A Providência e o Acaso (Versão Revista)

[Este artigo é uma versão revista de um artigo publicado neste mesmo blog neste URL]

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1. Preâmbulo Histórico

Hoje, quando reviso este artigo, é 24 de Agosto de 2018. Daqui a dez dias (Agosto tem 31 dias), no dia 3 de Setembro, fará 50 anos que comprei, em 1968, orgulhosamente, minha primeira cópia (de meia dúzia que tenho hoje, contando as publicadas como e-book) das Institutas de Calvino. A primeira cópia que comprei foi aquela brilhantemente traduzida para o Inglês por meu querido professor Ford Lewis Battles, e publicada por The Westminster Press, em dois volumes, com edição de John T. McNeill. Foi Battles que fez com que eu me apaixonasse pela História da Igreja (e foi Dietrich Ritschl, também meu professor, que fez com que eu me apaixonasse pela História do Pensamento Cristão (e pela História das Ideias do Pensamento Ocidental).

Comprei minha primeira cópia das Institutas, em 3/9/1968, porque havia decidido fazer um seminário avançado, com um ano de duração, no Mestrado em Teologia (Divinity) que eu fazia no Pittsburgh Theological Seminary, em Pittsburgh. O curso valia também para o Doutorado, que vim a fazer depois. O professor que conduziria o seminário era o próprio Battles, tradutor da obra e grande autoridade em Calvino, que eu já conhecera no ano letivo anterior (Set-1967/Mai-1968) quando ministrou dois semestres de História da Igreja, cobrindo História da Igreja Antiga e História da Igreja Medieval. Como disse, fiquei apaixonado pela área. O Seminário sobre as Institutas teria início naquela semana de 2 de Setembro, mas, infelizmente, não me lembro o dia da semana em que nos encontraríamos com Battles — creio que seria nas quintas-feiras à tarde. Os americanos comemoram na primeira segunda-feira de Setembro o Dia do Trabalho (Labor Day), logo não houve aulas no dia 2 de Setembro, pois foi feriado.

No seu Prefácio ao livro Analysis of the Institutes of the Christian Religion of John Calvin, preparado pelo mesmo Ford Lewis Battles, com a assistência de meu caro colega, John Walchenbach, colega no mestrado e, depois, também no doutorado, em Pittsburgh), afirma Walchenbach, acerca do seminário avançado de Battles:

“Quando os alunos eram informados, na primeira aula do seminário, que uma das exigências do curso era ler, de capa a capa, a edição de 1559 das Institutas [que passa das 1.700 páginas na edição traduzida por Battles], muitos alunos concluíam que não havia sido uma boa decisão se matricular nessa disciplina eletiva de dois semestres e desistiam dela, cancelando sua matrícula. Como seria possível tratar todos os loci teológicos contidos na obra definitiva de Calvino? No entanto, aqueles que não desistiam, e que resolviam combater o bom combate e acabar a carreira, saíam do curso, ao final do ano letivo, com uma importante visão geral do pensamento de Calvino que é essencial para a compreensão de qualquer doutrina em particular” (p. 5).

Avidamente comecei a ler as Institutas, bem adiante do ritmo da classe. Sempre fiz isso. Queria chegar rapidamente aos capítulos em que Calvino discutia as doutrinas da providência e da predestinação, as mais controvertidas, no meu entender. A discussão de cada uma dessas duas doutrinas não fica próxima uma da outra. A providência é discutida nos Capítulos XVI a XVIII do Livro Primeiro, que discute a doutrina do “Conhecimento de Deus, o Criador”. A doutrina da providência é, portanto, discutida no contexto da doutrina da criação. A sequência é lógica, pois a doutrina da providência procura explicar como Deus sustenta e governa toda a sua criação: o mundo natural (que inclui as coisas vivas não-humanas), o mundo propriamente inteligente (que para Calvino inclui o mundo humano e o mundo angélico), e, de forma especialíssima, uma parte especial desse mundo, que envolve a vida dos eleitos (entre os quais não estão incluídos todos os anjos). A predestinação é discutida nos Capítulos XXI a XXIV do Livro Terceiro, que trata da salvação, em especial da “Justificação pela Fé”. A discussão procura explicar porque apenas alguns são justificados, os eleitos, não outros (os rejeitados, para falar claramente).

No final de Setembro de 1968 – faz quase cinquenta anos no momento em que estou escrevendo a revisão deste artigo – escrevi uma notinha para mim mesmo, numa folha de um bloquinho de notas chamado “Just Remember”, distribuído gratuita e generosamente aos seminaristas pelo Presbyterian Ministers’ Fund (um Fundo de Pensão para Pastores que nos queria como clientes já desde o tempo do seminário, antes mesmo de nos tornarmos pastores – algo que eu nunca vim a ser). Inseri a notinha entre a página 210, em que começa o Capítulo XVII, e a página 211 do primeiro volume das Institutas. Está lá até hoje, junto com várias outras em outros lugares.

A notinha em questão dizia (em Inglês, em letra miudinha, escrita com lápis número 3 bem apontado, difícil, mas não impossível de ler hoje):

“Especialmente no Capítulo XVII, e, parcialmente, nos Capítulos XVI e XVII, Calvino tenta fazer basicamente o seguinte:

a. Evitar que Satanás seja visto como onipotente, por ter conseguido atrapalhar aquilo que Deus criou com tanto cuidado (algo que limitaria a liberdade de Deus);

b. Mostrar que o ser humano é, sem dúvida, responsável pelas suas ações, e, por conseguinte, responsável pela sua queda (o pecado original);

c. Mostrar que, apesar da liberdade humana, a providência divina abrange até mesmo as coisas mais insignificantes, de modo que nada, absolutamente nada, acontece sem que Deus permita, queira e determine (nem mesmo a queda de nossos primeiros pais).

Parece-me que é impossível, diante do que consta no item ‘c’, compatibilizar esses três objetivos, o que me leva a concluir que, por conseguinte, Calvino falhou em seu empreendimento, em especial nos seguintes quesitos:

* Mostrar que o ser humano é livre – algo que parece impossível, diante do entendimento da providência divina constante do item ‘c’;

* Livrar Deus da responsabilidade pelo mal, isto é, pela introdução do pecado no mundo que ele criou – algo que igualmente parece impossível, também diante do que o item ‘c’ diz acerca da providência divina.

É isso.”

Em outras palavras: se a providência divina é entendida como Calvino a entende, é impossível que o ser humano tenha real livre arbítrio e, portanto, diante da não-onipotência de Satanás, a responsabilidade pela introdução do pecado no mundo recai sobre Deus. Lógica é lógica. Percebi já em 1968 que esse era o maior problema a desafiar a teologia calvinista. E ele se desdobra, logicamente, no chamado “problema do mal”, como David Hume, filósofo escocês do século 18 (1711-1776), considerado por muitos o maior filósofo do mundo a escrever em língua inglesa, claramente percebeu, construindo em cima desse problema sua mais potente crítica ao cristianismo calvinista que predominava em seu país naquela época (e ainda predomina). Esse desafio mexeu seriamente comigo a ponto de me levar a escrever minha tese de doutorado, em 1971-1972, sobre a crítica filosófica que David Hume fez do cristianismo e o seu significado para a história do pensamento cristão (em sua versão protestante calvinista). O título de minha tese foi David Hume’s Philosophical Critique of Theology and its Significance for the History of Christian Thought (aprovada em 8/8/1972; 615 páginas). O orientador foi William Warren Bartley III, falecido no início de 1990 (5 de Fevereiro), que foi orientando, “discípulo amado” e testamenteiro intelectual de Karl R. Popper. Assim, Popper acabou sendo meu “avô” no plano de orientação intelectual. (Vide https://en.wikipedia.org/wiki/W._W._Bartley_III).

Admito que eu era meio arrogante naquela época. Talvez ainda seja um pouco. Em Setembro de 1968 eu havia feito 25 anos. Neste Setembro (daqui a treze ou quatorze dias) farei 75 (Deo volente – mesmo nos meus tempos de maior ceticismo, nunca deixei de acrescentar essa cláusula, em geral assim em Latim, sinal de que nossa vida é frágil e precária e não temos controle total sobre ela). Eu me achava em condição de dizer então que Calvino falhou em algo que tentou, porque tentou fazer algo impossível: compatibilizar enunciados que eram logicamente contraditórios. Não conseguir fazer o impossível não me parecia, então, nem me parece agora, algo muito sério. Logo, minha admiração por Calvino não diminuiu por esse fato (embora minha admiração por Hume tenha aumentado por ter mostrado a contradição de forma tão clara). Mas a minha arrogância de criticar frontalmente a Calvino revelava um destemor fantástico de que alguém, mais velho e experiente, pudesse apontar falhas em minha leitura de Calvino ou em meu raciocínio. Ninguém o fez, em Pittsburgh. Nem depois. No entanto, em 1976, oito anos depois, quando eu já estava na UNICAMP, e estava para completar 33 anos, fiz o mesmo tipo de crítica a Kant, provocando o prof. Gerard Lebrun, francês, então meu colega na USP, mas bem mais velho e experiente do que eu, a me admoestar: “Você ainda vai descobrir que é sempre temerário fazer críticas assim abertas e frontais aos grandes pensadores”. Bem, quarenta e um anos depois, não descobri ainda – não sei se digo feliz ou lamentavelmente. Mas a lembrança de minha arrogância aos 25 anos me faz ser tolerante com arrogâncias semelhantes ou parecidas que vejo em seminaristas de hoje com mais ou menos a mesma idade que eu tinha em 1968. Nunca sucumbi à tentação de dizer-lhes: “Escutem, meninos, ouçam o que eu lhes digo: eu tenho quase 50 anos a mais do que vocês nesse jogo…”. Nunca disse, mas confesso que às vezes tive vontade!

