Continuando as Elucubrações…

Caro xxx:

[Este artigo foi escrito em resposta a um comentário publicado no post “Elucubrações Perigosas…” (https://theological.space/2015/09/08/elucubracoes-perigosas/)%5D.

Em primeiro lugar, obrigado pela sua resposta. Ela me obriga a pensar (ou repensar) em algumas coisas que deixei de lado no artigo que você comenta.

Peguemos dois autores – Adolf von Harnack e J. Gresham Machen – que, a meu ver, podem ser descritos como o ponto mais alto, respectivamente, do Liberalismo e do Fundamentalismo. Cada um deles escreveu pelo menos um livro importante para as questões que estamos discutindo. No caso de Harnack, O que é o Cristianismo? (Das Wesen des Christentums, em Alemão, e What is Christianity?, em Inglês, publicado em 1900. No caso de Machen, Cristianismo e Liberalismo (Christianity and Liberalism), publicado em 1925. Apenas 25 anos separam o aparecimento desses dois livros.

Harnack defende a tese (exposta em muito mais detalhe em seu Dogmengeschichte (History of Dogma, História do Dogma), em resposta à pergunta no título de seu livro, que Cristianismo é o que Jesus, chamado de Cristo, pregou: uma mensagem acerca da proximidade ou mesmo da chegada do Reino de Deus, que estaria a exigir dos humanos introspecção, arrependimento, mudança de direção, na direção de um viver moral (representado sobremaneira pela Lei Áurea). A morte de Jesus e sua alegada ressurreição não tem nada que ver com essa mensagem: são invenções de Paulo, que caracterizam o que Harnack chama de Catolicismo, não mais de Cristianismo.

Machen, por sua vez, concorda, malgré soi, com Harnack em algumas coisas. Ele defende a tese de que o Cristianismo é uma coisa e o Liberalismo outra. Harnack concordaria plenamente com essa tese – só esclarecendo que “Cristianismo” é o ensinamento básico de Jesus Cristo (o “Jesusismo”) e  substituindo “Liberalismo” por “Catolicismo” (que seria idêntico a “Paulinismo”).

A diferença é que Machen achava (e o mostrou em outro livro, sobre Paulo) que a religião de Paulo não contradizia, nem levava adiante, a religião de Jesus. A justificativa dessa tese é complexa, nem vou tentar resumi-la aqui.

Essas considerações corroboram sua afirmação de que não havia apenas um “Cristianismo Primitivo”, mas vários – ou pelo menos dois, o de Jesus Cristo e o de Paulo de Tarso. Harnack achava esses dois Cristianismos incompatíveis – e, como bom liberal, optou pelo de Jesus Cristo, contra Paulo. Machen, bom teólogo reformado, acha que havia apenas um “Cristianismo Primitivo”: o do Novo Testamento, sendo os pontos de vista de Jesus e os de Paulo compatíveis (ou, pelo menos, compatilizáveis).

Eu, pessoalmente, não estou muito interessado em definir os conceitos / termos “cristão” e “Cristianismo” com precisão. Acho que ninguém, hoje, tem autoridade para fazer uma definição normativa desses conceitos / termos e impor essa definição aos outros (embora a Igreja Católica e os Fundamentalistas protestantes possam achar que ainda tem). Mas o resultado dessa discussão é que aqui temos uma especulação teórica (doutrinal) que desemboca numa definição descritiva desses termos que não produz maiores resultados práticos.

É isso que fazem Harnack e Machen, que se acham no direito de dizer, o primeiro, que seu entendimento do Cristianismo é o único que mantém o Cristianismo como uma alternativa aceitável hoje em dia, o segundo, que o entendimento da essência do Cristianismo Harnack foi tão longe na direção de uma reinterpretação que acabou produzindo uma outra religião – o Cristianismo, na versão de Harnack, não é mais, segundo Machen, Cristianismo – “became something else”.

