Somos Nós Tão Reformados Como Imaginamos?

[Artigo publicado em O Estandarte, jornal oficial da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, Outubro de 2016, p.27, em comemoração aos 499 anos da Reforma Protestante, que se comemoram neste dia 31 de Outubro de 2016]

Qual a principal contribuição da Reforma que, importante no século 16, ainda hoje é igualmente relevante?

Lutero, monge se transformando em teólogo, perguntava-se o que deveria fazer para ser salvo. A resposta da Igreja Católica não mais o convencia. E percebeu que, para encontrar uma resposta mais convincente, teria de responder, antes, uma questão mais fundamental e mais ampla, mais epistemológica do que teológica:

“Com base em que eu decido o que devo crer e como devo viver como cristão?”

A grande contribuição e o maior mérito de Lutero estão em ter levantado claramente essa importante questão e ter dado a ela uma resposta ousada e radical.

Lutero conhecia a resposta da Igreja Romana de sua época a essa questão: Não é você que decide: é a Igreja; e a Igreja decide com base na Bíblia e na Tradição. A Tradição incluía as decisões aprovadas pelos grandes Concílios, as Bulas e Encíclicas Papais, o Direito Canônico, etc..

Mas Lutero insistia. E se não for claro o que a Bíblia e a Tradição dizem? E se a Bíblia ou a Tradição ensinar uma coisa num lugar e algo diferente, em outro? E se a Bíblia ensinar uma coisa e a Tradição, outra? Em casos assim, quem decide como interpretar a Bíblia e a Tradição e escolher a resposta certa?

Lutero conhecia a resposta da Igreja Romana de sua época também a essa questão: Quem decide é a Igreja, através de sua Hierarquia, em última instância o Papa.

Lutero reconhecia que a resposta da Igreja Romana fazia certo sentido. Afinal de contas, foi a Igreja que definiu o cânon do Novo Testamento; que decidiu quais resoluções de quais Concílios mereciam ser homologadas; que sempre escolheu a interpretação correta da Bíblia e da Tradição e a forma de compatibiliza-las.

Mas em seu tratamento da questão das Indulgências a Igreja Romana exagerou na dose – e isso levou Lutero a questionar a sua autoridade, incluindo a autoridade dos Concílios e do Papa. Uma igreja que disponibiliza lugares no céu para quem se disponha a comprar um pedaço de papel aqui na terra não pode estar certa… Suas dúvidas se expandiram: uma igreja que ensina que você está salvo se frequentar a missa, confessar-se, cumprir as penitências impostas, valer-se dos sacramentos como meios de graça, etc., independentemente de sua fé e de sua conduta moral, não pode estar certa…

Lendo a Bíblia, na intimidade de sua cela monacal, Lutero gradualmente concluiu que ele, e as demais pessoas, não precisavam fazer nada para ser salvos, porque o que era necessário fazer Cristo já havia feito. A salvação era um presente, um “dom gratuito” de Deus, originada em sua graça. Daí vem o sola gratia. Mas um presente precisa ser aceito para surtir efeito – e a aceitação vem pela fé. Daí o sola fides.

A partir dessa convicção, Lutero encontrou a resposta para a pergunta epistemológica, mais fundamental e mais ampla: Quem diz isso? A Bíblia! Daí vem o sola scriptura.

Mas… a Bíblia interpretada por quem?

Aqui vem a resposta ousada e revolucionária de Lutero: A Bíblia interpretada por mim, por cada um dos crentes, porque, segundo a Bíblia, todos somos sacerdotes, e, como tais, temos pleno direito de decidir, cada um de nós por si, sem depender de mais ninguém, mas com a iluminação do Espírito Santo, o que a Bíblia de fato ensina em questões de fé e conduta.

A resposta de Lutero a essa questão solapou a autoridade (que ela pretendia exclusiva) da Igreja Romana. A única fonte de autoridade não é a Igreja, é a Bíbliamas cada um decide por si (com a iluminação do Espírito Santo) o que a Bíblia diz e ensina, sem necessidade de concílios e do Papa.

Foi com base em sua resposta a essa questão que Lutero, diante de autoridades políticas e eclesiásticas (entre as quais estava o enviado especial do Papa), teve coragem de dizer, na Dieta de Worms (1521), em que se decidia o seu destino, que não se retrataria do que havia dito e escrito. Que bom que alguém preservou suas magníficas palavras:

A menos que eu seja convencido, pela Escritura e pela razão, de que estou errado (pois não reconheço a autoridade de papas e concílios, porque eles se contradizem uns aos outros), minha consciência me diz para ficar sujeito à Palavra de Deus. Ir contra a consciência não é nem certo, nem seguro. Por isso, não posso e não devo me retratar de nada. Aqui estou, aqui permaneço, pois nada mais há que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.”

Essa tese de Lutero é profundamente subversiva, mesmo que Lutero, os luteranos e as demais alas da reforma histórica ou magistral não a tenham levado muito a sério.

Primeiro, a ideia de que cada um tem direito de interpretar a Bíblia como achar certo solapa (antes do fato) a tese de que os protestantes devam formular confissões que oficialmente interpretam a Bíblia para eles.

Segundo, a ideia de que cada um dos crentes é um sacerdote pleno aponta na direção oposta àquela que levou a propostas sofisticadas e rígidas para a organização da igreja e a elaboração da liturgia do culto, sugerindo, quem sabe, um modelo de comunidades eclesiais simples, com múltiplas formas de organização e cultos bem mais livres e espontâneos, em que qualquer um pudesse dar testemunho de como “a palavra” o havia transformado.

Terceiro, que necessidade há de um clero diferenciado e profissional? Se todos somos sacerdotes, não há por que separar alguns para pregar a palavra, ministrar os sacramentos, instruir os demais, atender aqueles que precisam de apoio espiritual, psicológico ou mesmo material, gerir a comunidade. Isso pode ser feito de forma natural por todos, em rotatividade, ou por qualquer um dos irmãos que se sinta movido a tal.

Quarto, num contexto em que se reconhece a liberdade do crente e se pratica o amor cristão, as ideias anteriores não precisam necessariamente conduzir a cismas e divisões, mas, pelo contrário, podem levar a uma comunidade cristã livre, diversificada, inclusiva, tolerante…

A história posterior do Protestantismo mostra que este não tomou as ideias de Lutero suficientemente a sério. Nem os próprios luteranos. Menos ainda nós, calvinistas.

Ao completarmos 500 anos da data em que os protestantes celebram a ousadia e a coragem de Lutero, data a ser celebrada daqui a um ano (em 31/10/2017), não teria chegado a hora de nos tornarmos, como ele, mais ousados e corajosos?

Eduardo Chaves

Salto, 31 de Agosto de 2016
Transcrito aqui em 25 de Outubro de 2016, depois de publicado em O Estandarte.

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