2. Providência: A Doutrina e a Crítica Básica

A. A Doutrina em Calvino

Uma coisa que admiro em Calvino é a franqueza absolutamente clara e transparente que ele demonstra ao dizer coisas que ele sabe que vão deixar os outros, não tão corajosos como ele, arrepiados… Na maior parte dos capítulos em que trata da providência, ele a contrasta com o acaso ou a fortuna (o termo ‘fortuna’ sendo neutro: pode significar sorte ou azar). Ele faz o contraste entre a visão bíblica, que ele considera verdadeira e corretamente resumida por ele, e a versão filosófica (que ele chama de “carnal”), como a que viria a ser defendida por Hume no século 18. A opinião que defende o acaso Calvino chama de “opinião depravada” (Livro Primeiro, Capítulo XVI, Seção 2). Para Calvino, não há acaso no mundo.

Nessa seção (Livro Primeiro, Capítulo XVI, Seção 2) Calvino supõe dois conjuntos de situações e apresenta, no terceiro parágrafo citado, a sua conclusão:

“Imaginem, de um lado, um homem que cai nas mãos de ladrões, ou que é cercado por bestas selvagens; ou um homem que naufraga em alto mar por causa de uma tempestade; ou um homem que morre ao ser atingido por uma casa que desaba, ou uma árvore, que cai.

Imaginem, por outro lado, um homem que, perdido no deserto, consegue achar o seu caminho; ou que, tendo naufragado, é levado à praia pelas ondas; ou que, por um triz, escapa da morte em um incidente qualquer.

A razão carnal atribui todos esses acontecimentos, tanto os adversos como os favoráveis, ao acaso ou à fortuna. Mas ninguém que tenha aprendido com Cristo que todos os fios de cabelo de sua cabeça estão contados [Mat. 10:30] terá necessidade de ficar procurando o que causou esses acontecimentos imaginados. Quem aprendeu com Cristo sabe que todos os eventos são, em última instância, causados e governados pelo plano secreto de Deus.” [Ênfase acrescentada.]

Calvino continua: “Nada acontece sem a deliberação divina” (Seção 3 do mesmo capítulo). “Para os crentes é um grande conforto, especialmente em tempos de adversidade, saber que nada acontece para eles que não seja pela ordem e pelo comando de Deus, pois eles estão debaixo de sua mão” (Idem; ênfase acrescentada).

Calvino não hesita (e aqui está sua coragem) em dizer até aquilo que pode chocar alguns…

“Davi proclama que os bebês que ainda mamam nos seios de suas mães celebram a glória de Deus [Sal. 8:2], pois imediatamente depois que saem da barriga de suas mães eles encontram alimento pronto, nos seios das mães, que foi preparado para eles pelo cuidado celeste [pela providência divina]. Essa afirmação, geralmente verdadeira, não escapa à experiência dos nossos sentidos, que também constata que algumas mães têm seios grandes e abundantes de leite, enquanto outras são quase secas. A razão disso é que Deus quis alimentar um bebê de forma mais liberal, e o outro de forma mais escassa.  . . .   As criaturas são governadas pelo plano secreto de Deus de tal forma que nada acontece, exceto aquilo que foi consciente e deliberadamente decretado por ele” (Idem). [Ênfase acrescentada.]

Até os peitões e os peitinhos são obra da Providência Divina…

Nas seções seguintes Calvino distingue entre providência geral e providência especial. Se deixarmos Calvino de lado aqui, que trata da questão de forma sucinta, e nos basearmos em seus intérpretes, encontraremos diferenciadas três formas da providência:

  1. A providentia generalis, através da qual Deus sustenta (mantém em existência e funcionamento) e governa (determina o que nele acontece) o mundo natural (incluindo os seres biológicos não-racionais – “até o menor pardal [cp. Mat. 10:29])” [Livro Primeiro, Capítulo XVI, Seção 1];
  2. A providentia specialis, através da qual Deus rege as ações dos seres racionais (isto é, dos seres humanos e dos anjos);
  3. A providentia specialissima, através da qual Deus conduz as ações dos seus eleitos, em particular (que são um segmento dos seres racionais).

Especialmente os teólogos reformados alemães gostam muito dessa distinção tripartite. Uma busca no Google por “providentia generalis, providentia specialis, et providentia specialissima” fornecerá quase que só referências a autores que escrevem em Alemão – ou em Latim. Uma benvinda exceção é o artigo em .pdf no seguinte endereço: http://theschoenstattcloud.com/spirituality/divine-providence?download=20:divine-providence-part-1. Esse artigo, porém, é escrito por um frade — católico, portanto — que acha que o principal critério que demonstra se (ou que) somos eleitos é um profundo e eterno amor pela mãe de Deus (theotokos)…

B. A Crítica Básica

A doutrina cristã da providência divina é uma doutrina epistemicamente vazia segundo os filósofos da religião de tendência analítica, entre os quais me sinto mais à vontade. A razão para essa afirmação não é difícil de entender: é impossível aplicar a doutrina da providência divina a priori, antes de uma determinada coisa acontecer. Cito um exemplo comum nas hostes protestantes. Um consagrado cristão fica doente e morre bem antes daquela que os não-cristãos diriam que seria a sua hora. Os cristãos, porém, consideram que Deus decidiu leva-lo, em sua inescrutável sabedoria e total soberania, e que, portanto, aquela era de fato a sua hora. Nós, reles mortais, infinitamente distantes da onisciência divina, podemos até achar que, se o dito cujo (o de cujus) vivesse mais tempo, poderia fazer muita coisa boa ainda pela causa cristã, pelos seus semelhantes, pelo mundo como um todo, etc. Mas com a providência divina não se discute. É essa a doutrina.

No entanto, se, quando esse indivíduo adoeceu, mas ainda não dava mostras de que pudesse vir a morrer em decorrência de sua doença, a gente perguntasse a um grupo de cristãos, “O que será que a providência divina fará: será que ele vai sarar ou será que ele vai morrer?”, nenhum deles se arriscaria a prever. Mesmo nas orações que os cristãos fazem à beira do leito de um enfermo, eles dizem apenas: “Se for da tua vontade, ó Pai, cura este teu servo…”. Os mais ousados e corajosos acrescentam: “Mas se for da tua vontade levar este teu servo…”. [Consta, numa piada evangélica, que um enfermo, ao ouvir essa cláusula explicitada, teria dito “Epa!!!”].

Logo, se a doutrina da providência divina é incapaz de ser aplicada na previsão do que vai ou não vai acontecer, ela é epistemicamente vácua — não tem conteúdo cognitivo. Assim, não pode ser testada (verificada ou falsificada) e, por conseguinte, não pode nem ser considerada falsa (nem, muito menos, verdadeira: ela é vazia, epistemologicamente falando. No entender dos filósofos analíticos da religião, ela não serve para nada. Se o doente se restabelece, ótimo: foi da vontade de Deus. Se o doente morre, lamenta-se, mas também foi da vontade de Deus (e Deus, mais do que ninguém, sabe o que faz). Em outras palavras: qualquer coisa que de fato ou possivelmente aconteça é compatível com a doutrina da providência divina. Nenhum fato, real ou possível, é capaz de refuta-la, falsifica-la, ou desmenti-la. Ela não contém ou implica, portanto, nenhum conteúdo empírico: não determina nem proíbe nada (do nosso ângulo de visão ou da nossa perspectiva, por assim dizer). Ex ante (antes do fato), do nosso ângulo de visão, por mais que acreditemos na providência, não é possível “pré-ver” nada – logo, de que serve a doutrina? Ex post (depois do fato), qualquer um (até eu) é capaz de “pós-ver” o que aconteceu. Logo, de que serve a doutrina?

Apesar dessa crítica instigante, milhões de pessoas acreditam piamente na doutrina da providência divina. Uma leitura, ainda que rápida, do Facebook prova que os cristãos, em geral, não abrem mão dela. Se acontece algo que eles acham certo e justo, dizem: “Deus é fiel”; se acontece algo que eles não acham certo e justo, mesmo assim se curvam ao que consideram a vontade de Deus e dizem: “Deus sabe o que faz”. Antes de acontecer a coisa, dizem: “Deus está sempre em controle” – o que quer dizer: qualquer coisa que vier a acontecer foi porque Deus quis.

Os céticos (ou os ateus) acreditam que uma doutrina assim não serve para nada (do ponto de vista epistêmico, isto é, do ponto de vista do conhecimento): ela não nos permite prever o que vai acontecer e o que vai deixar de acontecer.

C. Uma Resposta a Essa Crítica

Mas quer isso dizer que a doutrina da providência divina é totalmente inútil? Talvez não. Ela pode ter grande utilidade não-epistêmica. Ela permite que o cristão, não importa o que aconteça, bom ou ruim, se sinta confortado, fique com a sensação de que há alguém em controle, dirigindo o barco, por assim dizer. “O barco é pequeno e grande é o mar – mas Jesus [vale dizer, Deus] é o piloto, e tudo vai bem”. Isso se canta antes. Se tudo não for bem, o barco naufragar, e todos morrerem, os que não estavam no barco vão dizer, depois: “Deus sabe o que faz; se o barco naufragou é porque ele tinha uma razão para permitir que isso acontecesse, razão que a gente desconhece mas sabe que é para o bem daqueles que o amam…” E isso conforta. Outras doutrinas cristãs acrescentam conforto: o cristão que morre não terminou sua vida: ele “dormiu no Senhor” e está em um lugar muito melhor do que o lugar em que nós, que ainda não morremos, estamos… “Ele (o que morreu) passou desta (vida) para (algo) melhor”. William James escreveu um belo artigo (se bem que muito criticado) sobre isso, sob o título “The Will to Believe” (A Vontade de Crer).

As religiões fazem sucesso, entre elas a cristã, porque essas doutrinas de fato confortam, independentemente de suas qualificações epistêmicas, isto é, independentemente de nos permitirem prever, ex ante, o que vai acontecer.

Outras religiões têm mecanismos de conforto semelhantes? Certamente, quase todas. Se não possuem uma doutrina da providência divina, enquanto tal, têm doutrinas de destino, karma, etc. que desempenham basicamente o mesmo papel. Mesmo religiões meio ateias, como o Budismo, acreditam em coisas assim (destino, karma, etc.) – que não expressam, necessariamente, a vontade de um ser pessoal, Deus, mas expressam algo parecido como uma lei determinista do universo: o que tem de acontecer vai acontecer e na hora que tiver de acontecer – nem um segundo antes, nem um segundo depois. “A hora dele chegou”, dizem os crentes de quase todas as religiões, cristãs ou não, quando alguém morre.

