que o bem de outrem seja colocado antes do bem próprio, que é a essência do altruísmo, a religião leva as pessoas a tentarem se regozijar com a felicidade alheia e a se conformarem com o quinhão que (segundo imaginam) lhes cabe na vida, tentando fazer da necessidade uma virtude – mas na convicção de que, na vida futura, as coisas serão corrigidas. . .

Aos que adquirem algum poder sobre outras pessoas dentro dessa visão de mundo convém manter essa visão a todo custo,  muitas vezes quando nem mesmo acreditam mais nela – pois seu poder sobre os outros advém desse referencial teórico. Há dezenas (ou muito mais) de padres, pastores e rabinos que não acreditam no que pregam — mas continuam ali, por causa do poder sobre a vida de outras pessoas que o ofício, e, por vezes, algum carisma, lhes outorgam. Vide a passagem sobre o Grande Inquisidor, no magnífico livro de Dostoievsky, Irmãos Karamazov.

A visão religiosa do mundo pode se tornar mais do que simplesmente falsa: pode tornar-se, em muitos aspectos, perniciosa. Alguém enfrenta problemas típicos dos problemas que todo mundo enfrenta, cedo ou tarde? É o demônio agindo, ou é um mau espírito que se apossou da pessoa (as vezes pela instrumentação de um “anjo de luz”): é preciso exorcizá-lo. Se bem sucedido o exorcismo, o espírito mau fica sem ter para onde ir e é obrigado a buscar guarida numa manada de porcos… A religião desse tipo pode ser interpretada como anti-vida. Privilegiando um mundo futuro, reduz a importância deste. Privilegiando a vida eterna, reduz a importância desta vida curta e mortal — mas tão importante, porque, afinal de contas, pode ser a única que temos. Ao afirmar que a morte é o portal de entrada para o paraíso, a religião reduz o impacto e o significado da morte, relativiza-a. Para quem não é religioso a morte é importante porque é o fim — e, como tal, precisa ser levada a sério. Para os não religiosos a morte é verdadeiramente final — não é a porta de entrada para o paraíso. Terroristas religiosos muçulmanos se explodem em nome da religião, matando dezenas ao seu redor, trazendo destruição, porque acreditam que, assim fazendo, vão direto ao paraíso, para desfrutar, de imediato, dos encantos de setenta e duas virgens. Dá pra crer?

Alguns religiosos vão dizer que condenam os terroristas que autoexplodem. Infelizmente, operam sob os mesmos princípios que eles.

Parece que nada é tão absurdo que não possa se tornar artigo de fé de uma religião ou outra.

[Continuo, se quando eu estiver inspirado].

Em Campinas, 19 de Agosto de 2008

Transcrito aqui neste blog em 13 de Setembro de 2015