 Quanto à sua afirmação de que “o núcleo da fé cristã — Jesus — era de certa forma um ‘liberal’”, eu concordo e discordo. Parece-me que Jesus era um judeu não muito ortodoxo. Se isso o torna um liberal, vá lá – mas aplicar-lhe o termo me parece um sério anacronismo. Acho preferível dizer que boa parte dos liberais era “jesusista” (não “paulista”): eles preferiam a pregação de Jesus à de Paulo (chegando a afirmar que Paulo foi o real fundador do Cristianismo “Católico”). Vide Harnack, What is Christianity?

Indo em frente, discordo do seu entendimento de “De(s)mitologização”. Acho que, para Bultmann a expressão quer dizer “descartar” o mito que envolve o núcleo essencial do Cristianismo Primitvo (jesusita e paulista) e desvelar a natureza existencial desse núcleo (kerygma). O termo “mito”, para Bultmann, é bastante elástico, de modo a incluir quase todos os elementos de uma visão pré-científica da realidade: um mundo plano de três andares (Céu, Terra e Inferno), um mundo em que as coisas que acontecem aqui na Terra não se devem a causas naturais mas, sim, à ação de seres sobrenaturais, do mal ou do bem, etc. A tese principal dele é que, ao descartar essa visão de mundo primitiva, não precisamos, necessariamente, descartar a mensagem essencial do Cristianismo Primitivo (especialmente paulino): a visão de que devemos buscar uma nova vida que faça sentido e nos realize (existência autêntica, segundo o espírito), abandonando a nossa existência inautêntica (segundo a carne).

Por fim, não creio que haja um método de interepretação da Bíblia que possa ser chamado de “conservador” que se contraponha a um método de interpretação “modernista”. Acho que há o método de interpretação literal, que pode e deve ser aplicado quando “cabível” – e um método de interpretação não-literal (simbólico, alegórico, etc.) que pode ser aplicado quando o sentido literal parece “descabido”. Tanto conservadores como liberais fazem uso dos dois métodos em diferentes circunstâncias.

O problema surge quando o resultado da aplicação da interpretação literal produz uma leitura “descabida” (em algum contexto). Para os liberais, uma leitura literal de qualquer relato que implica (por exemplo, o reconhecimento de um milagre ou simplesmente do sobrenatural é inaceitável – por isso, eles ou rejeitam o relato ou se propõem a interpreta-lo não literalmente.

Meu dilema sempre decorreu da seguinte conclusão a que cheguei: se interpretados literalmente, muitos relatos bíblicos me são inaceitáveis (descabidos), mas, quando eles são interpretados não-literalmente, fico com a nítida impressão de que os que assim os interpretam estão impondo ao texto um sentido que não está nele – estão fazendo eisegese e não exegese… Isso pode ser legítimo em alguns casos, mas como regra é, a meu ver, injustificável. É isso que eu (na linha do Machen) acho que os defensores da teologia da libertação, da teologia feminista, etc. me parecem estar fazendo.

Não sou fundamentalista ou conservador em minhas ideias teológicas – mas tendo a ser conservador em minha hermenêutica – aplique-se ela a que texto for… Sou radicalmente constra as deconstruções e reconstruções do texto dos pós-modernos. Mas não sou contra uma tentativa de recontextualizar a mensagem bíblica nos diversos contextos em que ela é apresentada… Sou, portanto, meio troeltschista. Acho que foi isso que Paulo fez – e todo mundo que veio atrás dele, inclusive os fundamentalistas…

Fico com a impressão de que estou apenas a me repetir… Mas queria que você comentasse essa nova versão do meu ponto de vista.

Um abraço.

Eduardo Chaves

São Paulo, em 7 de Setembro de 2015

Uma resposta

  1. Olá, Eduardo.

    O cerne desta discussão é, ao que me parece, um problema hermenêutico, de como o leitor pode entender corretamente o significado do texto.
    Ainda sou iniciante na teologia, fiz o comentário anterior apenas como forma de “botar lenha na fogueira”. Porém, a hermenêutica pós-liberal/pós-moderna me parece adequada. Creio que o liberalismo teológico, apesar de suas contribuições, é insuficiente devido a seu extremo racionalismo (“a religião nos limites da razão”). Mas a hermenêutica, é claro, só é possível a partir de uma exegese bem feita. Algo em falta nos círculos conservadores, ao menos no Brasil.

    Obrigado pela resposta.

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