3. O Acaso (ou a Fortuna)

E os céticos (ou os ateus) têm algum mecanismo de conforto equivalente?

Na qualidade de quem já foi cético por muito tempo e, em muitos aspectos, ainda é, estou convicto de que a resposta é sim – embora não seja um mecanismo tão seguro (“tão tiro e queda” – para quem não conhece a expressão, uma coisa é “tiro e queda” quando é certo que vai, ou era certo que ia, acontecer) nem tão confortante como a doutrina da providência divina.

Os céticos (e os ateus) acreditam no acaso ou na fortuna (que são conceitos, para todos os fins deste artigo, equivalentes – vou usar apenas o primeiro deles daqui para frente).

O acaso é o oposto do determinismo, seja esse determinismo causado pela providência divina, pelo destino, pelo karma ou por qualquer outra causa. Quem acredita no acaso sabe que, em regra, as coisas podem acontecer de um jeito ou de outro, o doente pode sarar ou morrer, a criança que nasceu pode dar certo e se tornar um sucesso, ou dar errado e se tornar um fracasso completo. Nada disso é possível prever. É o acaso que permite que a gente, diante de algo que está para acontecer, tanto possa vir a ter sorte (sair-se bem) como possa vir a ter azar (sair-se mal). Em princípio, pode acontecer, em cada caso, tanto uma coisa como outra.

Mas o que os céticos (ou os ateus) acreditam para cada caso também vale para a somatória ou o cumulativo do que acontece para uma pessoa ao longo de um determinado tempo ou mesmo ao longo de toda uma vida. Também isso é “governado” (i.e., permitido, por assim dizer) pelo acaso. Algumas pessoas têm mais sorte, ou mais azar, do que outras, levada em conta uma série prolongada de acontecimentos. A chamada lei da probabilidade parece não se aplicar aqui. A lei da probabilidade diria que, numa sequência longa de casos regidos pelo acaso, o número de “sortes” e de “azares” tenderia a se igualar. Mas isso não acontece, necessariamente, no caso em discussão. Uns têm muito mais sorte do que azar, o que faz com que, num quadro comparativo, uns tenham muito mais sorte do que outros e uns muito mais azar do que outros. Se me permitem exemplificar com o caso de uma pessoa que tem tido muito mais sorte do que azar, que, na verdade, tem tido muito mais sorte do que merece, “esse cara sou eu”. Mesmo as coisas que, assim que aconteceram, me pareciam péssimas, me pareciam representar um azar danado, um desastre total, algo como “game over”, acabaram se convertendo em coisas mais do que boas, excelentes, representando uma sorte grande, o melhor que poderia ter-me acontecido… Não vou detalhar porque parecerá que dou valor exagerado à minha experiência.

Ilustro com outro caso, portanto: o de José, filho de Jacó, o chamado “José do Egito”. Uma série enorme de coisas ruins aconteceram para ele – na verdade, foram feitas para ele por terceiros, entre os quais especialmente os seus irmãos mais velhos. Mas, “no frigir dos ovos”, tudo o que lhe aconteceu ou que lhe foi feito acabou operando para o seu bem – mais do que isso: foi o melhor que poderia lhe ter acontecido. Quem não conhece a história, que leia os capítulos 37 a 50 do livro de Gênesis. É interessante. No capítulo 50, há um verso, o 20, que resume a sua história (e, de certo modo, mutatis mutandis, a minha), só que atribuindo a Deus o que um cético (ou um ateu) atribuiria à sorte. Diz José, dirigindo-se aos seus irmãos, no final da história: “Vós, na verdade, intentastes muito mal contra mim; mas Deus transformou o mal em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida”. [Na ocasião José estava dando alimento para seus irmãos levarem à sua família, que estava em perigo de morrer de fome.] A lição é: para quem é eleito, ou para quem tem muita sorte, até o que lhe é feito com má intenção, para causar-lhe o mal, se converte em bem…

Muito bem… Caminho para o fim. Mas será que, para o cético (ou ateu) isso é feito pelo acaso assim às cegas?

Os cristãos, que não acreditam no acaso, mas, sim, na providência divina, acham que o curso da nossa vida não pode ser algo que acontece às cegas. Herdaram sua crença, nesse aspecto, dos judeus. Eles acreditam que há um Deus pessoal e preocupadíssimo até com detalhes e minúcias, que gerencia – na verdade, micro-gerencia — o mundo, transformando o resultado das ações para que até o que é mal se torne bem. Para quem? Para todos? Certamente não. Apenas para aqueles que Deus escolheu e elegeu como seu povo (judeus) ou seus filhos (cristãos) – uma minoria. A esses ele trata bem, “dá sorte”, como se fosse (para os judeus e cristãos, evidentemente, não se trata de sorte), mesmo que eles não a mereçam. Os demais ele trata como eles merecem — culpados inegáveis que são (presume-se).

Os céticos (e ateus) acham por demais fantasiosa essa história de haver um Deus que criou a humanidade através de um casal, que deixou (ou determinou, segundo algumas interpretações) que nossos primeiros pais, Adão e Eva, o desobedecessem, e assim pecassem, que considerou toda a sua descendência pecadora, por causa do pecado dos primeiros pais, punindo os filhos pelo pecado remotíssimo dos pais, e, depois, aparentemente, resolveu não punir todos, escolhendo e elegendo, dentre todos os povos, um para ser o seu povo, em cuja descendência estava incluído Jesus, considerado seu filho, que morreu na cruz, etc…. Como disse, os céticos (e ateus) acham essa história um tanto fantasiosa “demais da conta”, como diriam os mineiros. Preferem achar que uns poucos são privilegiados pelo cego acaso com muita sorte – sorte “demais da conta”. Outros, com azar exagerado. Mas como o acaso não é um ser, muito menos um ser pessoal, que toma decisões, escolhe e elege, não há como responsabiliza-lo e culpa-lo. Os cristãos, como eu já antevi quase cinquenta anos atrás, aí têm um problema sério: explicar como a total soberania de um Deus que tomou suas decisões antes da criação do mundo pode eximi-lo de responsabilidade e de culpa pelo pecado e pela decisão, aparentemente arbitrária, de salvar a uns, os que escolheu e elegeu, e condenar o resto a um sofrimento indescritível por toda a eternidade (as chamadas “penas eternas”).

Para o cético (ou o ateu), o “sortudo” e o “eleito” se equiparam. O primeiro é favorecido por um processo cego; o segundo por um ser onisciente, onipotente e, por cima todo-benevolente. Para o eleito Deus pode até parecer ser tudo isso. Mas o não-eleito, que passará toda a eternidade sofrendo no fogo do inferno, provavelmente tem outra opinião sobre o assunto.

Para mim, que sou “sortudo”, não há nenhum problema em me considerar “eleito” também. O cético (ou o ateu), quando se despede de alguém, deseja-lhe boa sorte. O eleito deseja que o outro possa também considerar-se um dos eleitos.

É tudo uma questão de visão de mundo, de cosmovisão, de world view, de Weltanschauung. Ou será que não?

Que visão de mundo adotar? Aqui concordo com Pascal na aposta que ele recomendou.

Se o cético aposta que é acaso, e é acaso, ele não ganha nem perde nada; se ele aposta que é acaso, e não é acaso (é Deus), ele perde tudo e fica muito mal…

Se eu aposto que é Deus, e não é Deus, eu nada ganho, nem perco; se eu aposto que é Deus, e é Deus, eu ganho o jackpot.

Logo, uma pessoa razoável faz o quê?

Por fim, mais uma dúvida cética: será que no final das contas é realmente apenas de uma aposta que se trata?

Em Salto, 28 de Setembro de 2017 (parcialmente revisado no dia seguinte e mais bem revisado hoje, em 24 de Agosto de 2018, menos de um ano depois — e duas semanas antes de eu fazer 75 anos).

A Providência e o Acaso

[Há uma versão revisada deste artigo publicada neste mesmo blog na URL a seguir]

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o O o

1. Preâmbulo Histórico

Em 3 de Setembro de 1968 comprei, orgulhosamente, minha edição das Institutas de Calvino, brilhantemente traduzida para o Inglês por meu professor Ford Lewis Battles, e publicada por The Westminster Press, em dois volumes, com edição de John T. McNeill. Fi-lo porque havia decidido fazer um seminário avançado com um ano de duração no Mestrado em Teologia (Divinity) que eu fazia no Pittsburgh Theological Seminary, em Pittsburgh. O professor que conduziria o seminário era o próprio Battles, grande autoridade em Calvino, que eu já conhecera no ano letivo anterior (Set-1967/Mai-1968) quando ministrou dois semestres de História da Igreja, cobrindo História da Igreja Antiga e História da Igreja Medieval. O Seminário iria ter início naquela semana de 3 de Setembro, mas, infelizmente, não me lembro o dia da semana em que nos encontraríamos com Battles. Dia 2 de Setembro de 1968, primeira segunda-feira de Setembro, foi feriado nos Estados Unidos, que comemoraram naquela data o Dia do Trabalho (Labor Day).

Avidamente comecei a ler as Institutas, bem adiante do ritmo da classe. Sempre fiz isso. Queria chegar rapidamente aos capítulos em que Calvino discutia as doutrinas da providência e da predestinação. Elas não ficam próximas uma da outra.

A providência é discutida nos capítulos XVI a XVIII do Livro Um, que discute a doutrina do “Conhecimento de Deus, o Criador”. A doutrina da providência é, portanto, discutida no contexto da doutrina da criação. Ela de certo modo explica como Deus sustenta e governa a sua criação: o mundo natural, o mundo humano, e, de forma especialíssima, a vida dos eleitos.

A predestinação é discutida nos capítulos XXI a XXIV do Livro Três, que trata da “Justificação pela Fé”. Ela de certo modo explica porque apenas alguns são justificados, os eleitos, não outros.

No final de Setembro de 1968 – faz basicamente quarenta e nove anos no momento em que estou escrevendo este artigo – escrevi uma notinha para mim mesmo, numa folha de um bloquinho de notas chamado “Just Remember”, distribuído gratuita e generosamente aos seminaristas pelo Presbyterian Ministers’ Fund (um Fundo de Pensão para Pastores que nos queria como clientes já desde o tempo do seminário, antes mesmo de nos tornarmos pastores – algo que eu nunca vim a ser). Inseri a notinha entre a página 210, em que começa o capítulo XVII, e a página 211 do primeiro volume das Institutas. Está lá até hoje, junto com várias outras em outros lugares.

A notinha em questão dizia (em Inglês, em letra miudinha, escrita com lápis número 3 bem apontado, difícil (mas não impossível) de ler hoje:

“No capítulo XVII, e, parcialmente, no capítulo XVIII, Calvino tenta fazer basicamente o seguinte:

  1. Evitar que Satanás seja visto como onipotente (algo que limitaria a liberdade de Deus);
  2. Mostrar que o ser humano é responsável pelas suas ações;
  3. Mostrar que, apesar da liberdade humana, a providência divina abrange até mesmo as coisas mais insignificantes, de modo que nada, absolutamente nada, aconteça sem que Deus permita e queira.

Parece-me que é impossível, diante do que consta no item ‘c’, compatibilizar esses três objetivos, o que me leva a concluir que, por conseguinte, Calvino falhou em seu empreendimento, em especial nos seguintes quesitos:

  • Mostrar que o ser humano é livre – algo que parece impossível diante do item ‘c’;
  • Livrar Deus da responsabilidade pelo mal – algo que igualmente parece impossível também diante do item ‘c’.

É isso.”

Admito que eu era meio arrogante. Talvez ainda seja um pouco. Em Setembro de 1968 eu havia feito 25 anos. Em Setembro do ano que vem  (2018) que farei 75 (Deo volente – mesmo nos meus tempos de maior ceticismo, nunca deixei de acrescentar essa cláusula, em geral assim em Latim, sinal de que nossa vida é frágil e não temos controle total sobre ela). E achava-me em condição de dizer então que Calvino falhou em algo que tentou, porque tentou algo impossível. Não conseguir fazer o impossível não me parecia, então, nem me parece agora, algo muito sério. Mas a minha arrogância de criticar frontalmente a Calvino revelava um destemor fantástico de que alguém, mais velho e experiente, pudesse apontar falhas em minha leitura de Calvino ou em meu raciocínio. Ninguém o fez, em Pittsburgh. Em  1976, oito anos depois, quando eu já estava na UNICAMP, e estava para completar 33 anos, iria fazer o mesmo em relação a Kant, provocando o prof. Gerard Lebrun, francês, então meu colega na USP, e bem mais velho do que eu, a me admoestar: “Você ainda vai descobrir que é sempre temerário fazer críticas assim abertas e frontais aos grandes pensadores”. Bem, quarenta e um anos depois, não descobri ainda – não sei se digo felizmente ou lamentavelmente. Mas a lembrança de minha arrogância aos 25 anos me faz ser tolerante com arrogâncias semelhantes ou parecidas que vejo em seminaristas de hoje com mais ou menos a mesma idade que eu tinha em 1968. Nunca sucumbi à tentação de dizer-lhes: “Escutem, meninos, ouçam o que eu digo: eu tenho quase 50 anos a mais do que vocês nesse jogo…”. Nunca disse, mas confesso que às vezes tive vontade!

2. Providência: A Doutrina e a Crítica Básica

A. A Doutrina em Calvino

Uma coisa que eu admiro em Calvino é a franqueza clara que ele demonstra ao dizer coisas que ele sabe que vão deixar os outros, não tão corajosos como ele, arrepiados… Na maior parte dos capítulos em que trata da providência, ele a contrasta com o acaso (ou a fortuna). O acaso ele chama de “opinião depravada” (livro um, capítulo xvi, seção 2).

Nessa seção ele supõe dois conjuntos de situações:

“Imaginem, de um lado, um homem que cai nas mãos de ladrões, ou que é cercado por bestas selvagens; ou um homem que naufraga em alto mar por causa de uma tempestade; ou um homem que morre ao ser atingido por uma casa, ou uma árvore, que cai.

Imaginem, por outro lado, um homem que, perdido no deserto, consegue achar o seu caminho; ou que, tendo naufragado, é levado à praia pelas ondas; ou que, por um triz, escapa a morte em um incidente qualquer.

A razão carnal atribui todos esses acontecimentos, tanto os adversos como os favoráveis, ao acaso ou à fortuna [o termo ‘fortuna’ é neutro: pode significar sorte ou azar]. Mas ninguém que tenha aprendido com Cristo que todos os fios de cabelo de sua cabeça estão contados [Mat. 10:30] terá necessidade de ficar procurando o que causou esses acontecimentos imaginados. Quem aprendeu com Cristo sabe que todos eventos são governados pelo plano secreto de Deus.”

Ele continua: “Nada acontece sem sua deliberação” (seção 3 do mesmo capítulo). “Para os crentes é um grande conforto, especialmente em tempos de adversidade, saber que nada acontece para eles que não seja pela ordem e pelo comando de Deus, pois eles estão debaixo de sua mão” (idem).

Calvino não hesita (e aqui está sua coragem) em dizer até aquilo que choca… “Davi proclama que os bebês que ainda mamam nos seios de suas mães celebram a glória de Deus [Sal. 8:2], pois imediatamente depois que saem da barriga de suas mães eles encontram alimento, nos seios das mães, que foi preparado para eles pelo cuidado celeste. Essa afirmação, geralmente verdadeira, não escapa à nossa experiência, que através dos nossos sentidos, constata que algumas mães têm seios grandes e abundantes de leite, enquanto outras são quase secas. A razão disso é que Deus quis alimentar um bebê de forma mais liberal, mas o outro de forma mais escassa” (idem). Dureza, não é? Mas ele insiste: “As criaturas são governadas pelo plano secreto de Deus de tal forma que nada acontece, exceto aquilo que foi consciente e deliberadamente decretado por ele” (idem).

Nas seções seguintes Calvino distingue entre providência geral e providência especial. Se deixarmos Calvino de lado aqui, que trata da questão de forma sucinta, e nos basearmos em seus intérpretes, encontraremos diferenciadas três formas da providência:

  1. A providentia generalis, através da qual Deus sustenta e governa o mundo natural (incluindo os seres biológicos não-racionais – “até o menos pardal [cp. Mat. 10:29]” [livro xvi, seção 1]);
  2. A providentia specialis, através da qual Deus rege as ações dos seres racionais (isto é, os seres humanos e os anjos);
  3. A providentia specialissima, através da qual Deus conduz as ações dos eleitos, em particular.

Especialmente os teólogos reformados alemães gostam dessa distinção. Uma busca no Google por “providentia generalis, providentia specialis, et providentia specialissima” fornecerá quase que só referências de autores que escrevem em Alemão – ou em Latim. Uma benvinda exceção é o artigo em .pdf no seguinte endereço: http://theschoenstattcloud.com/spirituality/divine-providence?download=20:divine-providence-part-1. Esse artigo porém, é escrito por um frade que acha que o principal critério que demonstra se (ou que) somos eleitos é um profundo e eterno amor pela mãe de Deus…

B. A Crítica Básica

A doutrina cristã da providência divina é uma doutrina epistemicamente vazia segundo os filósofos da religião de tendência analítica. A razão não é difícil de entender: é impossível aplica-la a priori, antes da coisa acontecer. Um consagrado cristão fica doente e morre bem antes daquela que os não-cristãos diria é a sua hora. Os demais cristãos consideram, porém, que Deus o decidiu levar, em sua inescrutável sabedoria, e que, portanto, aquela foi a sua hora. Nós, reles mortais, infinitamente distantes da onisciência divina, acharíamos que, se ele vivesse mais tempo poderia fazer muita coisa boa ainda pela causa cristã, pelos seus semelhantes, etc. Mas com a providência divina não se discute. É essa a doutrina.

No entanto, se, quando esse indivíduo adoeceu, mas ainda não dava mostras de que pudesse morrer, a gente perguntasse a um grupo de cristãos, “O que será que a providência divina fará: será que ele vai sarar ou será que ele vai morrer?”, ninguém se arriscaria a prever. Mesmo nas orações que os cristãos fazem à beira do leito de um enfermo, eles dizem: “Se for da tua vontade, ó Pai, cura este teu servo…”. Os mais ousados e corajosos acrescentam: “Mas se for da tua vontade levar este teu servo…”. [Consta, numa piada evangélica, que um enfermo, ao ouvir essa cláusula explicitada, teria dito “Epa!!!”].

Enfim, se a doutrina da providência divina é incapaz de ser aplicada na previsão do que vai ou não vai acontecer, ela é epistemicamente vácua. No entender dos filósofos analíticos da religião, ela não serve para nada. Se o doente se restabelece, ótimo: foi da vontade de Deus. Se o doente morre, lamenta-se, mas também foi da vontade de Deus (e Deus, mais do que ninguém, sabe o que faz). Em outras palavras: qualquer coisa que aconteça é compatível com a doutrina da providência divina. Nenhum fato, real ou possível, é capaz de refuta-la, falsifica-la, ou desmenti-la. Ela não implica, portanto, nenhum conteúdo empírico: não determina nem proíbe nada (do nosso ângulo de visão ou da nossa perspectiva, por assim dizer). Ex ante (antes do fato), do nosso ângulo de visão, por mais que acreditemos na providência, não é possível “pré-ver” nada – logo, de que serve a doutrina?; ex post (depois do fato), qualquer um é capaz de “pós-ver” o que aconteceu, até eu – logo, de que serve a doutrina?

Apesar dessa crítica instigante, milhões de pessoas acreditam piamente na doutrina da Providência Divina. Uma leitura, ainda que rápida, do Facebook prova que os cristãos, em geral, não abrem mão dela. Se acontece algo que eles acham certo e justo, dizem: “Deus é fiel”; se acontece algo que eles não acham certo e justo, curvam-se à vontade dele e dizem: “Deus sabe o que faz”. Antes de acontecer a coisa, dizem: “Deus está em controle” – o que quer dizer: qualquer coisa que acontecer foi porque ele quis.

Os céticos (ou os ateus) acreditam que uma doutrina assim não serve para nada (do ponto de vista epistêmico, isto é, do ponto de vista do conhecimento): ela não nos permite prever o que vai acontecer e o que vai deixar de acontecer.

C. Uma Resposta a Essa Crítica

Mas quer isso dizer que ela é uma doutrina totalmente inútil? Talvez não. Ela pode ter grande utilidade não-epistêmica. Ela permite que o cristão, não importa o que aconteça, bom ou ruim, se sinta confortado, fique com a sensação de que há alguém em controle, dirigindo o barco, por assim dizer. “O barco é pequeno e grande é o mar – mas ele é o piloto, e tudo vai bem”. Isso se canta antes.  Se tudo não for bem, o barco naufragar, e todos morrerem, os que não estavam no barco vão dizer: “Deus sabe o que faz; se o barco naufragou é porque ele tinha uma razão para permitir que isso acontecesse, razão que a gente desconhece mas sabe que é para o bem daqueles que o amam…” E isso conforta. Outras doutrinas cristãs acrescentam conforto: o cristão que morre não terminou sua vida: ele “dormiu no Senhor” e está em um lugar muito melhor do que o lugar em que nós, que não morremos estamos… “Ele passou desta (vida) para a melhor”.

As religiões fazem sucesso, entre elas a cristã, porque essas doutrinas confortam, independentemente de nos permitirem prever, ex ante, o que vai acontecer.

Outras religiões têm mecanismos de conforto semelhantes? Certamente, quase todas. Se não possuem uma doutrina da providência divina, têm doutrinas de destino, karma, etc. que fazem o mesmo papel. Mesmo religiões meio ateias, como o Budismo, acreditam em coisas assim – que não expressam, necessariamente, a vontade de um ser pessoal, Deus, mas expressam algo parecido como uma lei determinista do universo: o que tem de acontecer vai acontecer e na hora que tiver de acontecer – nem um segundo antes, nem depois. “A hora dele chegou”, dizem os crentes de quase todas as religiões quando alguém morre.

3. O Acaso (ou a Fortuna)

E os céticos (ou os ateus) têm algum mecanismo de conforto equivalente?

Na qualidade de quem já foi um cético por muito tempo e, em muitos aspectos, ainda é, estou convicto de que a resposta é sim – embora não seja um mecanismo tão seguro (“tão tiro e queda” – para quem não conhece a expressão, uma coisa é “tiro e queda” quando é certa de acontecer, basicamente infalível) nem tão confortante como a doutrina da providência divina.

Os céticos (e os ateus) acreditam no acaso ou na fortuna (que são conceitos, para todos os fins deste artigo, equivalentes – vou usar apenas o primeiro deles daqui para frente).

O acaso é o oposto do determinismo, seja esse determinismo causado pela providência divina, pelo destino, pelo karma ou por qualquer outra causa. Quem acredita no acaso sabe que, em regra, as coisas podem acontecer de um jeito ou de outro, o doente pode sarar ou morrer, a criança que nasceu pode dar certo e tornar-se um sucesso, ou dar errado e ser um fracasso completo. Nada disso é possível prever. É o acaso que permite que a gente, diante de algo que está para acontecer, tanto possa vir a ter sorte (sair-se bem) como possa vir a ter azar (sair-se mal). Em princípio, pode acontecer, em cada caso, tanto uma coisa como outra.

Mas o que os céticos (ou os ateus) acreditam para cada caso também vale para a somatória ou o cumulativo do que acontece para uma pessoa ao longo de um determinado tempo ou mesmo da vida toda. Também isso é “governado” (i.e., permitido, por assim dizer) pelo acaso. Algumas pessoas têm mais sorte, ou mais azar, do que outras, levada em conta uma série prolongada de acontecimentos. A chamada lei da probabilidade parece não se aplicar aqui. A lei da probabilidade diria que, numa sequência longa de casos regidos pelo acaso, o número de “sortes” e de “azares” tenderia a se igualar. Mas isso não acontece no caso em discussão. Uns têm muito mais sorte do que azar, o que faz com que, num quadro comparativo, uns tenham muito mais sorte do que outros e uns muito mais azar do que outros. Se me permitem exemplificar com o caso de uma pessoa que tem muito mais sorte do que azar, que, na verdade, tem muito mais sorte do que merece, “esse cara sou eu”. Mesmo as coisas que, assim que aconteceram, me pareciam péssimas, que me pareciam representar um azar danado, um desastre total, algo como “game over”, acabaram se convertendo em coisas mais do que boas, excelentes, representando uma sorte grande, o melhor que poderia ter-me acontecido… Não vou detalhar porque parecerá que dou valor exagerado à minha experiência. Ilustro com outro caso. José, filho de Jacó, o chamado “José do Egito”. Um monte de coisas ruins aconteceram para ele – na verdade, foram feitas para ele por terceiros, entre eles especialmente os seus irmãos. Mas, “no frigir dos ovos”, tudo o que lhe aconteceu ou lhe foi feito foi para o bem – mais do que isso: foi para o melhor. Quem não conhece a história, que leia Gênesis capítulos 37 a 50. No capítulo 50, há um verso, o 20, que resume a sua história (e, de certo modo, mutatis mutandis, a minha), só que atribuindo a Deus o que um cético (ou um ateu) atribuiria à sorte. Diz José, dirigindo-se aos seus irmãos, no final da história: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; mas Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida”. A lição é: para quem tem sorte, até o que lhe é feito com má intenção, para causar-lhe o mal, se converte em bem.

Muito bem… Caminho para o fim. Mas será que isso é feito pelo acaso assim às cegas?

Os cristãos, que não acreditam no acaso, mas, sim, na providência divina, acham que o curso da nossa vida não pode se algo que acontece às cegas. Herdaram sua crença, nesse aspecto, dos judeus. Eles acreditam que há um Deus pessoal e preocupadíssimo com minúcias, que gerencia – na verdade, micro gerencia — o mundo, transformando as coisas para que o que é mal se torne bem. Para quem? Para todos? Certamente não. Para aqueles que ele escolheu e elegeu como seu povo (judeus) ou seus filhos (cristãos) – uma minoria. A esses ele trata bem, “dá sorte”, como se fosse (para os judeus e cristãos, evidentemente, não se trata de sorte).

Os céticos (e ateus) acham essa história de haver um Deus que criou a humanidade através de um casal, que deixou (ou determinou, segundo algumas interpretações) que nossos primeiros pais, Adão e Eva, o desobedecessem, e assim pecassem, que considerou toda a sua descendência pecadora, por causa do pecado dos primeiros pais, punindo os filhos pelo pecado dos remotíssimos pais, e, depois, aparentemente, resolveu não punir todos, escolhendo e elegendo, dentre todos os povos, um para ser o seu povo, em cuja descendência estava incluído Jesus, considerado seu filho, que morreu na cruz, etc. Os céticos (e ateus) acham essa história um pouco fantasiosa “demais da conta”, como diriam os mineiros. Preferem achar que uns poucos são privilegiados pelo cego acaso com muita sorte – sorte “demais da conta”. Outros, com azar exagerado. Mas como o acaso não é um ser, muito menos um ser pessoal, que toma decisões, escolhe e elege, não há como responsabiliza-lo e culpa-lo. Os cristãos, como eu já antevi quarenta e nove anos atrás, aí têm um problema: explicar como a total soberania divina de um Deus que tomou suas decisões antes da criação do mundo pode eximi-lo de responsabilidade e de culpa pelo pecado e pela decisão, aparentemente arbitrária, de salvar a uns, os que escolheu e elegeu, e condenar o resto a um sofrimento indescritível por toda a eternidade (as chamadas “penas eternas”).

O “sortudo” e o “eleito” se equiparam. O primeiro é favorecido por um processo cego; o segundo por um ser onisciente, onipotente e, por cima todo-benevolente. Para o eleito Deus pode até parecer ser tudo isso. Mas o não-eleito provavelmente tem outra opinião sobre o assunto.

Para mim, que sou “sortudo”, não há nenhum problema em me considerar “eleito” também. O cético (ou o ateu), quando se despede de alguém, deseja-lhe boa sorte. O eleito deseja-lhe que o outro possa também considerar-se como um dos eleitos.

É tudo uma questão de visão de mundo, de cosmovisão, de world view, de Weltanschauung.

Que visão de mundo adotar? Aqui concordo com Pascal na aposta que ele recomendou.

Se o cético aposta que é acaso, e é acaso, ele não ganha nem perde nada; se ele aposta que é acaso, e não é acaso, é Deus, ele perde e fica muito mal…

Se eu aposto que é Deus, e não é Deus, eu nada ganho nem perco; se eu aposto que é Deus, e é Deus, em ganho o jackpot.

Logo, uma pessoa razoável faz o quê?

Por fim, mais uma dúvida cética: será que no final das contas é realmente de uma aposta que se trata?

Em Salto, 28 de Setembro de 2017

A Fé, Mesmo no Falso, Surte Efeitos

O último artigo meu aqui neste blog foi sobre “Divina Providência ou Acaso”. Foi postado em 30 de Novembro de 2016, dois meses e meio atrás, por ocasião da queda do aviào que carregava o time da Chapecoense. De certo modo volto à carga, mas ampliando o escopo do tema.

Tenho refletido bastante ultimamente em algumas doutrinas cristãs de central importância na tradição reformada (vertente calvinista), embora certamente não sejam exclusivas dessa tradição: a justificação pela fé, a eleição e a providência.

Minhas reflexões caminham na seguinte direção: o assentimento a essas doutrinas faz profunda diferença na vida das pessoas – mesmo que o objeto do assentimento não seja verdadeiro, isto é, mesmo que não haja justificação pela fé, eleição e providência. O mais importante é a existência da crença, não a existência do objeto da crença.

Minhas reflexões foram estimuladas pelas minhas leituras, e pelo esforço de interpreta-las, enquanto escrevia um livrinho (que terminei de escrever em Dezembro) sobre  História da Igreja Antiga (do início ao ano 476). Mas as raízes dessas reflexões estão distantes do tempo, desde que li Rudolf Bultmann pela primeira vez, nos anos 1964-1966, quando no Seminário de Campinas. Bultmann parecia ter um certo desinteresse pela história propriamente dita (Historie, em Alemão, os fatos que realmente aconteceram). Seu interesse maior era pela história narrada (Geschichte, em Alemão, a interpretação dos fatos, a história que é contada e que as pessoas acabam por acreditar que corresponde ao que de fato aconteceu). Bultmann não tinha interesse algum no chamado “Jesus Histórico”: onde e quando nasceu, se era filho de José e Maria, quando foi batizado, quando começou seu ministério, o que fez, e quando morreu. Se Jesus de fato foi ressuscitado dos mortos, para ele, era algo que não tinha importância. Para ele nem mesmo se Jesus de fato viveu era importante. O importante era aquilo em que os apóstolos, primeiro, aparentemente vieram a acreditar, e, depois, o restante dos cristãos, com base na história contada pelos apóstolos.

A história que os apóstolos contaram era verdadeira? Não importa. Se não era verdadeira, eles a inventaram ou realmente passaram a acreditar nela com base (por exemplo) na possibilidade de que alguém tenha descoberto o túmulo de Jesus vazio? Não importa. O túmulo foi de fato descoberto vazio? Não importa. Se foi descoberto, terá sido porque alguém retirou o cadáver e o escondeu ou porque Jesus foi ressuscitado? Não importa. O que importa é que os discípulos realmente vieram a acreditar na ressurreição – ou porque houve a ressurreição (pouco provável), ou porque por alguma razão vieram a acreditar que houve uma ressurreição que de fato não houve, ou porque forjaram a história toda. Foi a história que os apóstolos contaram que se tornou responsável pela origem do Cristianismo.

Dito isso, a doutrina da justificação pela fé é verdadeira? A resposta, seguindo o tom, é que não importa. O que importa é que as pessoas acreditem que seus pecados são perdoados e que elas, por conseguinte, estão justificadas (etc. salvas, por exemplo), simplesmente por um gesto e uma atitude: o de se reconhecerem pecadoras e pedirem, a Deus, perdão pelos seus pecados, em nome de Jesus. Para os protestantes, não é preciso nem que o pastor diga “os seus pecados estão perdoados”. Basta orar, e, na oração, confessar e pedir perdão – e o perdão é “sentido”, “experienciado”. E as pessoas passam a viver sem um fardo enorme de culpa… Lutero, haja vista. Sentia-se o pior dos pecadores, vivia em agonia, até que um dia, lendo Paulo, descobriu que ele não tinha de fazer nada para ser perdoado de seus pecados e salvo: isso se dava pela graça. Ele só tinha de acreditar, ter fé, aceitar o dom da graça. Pela graça, mediante a fé. Talvez o cerne da mensagem de Paulo, Agostinho, Lutero e Calvino. Da mensagem evangélica. Nenhuma das vidas historicamente transformadas dessa forma deixaria de ter sido transformada se Jesus não ressuscitou, ou mesmo não morreu na cruz, ou mesmo nem sequer existiu.

A doutrina da eleição pode ter uma análise semelhante. Deus elegeu primeiramente os judeus? Depois aqueles que ele previu que teriam fé na mensagem cristã (numa interpretação mais benigna da eleição)? [A interpretação menos benigna é a de que Deus escolheu quem quis e, em sua soberania, não tem de dar satisfação a ninguém acerca disso.] Mas os fatos históricos (ou metafísicos) envolvidos não importam. O que importa é que uma nação que se acredita escolhida por Deus, ou uma pessoa que se considera eleita de Deus, vivem de forma claramente diferente do que viveriam se não acreditassem nisso. E o importante é o como elas vivem, uma vez que acreditem. Seriam os Estados Unidos a nação que é se seus fundadores não tivessem acreditado que era uma nação escolhida, uma cidade construída em um monte, para fazer a vontade de Deus (ainda que tudo isso seja história contada, talvez inventada, não história de fato acontecida)?

Por fim, a providência. Eu vou atravessar a rua e, já meio velhinho, com vista ruim, com reumatismo, sem muita agilidade, um carro quase me pega – passa raspando, em alta velocidade. Sorte ou milagre providencial? Qualquer uma das duas possibilidades que eu possa vir a aceitar não faz a menor diferença para o que de fato aconteceu. Mas, pode ser, que se eu acreditar que fui salvo pela providência divina, que Deus salvou a minha vida, me livrou da morte, eu vá viver o resto dos meus anos de forma diferente do que se eu acreditar que foi “apenasmente” sorte…

Daqui dez dias, por aí (estamos em Fevereiro, mês de 28 dias), fará 15 anos que tive um infarto agudo do miocárdio. Foi em 1 de Março de 2002. Poderia ter morrido. Tanta gente morre de repente de infarto, que se mostra fulminante, por que não eu? Eu tinha 58 anos. Era relativamente novo para morrer assim, mas muita gente morre bem mais cedo fulminado por esses acontecimentos que antes eram chamados de síncope cardíaca. Sempre tive muita sorte na vida, será que foi uma outra manifestação da Fada Fortuna, como as anteriores? Ou será que esta, e quem sabe as anteriores, não foram obras da providência divina que queria me preservar, digamos, para ainda escrever estas mal traçadas? Ou para um dia, dois anos e pouco depois, encontrar a Paloma?

Saber mesmo a gente nunca vai. Mas vai fazer diferença o que a gente tende a acreditar, mesmo com alguma dúvida, mesmo sem ter certeza… Depois do acontecido eu me tornei uma pessoa diferente, até de maneiras bem chinfrins, como, por exemplo, dirigindo mais devagar e com maior tranquilidade, procurando me estressar menos, etc. Consegui muito, mas ainda tenho muito a conseguir nesse aspecto de gerenciamento de estresse, de me deixar de me irritar pelo que não vale a pena, de não brigar com os idiotas atendentes de call center que respondem a nossas chamadas de reclamação… E há outras mudanças ainda mais importantes.

Enfim… Hoje sou professor de História da Igreja. No fundo acredito que haja “bruta facta”, fatos brutos, e que é possível conhecer alguns deles. Talvez nunca um fato totalmente pelado, desvestido de toda interpretação. Mas é a narrativa histórica, verdadeira ou não, que explica o que aconteceu depois. Há documento famoso na História da Igreja chamado de “A Doação de Constantino”. Supostamente escrito pelo Imperador Constantino, que se converteu ao Cristianismo, tornou o Cristianismo uma religião lícita, convocou e presidiu o Primeiro Concílio Ecumênico do Cristianismo, construiu uma nova cidade, Constantinopla, e para lá transferiu a capital do Império Romano, deixando Roma a ver navios, e que morreu em 337. Tudo isso na primeira metade do século III. O documento em questão teria sido escrito por Constantino, e nele ele teria doado ao Bispo de Roma seus palácios, suas terras, etc. ao se mudar para Constantinopla. Esse documento apareceu algum tempo muito depois da morte de Constantino, numa época em que as técnicas de avaliação da fidedignidade dos documentos era muito primitiva e precária. Hoje a maior parte dos entendidos diz que esse documento foi forjado lá pelo século VIII. No entanto, por séculos depois de sua descoberta, as pessoas acreditaram que o documento era verdadeiro e se conformaram com o fato de que o Papa, em nome da igreja, havia se tornado senhor de tantas terras e tantos palácios magníficos… Forjado, portanto não verdadeiro, o documento surtiu os efeitos desejados por muitos séculos, mesmo depois que seu forjamento havia sido descoberto.

É isso. Coisas pra incomodar a cuca neste domingo que chega – que chega, volta a ser sábado, e dali uma hora se torna domingo de novo (por causa do fim do Horário de Verão).

Em Salto, 18 de Fevereiro de 2017.

Divina Providência ou Acaso?

Hoje (29/11/2016), na verdade, ontem, porque já passa bem de meia-noite, tive um dia assim meio de cão. Senti-me mal o dia inteiro – e o sentimento ainda não foi embora.  Apesar de já serem três da manhã de 30/11/2016 (e o telefone estar setado para me acordar às 5h30), não consigo dormir.

Sei que o sentimento está ligado à queda do avião em que estava o time da Chapecoense, mas tive alguma dificuldade para definir exatamente por que esse acidente me pegou assim tão mal. Pelo jeito, pegou muita gente mal. O William Waack, que apresentou um brilhante Jornal da Globo, agora há pouco, estava tão arrasado que nem conseguia falar direito. O Cuca, técnico do Palmeiras, também estava arrasado. Disse, em entrevista, que o título que ganhou domingo, contra o mesmo Chapecoense, perdeu toda a graça, e que o daria de bom grado de volta se pudesse trazer o time do Chapecoense de volta para a vida…

Conversando com a Paloma, minha mulher, e ao mencionar o episódio do goleiro Danilo, que discuto mais adiante, ela me lembrou de coisas que já escrevi, em especial sobre o filme MatchPoint, de Woody Allen. Transcrevo a seguir o que escrevi num artigo com o título “Sorte” (Sorte é o lado bom do Acaso; o lado mau é o Azar):

O filme MatchPoint, de Woody Allen, começa com uma cena instigante: um jogo de tênis, em que a bola vai de um lado para outro da quadra e volta, várias vezes, até que bate na parte de cima da redinha e sobe – e a cena é congelada com a bolinha no alto. Uma voz, em off, diz:

“O homem que disse ‘Prefiro ter sorte a ser bom’ tinha uma visão profunda da vida. As pessoas têm medo de enfrentar o fato de que uma parte grande de nossa vida depende da sorte. É assustador imaginar que tanto, em nossa vida, escapa, ou pode escapar, do nosso controle. Há momentos numa partida de tênis em que a bola bate no topo da rede, e, por uma fração de segundo, pode ir para frente ou cair para trás. Com um pouco de sorte, ela vai para frente, e você ganha o jogo. Mas nem sempre isso acontece. Há vezes em que ela cai para trás, e você perde.”

(https://liberal.space/2006/06/04/sorte/; cito a mesma passagem em outro artigo, este sobre o que se chamou na época de “A Tragédia da Escola do Realengo” – que é o título do artigo: https://liberal.space/2011/04/09/a-tragedia-da-escola-do-realengo/.

Por que essa citação é relevante à minha condição hoje? Por duas razões:

Primeiro, porque ela nos lembra de que temos muito pouco controle sobre nossa vida e de que nossa vida está sempre por um fio. A citação fala em “Sorte”. Prefiro, aqui neste artigo, falar em “Acaso”, que cobre tanto a Sorte, seu lado bom, como o Azar, seu lado mau (Vide, a propósito, outro artigo meu: “Desemprego e Informática: Sorte e Azar”, https://liberal.space/2007/09/07/desemprego-informatica-sorte-e-azar/).

Segundo, porque uma coisa que pode parecer, num momento, a melhor coisa que aconteceu em nossa vida (“a maior sorte”!), pode, na sequencia, vir a se tornar parte de uma cadeia causal que põe fim em nossa vida (“o maior azar”).

A classificação da Chapecoense para a final da Copa Sul-Americana certamente deve ter parecido, para os jogadores do time, a melhor coisa que poderia ter acontecido em sua vida – e com alguma razão. No entanto, essa classificação colocou os jogadores do time em uma sequência causal que os matou – a quase todos.

Fico pensando, especialmente, naquela magnífica defesa do Danilo (o goleiro) no finzinho do jogo contra o San Lorenzo, que colocou o Chapecoense na final. Milagrosa, a defesa, foi como muitos a qualificaram. Foi sorte, disseram outros, porque a bola bateu no pé dele e se desviou do destino certo que tinha, o gol. Sorte??? Hoje sabemos que, se a bola tivesse entrado no gol, o Danilo e seus colegas estariam ainda vivos – fora da final da Copa Sul-Americana, mas vivos. O que parece, num momento, a melhor coisa, a maior sorte, pode parecer, dali a pouco, a pior coisa, o maior azar.

Como saber? Não há como. Essas coisas dependem de nosso Weltanschauung, Worldview, Visão de Mundo…

Isto me traz a ainda um outro artigo que escrevi, há quase exatamente três anos, perto do Dia de Ação de Graças de 2013, com o título  “Dia de Ação de Graças / Thanksgiving Day (em comemoração do dia que está chegando)”:

Aqui vai um trecho surpreendente de um livrinho de Schopenhauer, que tem o título não menos surpreendente de “Especulação Transcendente sobre a Aparente Intencionalidade do Destino do Indivíduo”. ( . . .)

“Ao olhar para trás sobre o curso de nossa própria vida, a gente constata que encontros e eventos que, quando se deram, pareciam fruto do acaso, vieram a se tornar aspectos estruturantes de uma história de vida não-intencional, através dos quais as potencialidades do nosso caráter foram tomando forma e se transformando em realidade. Ao se dar conta disso, é difícil resistir à conclusão de que o curso de nossa biografia se assemelha ao enredo de uma obra de ficção habilmente construída. E a gente fica apenas imaginando quem pode ter sido o autor desse enredo tão surpreendente!”

[Arthur Schopenhauer, “Transcendent Speculation upon an Apparent Intention in the Fate of the Individual”, apud Joseph Campbell: A Fire in the Mind — The Authorized Biography, by Stephen and Robin Larsen].

(Tradução minha; ênfases acrescentadas: https://liberal.space/2013/11/19/dia-de-acao-de-gracas-thanksgiving-day-em-comemoracao-do-dia-que-esta-chegando/)

 É a sensação que Schopenhauer descreve no final da citação que leva as pessoas a acreditar na “Divina Providência”. Ao final do jogo contra o Rosário Central Danilo se ajoelhou no gramado e elevou suas mãos aos céus. Possivelmente estava agradecendo a Deus a vitória – e aquela defesa “providencial” no finzinho do jogo. Será que a Divina Providência, ao “levar” (ou “deixar”) o Danilo a fazer a defesa, tinha um plano macabro de encerrar a carreira e a vida dele e de seus colegas de clube dali uns dias? Se tinha, por que usar um mecanismo assim tão maquiavélico e macabro?

Nesse último artigo citado menciono um conceito que criei, o de “Provincidência”:

É isso que eu tenho em mente quando falo em Provincidência: encontros e acontecimentos que, quando aconteceram, a gente considerou apenas fruto de coincidência, obra do acaso, mas que, em retrospectiva, vistos em contexto, parecem fazer parte integrante, essencial mesmo, de um plano ou desígnio que, por ser tão sofisticadamente elaborado, não pode ser explicado simplesmente como fruto de coincidência ou obra de acaso, só podendo ser visto como um enredo cuidadosamente elaborado pela Divina Providência…

No caso do Danilo, porem, parece que temos uma “Provincidência às Avessas”: um evento que, quando ocorreu, ele aparentemente considerou como decorrente da ação da Divina Providência (como parte de “um enredo cuidadosamente elaborado”) mas que, em retrospectiva, parece-nos preferível considerar simplesmente como parte do Acaso (Azar, não Sorte), porque um Deus que agisse assim dessa forma maquiavélica e macabra não é um Deus em que a maioria das pessoas gostaria de acreditar.

Em São Paulo, 29/30 de Novembro de 2016.

Doutrina, Ortodoxia, Dogmatismo, Intolerância, e Repressão: Tentativas de Engaiolar o Pensamento

[Mais um artigo publicado primeiro em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space), com um título ligeiramente diferente. É uma singela homenagem ao meu dileto amigo Rubem Alves, que havia morrido dias antes de eu escrever o artigo, que aborda temas que  sempre lhe foram caros, vítima que foi (como eu também e tantos outros), na Igreja Presbiteriana do Brasil, da ênfase na doutrina e na ortodoxia, que infalivelmente resultam no dogmatismo, na intolerância e na repressão.]

1. Tecnologia e Religião

Tecnologia e Religião são duas coisas que, à primeira vista, parecem não ter muita relação uma com a outra. No entanto, uma das tecnologias mais importantes para a humanidade, a prensa de tipo móvel (tipografia), criada por Johannes Gutenberg em 1455, por aí, foi inventada com uma motivação claramente religiosa – mais especificamente, cristã.

Em primeiro lugar, é conhecido de muitos o fato de que o primeiro livro impresso por Gutenberg em sua máquina foi a Bíblia.

A alguns isso parecer apenas um fato fortuito, decorrente apenas da popularidade da Bíblia. Mas não é.

Se fomos ler o prefácio que Gutenberg escreveu à sua Bíblia, encontraremos nele uma segunda razão para a tese de que sua motivação, ao inventar a tipografia, era profundamente religiosa. Eis o que ele diz:

“Deus sofre por causa da multidão de almas que sua palavra não pode alcançar. A verdade da nossa religião está aprisionada nas páginas de uns poucos livros copiados a mão, e isso limita e mesmo confina, em vez de esparramar, um tesouro que deveria ser público e estar nas mãos de todo mundo. Vamos quebrar o selo que hoje prende as palavras santas e dar asas à verdade, para que ela possa conquistar, a partir de agora, através da palavra, cada alma que venha ao mundo — palavra não mais copiada lenta e custosamente por mãos que podem ser facilmente paralisadas, mas multiplicada como o vento por uma máquina que nunca se cansa” (apud Ministry in the Digital Age, de David T. Bourgeois).

A intenção de Gutenberg era, portanto, mais do que apenas religiosa: era missionária.

É verdade que ele, aparentemente, concebia o trabalho missionário como se limitando a divulgar a Bíblia . . . ainda por cima em Latim, uma língua que a maioria das pessoas não lia, naquela época. (Na verdade, a maioria das pessoas não lia em nenhuma língua naquela época). O trabalho de Gutenberg teve de ser completado, por exemplo, por Martinho Lutero, que devotou alguns anos de sua vida traduzindo a Bíblia para a língua do seu povo, o Alemão.

2. Teologia e Educação

Apesar de Lutero defender a tese de que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si próprio, segundo a sua consciência, iluminada pela razão (conforme mostrei em artigo anterior neste blog), ele, embora inicialmente fosse ingênuo a ponto de crer que apenas colocando a Bíblia na mão do povo, numa língua que o povo oralmente entendesse, era suficiente, mais tarde percebeu que mais era necessário — e foi adiante: criou escolas ao lado das igrejas luteranas para que crianças e adultos aprendessem a ler, e, assim, pudessem ler a Bíblia. E ele tinha consciência de que, mesmo sabendo decodificar a linguagem escrita, muitos leem, mas não entendem o que leem (vide Atos 8:26-27: “Entendes tu o que lês?”). Por isso, para ele, a Igreja Protestante (em especial a sua, a luterana) tinha um “ministério educacional”, entre outros. Na Igreja Presbiteriana, calvinista, o pastor é até mesmo chamado de o “presbítero docente”… A igreja e, nela, o pastor, devem ajudar o crente a entender o que lê (e até mesmo o que ouve).

Há uma diferença sensível entre afirmar, no estilo Magister dixit, que o Papa ou o clero são os únicos credenciados e autorizados a interpretar a Bíblia, e que, no caso do Papa, sua interpretação, quando feita oficialmente (ex cathedra), e envolvendo questão de fé ou de prática (moralidade), é infalível, e, portanto, inerrante, e afirmar, por outro lado, que cada um tem a liberdade e o direito de interpretar a Bíblia por si, mas pode estar errado, e que, portanto, é preciso disponibilizar, portanto, para quem precisar ou desejar, apoios, ferramentas e serviços para que possa entender o que lê (o que ouve, o que vê…).

3. Protestantismo e Ortodoxia

É verdade que, no devido tempo, já começando durante a vida de Lutero e de Calvino, o Protestantismo desenvolveu uma Ortodoxia, uma ideia de qual é a recta doctrina que a Bíblia contém… E a ideia continua a prosperar entre nós…

Rubem Alves escreveu dois magníficos livros sobre esses temas:

Primeiro, Protestantismo e Repressão (publicado em 1979, pela Editora Ática). Cerca de 25 anos depois, em 2005, o Rubem reeditou esse livro com um novo título, mais genérico: Religião e Repressão (publicado agora pela Edições Loyola, editora católica, em coedição com a Teológica).

Segundo, Dogmatismo e Tolerância (publicado em 1982, ironicamente por uma editora católica, a Paulinas).

4. Ortodoxia e Intolerância

Há duas atitudes básicas em relação à verdade: a de quem constantemente a busca, e a de quem acredita que já a encontrou.

O ortodoxo é aquele que acredita que a encontrou e que tem posse dela.

A ideia de que encontramos a verdade não seria tão perigosa se não fosse acompanhada da crença de que somos os únicos a tê-la encontrado e que temos posse exclusiva dela. Quando nos imaginamos os únicos possuidores da verdade – da recta doctrina – e a verdade da qual somos exclusivos possuidores é a única, a tendência é nos tornarmos dogmáticos: rejeitamos a ideia de que a verdade pode ter muitos lados, que é possível vê-la de várias perspectivas, e que, por isso, é preciso sempre continuar a busca-la. . .

Se não adotarmos essa atitude – podemos chama-la de liberal – o resultado é a intolerância. Imaginamos que não devemos tolerar pontos de vista divergentes, porque eles serão necessariamente errôneos, visto que a verdade está exclusivamente conosco.

5. Intolerância e Repressão

Da intolerância para a repressão a distância é mínima. Reprimir aquilo de que discordamos parece até uma virtude para aquele que se acredita dono da verdade – pois seria uma forma de evitar ou extirpar o erro.

Provavelmente foi com base num raciocínio mais ou menos assim que Calvino concluiu que não devia impedir que Michel Servetus fosse queimado numa fogueira.

O Rev. Joás Dias de Araújo, falecido recentemente, escreveu em 1975 um livrinho chamado Inquisição sem Fogueiras, sobre os expurgos que a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) fez nos seus quadros, presentes e futuros, durante a Ditadura Militar, na época ainda em pleno vigor (com um luterano na Presidência da República).

6. Homenagem ao Rubem Alves

Na dedicatória que apôs à cópia de Protestantismo e Repressão que me deu em 1979 (faz 35 anos este ano), o Rubem Alves escreve: “Ao Eduardo, em memória de um passado comum”. A dedicatória vem logo acima do mote do livro, uma linda passagem de Leszek Kolakowski, muito amada pelo Rubem, e que ele citou em mais de um livro:

“Por que deveria qualquer pessoa, inflexivelmente convencida da verdade exclusiva dos seus conceitos relativos a qualquer e a todas as questões, estar pronta a tolerar ideias opostas? Que bem pode ela esperar de uma situação em que cada um é livre para expressar opiniões que, segundo o seu julgamento, são patentemente falsas e portanto prejudiciais à sociedade? Por que direito deveria ela s abster de usar quaisquer meios para atingir o alvo que ela julga correto?”

Rubem Alves ressalta, em sua “Nota Preliminar” que a “Ortodoxia Protestante”, com seus “mecanismos de controle de pensamento e repressão do comportamento, [está] em evidente oposição à tradição ideológica clássica do Protestantismo, com sua ênfase na liberdade de consciência, livre exame e democracia”.

Entre Protestantismo e Repressão, de 1979, e sua reedição como Religião e Repressão, em 2005, Rubem Alves mudou profundamente sua atitude para com a religião… Deixou de trata-la como objeto de um discurso acadêmico, científico, rigoroso, para trata-la mais como poesia, como literatura. . .

Na nota “Trinta Anos Depois” cita Fernando Pessoa e conclui que “somos assim”: sonhamos voar, mas temos medo das alturas, sonhamos com a liberdade, mas preferimos o abrigo seguro das certezas…

Afirma, na mesma nota, que as religiões, em regra, têm tendência de se tornarem gaiolas que procuram prender pássaros que gostam de voar. Em geral, os hereges “são os pássaros que recusam as gaiolas de palavras que os prendem, que falam palavras proibidas”.

Continua ele, em espírito de confissão: “Vivi, durante muitos anos, numa gaiola de palavras. Eu gostava dela. Não me sentia engaiolado. Sentia-me protegido. Minha gaiola era minha armadura”.

Sua nota é um desabafo… Registra que, durante a Ditadura Militar, os grupos protestantes que, no Brasil, “anda[vam] sempre a pé”, “se apressaram a montar na garupa dos militares” – e, além de expulsa-los de seus seminários, resolveram entregar ao poder secular “os seus hereges, sob a acusação de subversão e comunismo”.

Ironicamente, a Igreja Católica que, na época da Reforma, declarou Lutero herege e o excomungou e perseguiu, por pouco não o colocando na fogueira, tornou-se, no Brasil da Ditadura Militar, “uma gaiola com portas abertas”, encarnando, como diz o Rubem Alves, “o espírito libertário que se encontra nas origens do protestantismo”.

Mas o Rubem conta que um dia perguntou a Dom Helder Câmara se não haveria “um lugarzinho” para ele na Igreja Católica… A resposta de Dom Helder foi realista, sem nenhum romantismo: “Não se engane. É tudo igual…”. Triste. A porta da gaiola gradualmente se fechou e calou os que “ensaiavam cantos diferentes”, aos quais se impôs o famigerado “silêncio obsequioso”. Pior do que tapar a boca de alguém é exigir que ele próprio a mantenha fechada. . .

“Para engaiolar a verdade”, conclui Rubem Alves, “é preciso engaiolar a liberdade e o pensamento”.

Que falta ele nos vai fazer.

Data em que escrevi: em São Paulo, 29 de Julho de 2014

Em São Paulo, 20 de Maio de 2015

Transcrito aqui em 8 de Setembro de 2015

“Gracias a la Vida” ou “Gracias por la Vida”?

[Já publiquei uma versão deste texto em meu outro blog “Liberal Space” (http://liberal.space)%5D

Gosto muito da canção “Gracias a la Vida”, de Violeta Parra, imortalizada, para nós latinos, na voz de Mercedes Sosa, e, para nós brasileiros, na voz de Elis Regina.

Se estivesse escrevendo em Espanhol teria começado dizendo “A mí me gusta muchísimo la canción…”.

Acho interessante as construções linguísticas, consagradas pela língua ou criadas intencionalmente, porque há sempre algo por detrás dela que não há explicitado.

“A mí me gusta mucho la canción ‘Gracias a la Vida’” a gente expressa, numa ordem mais direta e explícita, dizendo “Gosto muito mesmo da canção Graças à Vida”. Por que será que os hispanofones dizem “A mí me gusta la canción” em vez “gosto da canção”… Por que será que soa mal aos ouvidos dos hermanos dizer “Yo gusto (de) la canción”? Não sou especialista em Espanhol, mas parece-me “Yo tengo mucho gusto en la canción” é aceitável. Não sei…

Preocupa-me mais a letra da canção em si. “Gracias a la vida”. Dou graças à vida? Se estou numa atitude de ação de graças, como, ontem, Dia de Ação de Graças, muitos estiveram, meu primeiro movimento é dizer “Gracias por la vida”. Não dou graças à vida por ter dois olhos. Dou, primeiro, graças por la vida. Mas graças a quem? Já escrevi aqui neste blog e no Facebook, sobre essa questão. Acho possível dizer “Dou graças pela vida” (ou por qualquer outra coisa), sem explicitar a quem. A frase seria equivalente a “Sou muito grato por ter vivido”, ou “Sou muito grato por estar vivo até esta idade” (quando tantos morrem tão mais cedo, por exemplo).

Os cricas — e eles podem ser crentes tentando fustigar um ateu ou podem ser ateus tentando cutucar um crente — sempre irão perguntar: “Mas a quem?” E a resposta mais apropriada me parece: “A quem — ou a que — quer que seja que é responsável por eu ter nascido e estar vivo até agora…”. Mas isso raramente vai ser suficiente. Os cricas sempre querem que a gente explicite.

A gente poderia tentar sair pela tangente e dizer “A Deus — considerando Deus a força ou o poder que nos trouxe à vida e que a sustém, e que, quando deixa de a suster, nós morremos”. Deus, afinal, na tradição cristã, é isso, não é? Pelo menos isso. Essa seria uma concepção minimalista — vale dizer, liberal — de Deus: a força ou o poder responsável por nos trazer à vida, ou nos dar a vida, e por sustê-la, por sustenta-la, por mantê-la (por um tempo limitado). Se nossa vida é boa, damos graças por ela, especialmente se ela nos dura bastante. Se nossa vida é ruim, em vez de dar graças, esperamos que ela nos seja abreviada.

Nossa tendência é hipostatizar e antropomorfizar essa força ou esse poder, humaniza-lo, faze-lo como nós, transforma-lo em nossa imagem e semelhança, para que possamos falar com ele, pedir-lhe que nos faça feliz, dar-lhe graças quando assim nos faz, pedir-lhe saúde quando estamos doentes, rogar-lhe que nos prolongue a felicidade e a vida sem a qual a felicidade desapareceria . . .

Mas a canção de Violeta Parra opta por não enfrentar essas questões difíceis. Nela se dá graças à vida, hipostatizando-a, antropomorfizando-a, personalizando-a, como se fosse ela, a vida, que nos deu dois olhos, dois ouvidos, para não falar no implausível alfabeto (este, claramente, uma criação humana). E a vida? Quem nô-la deu e a sustenta?

Eu sou grato a quem, ou a o que, fez isso (deu-me a vida) e faz isso (e a sustenta) — mesmo que não seja arrogante o suficiente para presumir que possa descreve-lo. Para mim, ter o sentimento de gratidão pela vida é mais importante do que pretender ser “amigo de Deus”, conhecer-lhe todos os desígnios e, o que é mais arrogante ainda, influencia-los, falando-lhe ao ouvido, para que ele os altere, sempre em nosso favor.

Transcrito aqui em São Paulo, 8 de Setembro de 2015

Originalmente publicado em Liberal Space em Salto, 28 de Novembro de 2014, dia em que fez quatro anos que a Paloma e eu nos tornamos membros da Catedral Evangélica, em ambos os casos por arrolamento, a nosso pedido — e um dia depois do Dia de Ação de Graças de 2014.